Para 2017, convenhamos, as pessoas desejam quase as mesmas coisas que em 2016. E 2015 e 2014...
Porque no fundo, no fundo, aquilo que se deseja - não importa se o ano foi bom ou ruim - em geral, não muda. Porque o essencial, não importam as circunstâncias, é sempre o mesmo.
Desejo que em 2017, além de todas as coisas essenciais de sempre, possamos também olhar para dentro.
Desejo que não tenhamos pressa, mas que não sejamos acomodados.
Desejo que a ética não nos abandone nem por um segundo. E que, nela, façamos o que é certo para nós - mesmo que pareça errado ou tolo para outros.
Desejo que tenhamos do que rir, mas que não forcemos gargalhadas para tapear nossas dores mais profundas.
Desejo que tenhamos trabalho e que nossas recompensas e descansos sejam proporcionais ao merecimento.
Desejo que tenhamos um colo para descansar, depois de dias exaustivos. Mas que também optemos por levantar cedo para ficarmos exaustos após um dia de alegrias.
Desejo que tenhamos mais paciência, mas não sejamos apáticos diante daquilo que é inequivocamente inaceitável.
Desejo que sejamos humildes, sem sermos subservientes. E que sejamos exigentes, sem sermos petulantes.
Desejo que sejamos justos uns com os outros. Que entendamos que a consciência sobre os erros nos move adiante; mas que a culpa, nos destroça. Que optemos pela primeira.
Desejo que tenhamos saúde e tranquilidade. Mas que possamos às vezes ficar ansiosos, insones e eufóricos, diante de uma alegria por vir.
Desejo que as saudades inevitáveis sejam breves, ainda que ardidas. E que restem as perenes, que homenageiam quem passou pela vida e ficou na lembrança.
Desejo que não percamos a capacidade de sentir o medo, que nos torna prudentes. Mas que não nos tornemos covardes, em qualquer circunstância.
Desejo que vejamos Deus onde quer que ele se encontre, não importa com qual nome ou cor ele se apresente. E que, ao fecharmos os olhos, em silêncio, nos sintamos parte do que Ele é.
Desejo música alta, tanto quanto desejo o silêncio.
Desejo que possamos fazer novos amigos. E que os "velhos", mesmo aqueles que tenham ficado pelo caminho, sejam testemunhas orgulhosas da nossa trajetória, tanto quanto nós somos das deles.
Desejo que não deixemos de acreditar no amor - mesmo se parecer que ele não acredita mais em nós. Porque, no fundo, essa é a única coisa que realmente importa. Que possamos celebrá-lo muitas vezes, no ano que se inicia.
A todos desejo um Ano Novo em que possamos ser por fora, aquilo que queremos ser por dentro. Que possamos doar um pouco do que há de belo em nós ao mundo, sem acharmos que o mundo necessariamente nos deve algo em troca. E que, ao fazemos isto, ajudemos a fazer de 2017 um ano feliz e repleto do que é, de fato, essencial.
Tenho uma confissão a fazer: sou tarado por jujubas. Aquela goma grudenta e açucarada, que não sai do dente, com gosto de infância, me seduz desde sempre. Perco a noção do ridículo, passo mal. Como com a mão cheia, feito pipoca, várias de uma vez. Como até acabar o pote. Gosto especialmente das vermelhas.
Gosto tanto que nutro a esperança de que demorem a acabar. Por isso, as preservo: pego primeiro as verdes, as roxas, as amarelas, as laranjas, comemorando a visão das vermelhas se acumulando. Deixo o melhor para o final.
Tenho mania de fazer isto com tudo que gosto. É como se a expectativa pelo melhor, que ainda está por vir, desse mais gosto ao que está no trajeto. É como se a alface fosse o degrau mais baixo, que antecede o palmito; ou o frango (bleargh!), fosse um mal necessário para se chegar à sobremesa com leite condensado; ou o beijo fosse a antessala do orgasmo.
Gosto da espera. Gosto de sentir o cheiro, antes de morder. Gosto que a textura venha antes do sabor. Gosto que a cor preceda a temperatura. O paladar é íntimo, interno, da porta da corpo para dentro. Delicioso, sem dúvida. Mas até a boca há um caminho cheio de sutilezas imperdíveis, que temperam a expectativa. A antecipação que os olhos trazem, com suas cores e contornos bem definidos, seguida do tato e suas texturas inexplicáveis, acompanhada do olfato, que ativa na memória sensações independentes de tempo e espaço, é que conduzem à boca. Só nela é que se sente o deleite final. Se para a comida, a boca é a morada do prazer, ela é também seu túmulo.
Há que se ter paciência, para que o prazer se prolongue - não no "depois", mas no "antes". Fazer do tempo um ingrediente do desejo. Mas a paciência é fêmea, tinhosa e cheia de personalidade, como fruta que se colhe na hora exata. A paciência ainda verde, é travosa, adstringente. Torna o prazer curto, raso, desinteressante. A paciência depois que passou do ponto, torna-se preguiça, fica molenga, sem firmeza alguma. Não corresponde mais à expectativa. Mas, quando perfeitamente madura, é o fruto ideal: doce na medida, com a firmeza exata, com o melhor dos perfumes.
Guardar o melhor para o final, pode ser tarde demais, pode já ter passado do ponto. Pode não dar mais tempo. Pode não haver mais espaço. O paladar pode já estar saturado. Pode já não haver mais gosto. Se a refeição é sempre mais deliciosa quando se tem fome, por que não saciá-la com o que há de mais gostoso? Sem pressa, sem urgência, mas sem postergar demasiadamente o prazer?
Não se trata de hedonismo, nem de felicidade permanente. Não dá para ser plenamente feliz o tempo todo, depois que a vida já tenha nos feito ralar os joelhos, tremer de medo, chorar um amor ou questionar a existência de Deus. A sensação de felicidade requer história, tempo decorrido: olhar para trás e ver uma cadeia de pequenas alegrias entrelaçadas, tecendo a história da vida. A felicidade é tecido, não linha.
Alegrias, sim, são contáveis. Têm peso, movimento, deixam marcas no chão.São mundanas, palpáveis, têm começo, meio e fim. Alegrias que já passaram são lembranças, não mais alegrias. Alegrias são como ondas: existem só aqui, no momento presente. Onda não surfada, é onda perdida.
Não há que se lamentar, já que é impossível surfar todas as ondas. Mas esperar apenas pela onda perfeita, pode ser tornar-se escravo do futuro.
É como ser feliz só aos sábados. É como deixar para revelar amanhã aquilo que você quer - e acabar não fazendo nunca. É como esperar para colocar a saia colorida ganha no Natal, só depois de ter emagrecido os quilinhos que o ano novo trouxe. É como não beijar porque acabou de passar batom. É como não fazer amor de manhã, porque ainda não escovou os dentes.
Se a paciência é fêmea, a atitude também é. No campo dos prazeres, são as palavras fêmeas que nos regem, que nos fazem aguardar pelo momento exato, ou nos movimentam para buscá-lo - perfeito ou não. Se a paciência é amiga dos prazeres, a atitude é irmã das alegrias; é sua abre-alas, sua fiel escudeira.
As jujubas vermelhas, com suas sinuosidades açucaradas, são minhas pequenas doses de alegria infantil. Na teia que forma minha felicidade ao longo dos anos, talvez um montinho vermelho e doce esteja em cada um das intersecções, me lembrando, como diz minha autora favorita, que a vida é urgente. E que os prazeres são habitantes do tempo: agora.
Celebrava seu cérebro todos os dias. Com a vaidade oferecida pela clareza das próprias ideias e dos raciocínios sofisticados, percorria a vida com a luz acesa, sempre às claras, iluminada pelo que estava logo ali, inegavelmente ao alcance da lógica.
Um dia, por um desses motivos que a vida dá sem pedir licença, decidiu apagar a luz e acender uma vela. A luz, que tanto lhe guiara, tornara-se subitamente insuficiente. Passou a precisar de um pouco de escuridão para enxergar o que a luz demasiadamente clara, ofuscava. Precisava da noite, para conseguir ver estrelas.
Deitou-se no chão e escutou a música, que envolvia o ambiente com delicadeza. Absolutamente só, aqueitou a mente e esvaziou a cabeça, tão pouco acostumada ao silêncio de ideias.
Teria dormido? Pequenos flashes de uma luz suave e quente dançaram às margens dos olhos. O flamejar da vela, talvez? Não. Tinham vida própria.
Sentiu o rosto mover-se involuntariamente, como se seu não fosse. Levou as mãos às bochechas, para se certificar: sim, estava mesmo sorrindo.
Percorreu grandes salões de um cristal azulado, formando estalactites translúcidas que desciam de algum lugar divino. Ouviu coros de seres desconhecidos cantando em celebração à sua chegada. Voou com grandes pássaros por céus coloridos, de tinta cremosa e fresca.
Viu-se em um lago calmo, com rostos conhecidos, que lhe sorriam e diziam, sem falar, "Seja feliz. Sejamos, todos".
Sentiu os afagos de amigos eufóricos por, finalmente, lhe visitarem. Sentiu força, sabedoria. Sentiu festa no peito, nos quadris, nos ouvidos e nos pés.
Esqueceu seu nome, despiu-se do próprio corpo. Sentiu-se resfriar do calor intenso no chão frio.
Sentiu a invasão de um medo desconhecido. Viu-se lutando contra o que não podia ver. Respirou fundo, pisou na grama, aguentou firme, manteve-se de pé. E triunfou.
Sentiu uma tempestade de amor invadir-lhe o peito. Chorou compulsivamente de alegria. Encontrou-se com um Deus que estava do lado de dentro. Descobriu-se templo de si mesmo. E voltou a orar.
A vela não mais se apagou. A luz quente do sol continua a clarear o que é da terra, indispensável ao corpo. Mas aquilo que é sutil, que requer penumbra, passou a ser iluminado por velas, silêncio e uma humildade que desconhecia.
De repente, celebrar seu cérebro foi descobrir-se insuficiente. Sua cabeça, tão lúcida, pouco entende daquilo que não se explica e que, ainda que desnecessária ao corpo, talvez seja sua única razão de ser.
Um ano se passou desde que escrevi pela última vez. Hoje, exatamente um ano depois, reabro meu blog. Faço-o - como é costume, desde que comecei a escrever - com pedidos e agradecimentos ao Senhor do Tempo, que fecha 2015 e traz 2016 à nossa porta.
De tudo aquilo que não sei
"Com o devido tempo, nada é mais mutável do que as rochas."
Enos Mills, naturalista americano
Devil's Golf Course, uma inacreditável formação de cristais de sal, no meio do deserto.
Death Valley, California. Foto do autor, de Outubro de 2015.
Quero continuar a escutar sons que desconheço, de idiomas que não sei identificar;
Ouvir por ouvir, para que as palavras fluam adentro como notas musicais, sem significado.
Quero mais mantras que se repitam e repitam e repitam,
Que meus ouvidos escutem, mas meu cérebro não entenda.
Quero ouvir só com a alma.
Quero a suavidade das vogais doces, de alguma língua indígena muito antiga
E cadeias complexas de consoantes impronunciáveis, que deem textura aos ouvidos
E me recordem daquilo que já fui e vivi há muito tempo - mas ainda não consigo me lembrar.
Quero agradecer pelas caminhadas por lugares em que nunca estive
E a revisita a outros, reverenciando a jornada.
Quero vagar por onde nada há, para me sentir pleno.
Quero me perder, para depois rastrear meus próprios passos.
Quero galhos secos, ou jardins cobertos de flores e animais cantando.
Quero eternizar na lembrança, o improvável: a chuva inundando o deserto esculpido pelo sal.
Quero pântanos, florestas, gelo, água, fogo.
Quero descer até o rio teimoso, que corre esculpindo a pedra e traçando seu caminho,
Ou ver as pedras polidas, inertes e eternas, no fundo do rio que já não corre mais.
Quero de novo deitar na neve
E na rocha quente, dourada, cor de alegria.
Quero continuar a caçar pôres-do-sol e alvoradas
E acordar com uma vontade incrível de sei-lá-o-quê.
Quero pegar a estrada de lá para cá
E imaginar orações em um pequeno altar de pedras, construído à sombra de uma árvore,
E sob a luz de um sorriso.
Quero finalmente encontrar velhos amigos que ainda não conheço.
Quero tempestades de alegrias.
Quero meus braços se movendo por não serem mais meus.
Quero rodopiar com os pés inundados de uma alegria desconhecida, mas minha desde sempre.
Quero meu rosto irreconhecivelmente sereno. Ou respeitosamente severo.
Quero um sotaque enrolado, para dizer somente o necessário, com a devida simplicidade.
Quero meu corpo adormecido e minhas ideias aladas.
Quero mais lágrimas gratas, que escorram límpidas, sem que o rosto se contraia
E sem que ninguém as precise secar.
Quero ser meio, quero ser objeto, quero servir.
Quero ser morada e trampolim.
Quero ser porto. Mas também quero ser barco.
Quero agradecer os abraços longos e silenciosamente eloquentes
E beijar muitas mãos, ajoelhar-me com os lábios.
Quero gente de todas as cores.
Quero que cada vez menos coisas façam sentido.
E mais continuem a se tornar indispensáveis,
Ainda que inexplicáveis.
Quero tudo aquilo que não sei;
Que o novo me torne cada vez mais jovem
E o tempo continue a me fazer cada vez mais ignorante.
Que 2016 seja um ano novo.
Ininteligível à cabeça, mas claríssimo ao coração.
"Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado."
Fabrício Carpinejar, escritor gaúcho
Como em todos os anos desde que comecei a escrever, faço reflexões de final de ano. Esta, é a do ano de 2014.
Antigamente, eu gostava de acreditar que eu era um cara diferente. E a música era a forma de provar isto a mim mesmo. Tolo, eu sei. Mas era assim. Entre os meus 15 e meus 20 e poucos anos, eu gostava de ouvir umas músicas meio incomuns. Passava horas nas lojas de CD "descobrindo" novidades, na época em que nem existia internet e MP3 não queria dizer absolutamente nada.
De uns anos para cá (estou agora com 37), passei a ouvir músicas mais convencionais - talvez porque eu, também, tornei-me mais convencional. Mas, naquela época, gostava de ouvir o que quase ninguém ouvia... Dava-me um certo senso tolo e infantil de singularidade.
O fato é que, no afã de ser pseudo-eclético, conheci muita, muita coisa legal. E, numa dessas andanças em uma loja de CDs, me deparei com uma capa que me chamou atenção, de um álbum intitulado, Fingerdance, de um músico do qual nunca tinha ouvido falar: Billy McLaughlin.
Fingerdance, do álbum homônimo, de 1996
Achei o título interessante. "Dança do Dedos". Fiquei curioso. O texto da capa, dizia:
Close your eyes Feche os olhos
And you won't believe you're listening to an acoustic guitar E você não vai acreditar que está ouvindo um violão
Open your eyes Abra os olhos
And you won't believe how he does it E você não vai acreditar em como ele o faz.
Achei irresistível! Pedi para ouvir, o vendedor deixou (eles não gostavam muito de abrir capinhas de CD fechadas) e escutei a faixa-título. Foi um daqueles momentos em que você sabe que está experimentando uma coisa especial pela primeira vez. Fiquei absolutamente fascinado com a sonoridade singular, o estilo imprevisível e sofisticado, uma forma que, para mim, com 18 anos, era completamente nova. Comprei o CD imediatamente e ouvi, ininterruptamente, por vários e vários dias. Decorei todas as músicas e sou capaz de cantarolar cada uma delas até hoje, nos mínimos detalhes.
Sempre achei meio assombroso alguém conseguir tocar violão. Toquei um pouco (pouquíssimo) de piano e teclado na adolescência, mas nunca compreendi como é possível alguém conseguir domar um instrumento complexo como o violão: a sincronia dos dedos, a complexidade dos acordes, a destreza. Billy McLaughlin toca praticamente 100% do tempo apenas no braço do violão. Toda a sonoridade das suas músicas sai dali, como se fosse um teclado. É um som diferente, improvável, intrigante e delicado.
Outros gênios já tinham feito isto antes dele, em diferentes gêneros: Hendrix, Jordan, Hedges e outros. Mas foi com ele que ouvi pela primeira vez.
Ele lançou poucos anos depois uns novos CDs, igualmente excelentes. E, depois disso, sumiu. Não ouvi mais falar em Billy McLaughlin. Veio a popularização da internet, ele chegou a ter um site, mas não lançou mais nada. Nem uma música, sequer. Evaporou. Silêncio de muitos anos.
Mas, em 2006, Billy ressurgiu das cinzas, com uma incrível história para contar...
O sumiço teve uma causa. Em 1999 ele começou a "errar" as próprias músicas. Foi aos poucos perdendo a capacidade de tocar. Em 2001, foi finalmente diagnosticado com uma doença neuromuscular incurável, chamada "Distonia Focal". Ela afeta justamente pessoas que fazem movimentos repetitivos, como músicos e atletas, causando contrações involuntárias dos músculos - no caso dele, de dois dedos da mão esquerda. O virtuoso do violão estava completamente impossibilitado de tocar.
Em 2002, sua carreira estava encerrada. De 1988 a 1999, Billy fez mais de 1700 shows. De 1999 a 2006, foram 14. Neste intervalo de tempo, ele perdeu seu o contrato com a gravadora, sua empresa, seu empresário, sua renda. E perdeu também seu casamento e sua casa.
A Distonia Focal roubou-lhe dois dedos. E isto foi o suficiente para roubar-lhe também sua música e sua vida até ali.
Até que ele decidiu fazer o improvável... com a outra mão. Reaprendeu a tocar suas próprias músicas, uma a uma, nota por nota, invertendo a posição do violão, passando a tocá-lo com a mão direita, em vez da esquerda.
Não é tão simples quanto parece... Eu sempre tive facilidade de fazer as coisas com as duas mãos. Não sou um ambidestro verdadeiro - daqueles para os quais é realmente indiferente usar qualquer uma das mãos, já quem ambas têm a mesma desenvoltura. Eu, não. Meu cérebro não foi tão privilegiado. Sou destro, mas com o passar do anos fui me obrigando a fazer coisas com a mão esquerda, de forma que, com o tempo, consegui alguma desenvoltura. Digo que sou apenas um "falso ambidestro".
Mas, quando se toca música profissionalmente, no nível em que ele tocava, a coisa é diferente. Se alguém me exigir que eu escreva tão bem com a mão esquerda quanto faço com a direita, simplesmente não vou conseguir. Uma coisa é escrever de forma que seja legível. Outra coisa é escrever exatamente com a mesma desenvoltura, com a mesma velocidade e com a mesma letra. Não dá; é impossível.
É equivalente a aprender a falar sua própria língua fluentemente, de trás para frente. É como virar o teclado de cabeça para baixo, cruzar as mãos sobre ele e tentar digitar um texto inteiro sem um erro sequer. Não dá. Ou dá?
Bem, ele o fez. Retomou sua carreira em 2006, 5 anos após o diagnóstico. Voltou a compor, voltou a se apresentar. Recuperou a coisa que mais gostava de fazer e para a qual havia tanto se preparado. Recuperou a arte que refletia quem ele era.
Uma história inspiradora, de um gênio cuja teimosia foi tão poderosa quanto o talento, e cujo esforço foi tão grande quanto o sonho de voltar a tocar.
Church Bells, já com as mãos invertidas. 2006
Isso me traz aos desejos para 2015. Para o ano que vem, espero que sejamos um pouco como Billy McLaughlin. Espero não apenas acreditar que é possível fazer "com a outra mão". Acreditar é pouco. Quero ir lá e fazer. Mesmo que demore. Mesmo que dê trabalho e requeira paciência. Mesmo que seja necessário olhar para a própria mão e ensiná-la tudo de novo, insistir, fazê-la conquistar a mesma alegria e a mesma destreza da outra.
Quero reaprender o que sabia, para tocar as músicas que me são importantes, e compor outras músicas que ninguém jamais ouviu. E que eu nem sabia que havia em mim.
Quero fazer com a outra mão, para expor o artista que ainda posso ser, sem negar o que fui. Quero que os silêncios virem música. E que "resignar" seja palavra banida do dicionário.
Quero recompensas e aplausos. Quero inspirar. Quero não ter medo de cair e levantar quantas vezes sejam necessárias. Quero enfrentar o medo e a incerteza. Quero agradecer. Quero conseguir fazer o que eu sei que sei fazer. E também o que nem sei que sei.
Não quero fazer com a outra mão porque me obrigo. Quero porque a outra mão também pode, também consegue. Não para ser melhor, nem diametralmente diferente. Mas possível, viva. Inteira por si.
Porque mesmo não sendo virtuoso, como Billy McLaughlin, sou um puta de um teimoso. E, em sendo, nego-me. E em negando, abro-me.
Em 2015, serei canhoto. Porque tenho um livro para continuar a escrever. E, mesmo que a letra seja diferente do que era, ainda é a minha letra. Me orgulho dela. E minha outra mão, também.
Faltava-lhe algo. Ela não sabia dizer o que era. Era bem apessoado, até. Falava direitinho, sabia usar acento circunflexo e sabia a diferença entre rímel e blush. Era um homem sensível, cuidadoso, atencioso. Um bom partido, sem dúvida.
Mas faltava-lhe algo. Na verdade, sobrava-lhe esmero. A barba estava sempre feita, as unhas sempre cortadas, o hálito sempre fresco, o desodorante sempre renovado. Faltava-lhe ser mais cru, mais rebelde, menos civilizado. Precisava de alguma coisa que a fizesse acreditar que ele seria capaz de algo impensável, impetuoso; algo que a surpreendesse.
Queria acordar de manhã insegura se ele ainda estaria ali. Queria temer ser traída. Queria ficar enciumada com alguma mensagem de WhatsApp suspeita depois da meia-noite. Queria tentar entrar no banheiro enquanto ele tomasse banho e encontrar a porta trancada.
Mas, não. Ele queria ouvir música baixa depois das 22h, queria lavar a louça depois da janta, queria escovar os dentes antes de beijar pela manhã. Queria usar cotonetes. Johnson.
Um dia, ele dormiu na casa dela e ficou até mais tarde, depois que ela saiu para trabalhar. Quando voltou do trabalho, deparou-se com seu maior medo: ele tinha feito a cama, arrumado perfeitamente os 10 travesseiros, lavado a louça e deixado bilhetinhos apaixonados.
Não, não ia dar certo. E, ali, decidiu: iria deixá-lo, coitado. Era um bom partido, sim, mas faltava-lhe pegada. Era isso! Faltava-lhe pegada. Faltava-lhe loucura. Faltava-lhe ser um pouco menos perfeitinho.
Ela estava convicta: queria o bom. Apenas o bom. O perfeito, não. Perfeito era demais...
Estava entre os 60 e 70 e tinha desistido de aparar os pelos nas orelhas. Já estava aposentado, mas continuava trabalhando. Achara muito monótona a vida em casa. Não aguentou uma semana sequer.
- Essa porra dessa mulher fala demais! - dizia sobre a esposa. Sempre temperava as frases com um palavrão.
Era um homem franzino, baixo, de pele morena e bigodinho. Apesar de casado há muitos anos, não tinha aquela barriga redonda, característica dos homens que já arrearam a âncora há anos. Mas não fazia atividade física de nenhum tipo. Era magro porque era magro, mesmo. Comia pouco, dormia pouco. Tomava muito café e fumava 2 maços desde os 14 anos. Os dentes amarelos e os dedos longos e finos, encardidos pela nicotina, revelavam o vício, que ele não fazia nenhuma questão de largar.
Era um homem rude. Havia parado de estudar aos 13. Aos 18, tornou-se cobrador e nunca mais deixou de sê-lo. Ficou ali, naquele trabalho, por anos e anos. Acordava às 03h30 e antes do sol nascer já estava circulando pela cidade como um sentinela, no seu assento mais alto, com o couro gasto, revelando um pedaço da espuma. Sentava com as pernas abertas, para não apertar as partes.
Nunca tirou carta de motorista. Nunca se interessou por dirigir. A viagem mais longa que fez, foi para Sorocaba, para o casamento de um primo. Nunca tinha lido um livro e na TV só assistia a 2 canais.
Seu novo chefe tinha 41 anos - a idade do seu filho mais novo - e tinha feito especialização em alguma universidade barata para entrar e cara para sair. Ao assumir o cargo, fez uma reunião com todos os motoristas e cobradores da empresa, numa segunda-feira, dizendo que queria que todos fizessem um novo treinamento de "orientação para o cliente", para melhorar a "experiência dos usuários durante o translado, encantando-os com a eficiência dos serviços".
- Que porra de cliente? Nós temos passageiros! E que porra de translado? Nós fazemos transporte! E que porra de "encantar"? Eu por acaso tenho cara de fada? - disse aos colegas, com seu tradicional mau humor, depois da reunião.
Foi ao treinamento, no dia e horário marcados. Assim que as luzes se apagaram e começou um vídeo intitulado "Você, gerente de si mesmo", levantou-se e foi fumar. Depois, mijar.
- Mulher urina, homem mija - dizia.
Depois, comeu uma coxinha xexelenta e voltou para a sala. Dormiu alguns minutos e, depois que as luzes se acenderam e alguns consultores palestraram durante uns 20 minutos sobre "Interpretação do Perfil de Cliente", ficou repassando mentalmente a escalação do Palmeiras, de 72 a 78. Ao final, respondeu ao questionário, assinalando "Concordo Plenamente" em todos os itens de avaliação de satisfação, só para não ter que explicar do que não havia gostado.
Não precisava de treinamento nenhum. Tinha sido cobrador a vida toda. Não era sua profissão, era parte de quem era. Não mandava em nada na vida, a não ser no seu ônibus. Em casa, quem decidia o que comer era sua mulher. Até o pijama que iria usar, era ela quem deixava em cima da cama. Os filhos decidiam quando iria ao médico. O chefe decidia se trabalharia ou não em um final de semana ou feriado. Até a moça do caixa da padaria mandava nele: tinha decidido que não ia mais vender o estoura peito que ele fumava, e que só venderia a ele um cigarro tipo "light", com menos alcatrão e menos nicotina.
- Cigarro de mulher, essa porra.
Mas, no ônibus, mandava ele. Do seu assento mais alto, falava grosso, para todo mundo ouvir, com sua voz rouca, tipo Adoniram Barbosa:
- Atenção: eu SEI que ainda tem espaço nesse ônibus! E eu não vou deixar essa porra andar enquanto vocês não tiver dado um passo à frente! Então, um passinho à frente, que eu tenho hora para almoçar e fumar meu cigarro "lait"! Alguma dúvida?
Ou, então, nos dias em que tinha enxaqueca:
- Aí, é o seguinte: eu trabalho aqui faz mais de 40 anos e não aguento mais esse barulho dessa maldita dessa cordinha que vocês puxa! Então, NÃO PUXA. Basta fazer "psiu" e eu aviso o motorista, com 3 batidinha no vidro, com essa moeda de 1 real. Ele ouve! Então, para aqueles que não entendeu, vou repetir: Não puxa a corda! Faz "Psiu"! Eu NÃO vou olhar para você quando você fazer "Psiu", porque a) eu não preciso; e b) porque você é feio. Se eu bater na janela com a moeda, é porque ouvi o seu "Psiu". Eu sou velho, mas não sou surdo. Alguma dúvida?
Ou, quando via um malandrão querendo encochar uma moça:
- Um aviso aos passageiros! Eu gosto de mulher e sei que muitos aqui também gosta. Mas não é por causa disso que vamos por aí encochando e desrespeitando as moça. Temos, neste ônibus, neste momento, um vagabundo que está querendo se aproveitar para tirar casquinha das moça. Neste ônibus, não! Quem quer tirar casquinha, vai cutucar ferida. Ou desce do ônibus e pega o próximo. Mas, no meu ônibus, ninguém tira casquinha de moça! Alguma dúvida?
Naquele ônibus, mandava o Tião. Ali, ele era o rei. Ninguém duvidava.
Naquela tarde, horas depois do treinamento, estava sentindo uma dormência no braço esquerdo e uma ardência no peito, que ele tinha certeza que era azia por causa da coxinha xexelenta que comera naquela manhã.
Era infarto. Morreu, no caminho de casa. Tinha renovado o desodorante, antes de sair.
Morreu dentro do ônibus, sem o uniforme de cobrador, sentado, quieto e anônimo, como outros passageiros. O cobrador não o conhecia. Era um rapaz de 18 anos, que tinha acabado de entrar na empresa e não percebeu que ele não estava dormindo. Só se deu conta no ponto final, quando ele não desceu.
Nunca mais se ouvir falar de outro rei de um castelo móvel. Morria naquela tarde Tião, o cobrador-rei, que nunca mandou em nada, que não fosse o seu próprio reino sem súditos. Morreu feliz, convicto do próprio poder. Em paz e em movimento, nômade como seu reino. E disso, ninguém duvidava.
Sábado à noite. O leve cheiro de carpete gasto o lembrava de que precisava comprar um daqueles cheirinhos de ambiente para dar um ar pessoal ao local, com paredes cor de nada.
Não tinha programa nenhum. Tomou banho, decidindo o que iria fazer, enquanto via a espuma branca do shampoo escorrer pelo ralo. Desodorante. Pente. Cueca, calças, meias, camisa. Sem perfume. Preguiça.
Iria sair, talvez. Cinema? Nah! Poderia fazer qualquer coisa. Para que se fechar sozinho, ainda que rodeado de gente, em uma sala escura, com um balde de pipoca na mão? Não. Faria algo mais interessante, claro.
Quase pegou o carro e saiu dirigindo. Poderia facilmente dirigir por horas, centenas de quilômetros, para algum lugar onde houvesse perfume, brisa fresca e sorrisos.
Poderia ligar para uns amigos, poderia ir dançar, poderia ir ao teatro, que adorava. Poderia tentar escrever algo que prestasse. Poderia jantar em algum lugar novo. Poderia ver pornografia na internet.
Mas, não. Foi ao Carrefour, comprar sabonete e desodorante. E observou as pessoas, com respeito. Notou que os olhos de quem faz supermercado num sábado à noite têm um que de resignação e paz. Olhos de tanto faz.
Comprou também Ferrero Rocher, para quando a boca ficasse amarga, depois que as luzes se apagassem. E bolacha recheada de doce de leite. Porque a dieta iria começar só na segunda-feira, como em todas as outras.
Fez o que tinha que fazer e voltou. Notebook no colo. Norah Jones. Mãos sobre o teclado. Tela em branco. Tela em branco. Tela em branco. Ar condicionado fraquinho, travesseiro macio e lençol cheiroso. Tela ainda em branco e olhos pesados. Mão no abajur.
Há momentos em que se pode fazer qualquer coisa. Qualquer uma. Tem-se todas as opções à disposição. Inclusive, a de estar só. Click!
Aconteceu. Fui vestir a camisa e vi: faltava um maldito de um botão. E acho que ele fez de propósito. "Nunca tinha pensado nisso, né, mané? Então, vai! Me costura nessa camisa, que eu quero ver!". Os outros botões, pareciam rir. Carinhas redondas, com seus pares de olhos tirando sarro de mim, gargalhando junto com suas respectivas casas, da minha incompetência em cuidar de mim mesmo.
Desgraçados. Não sei como se costura um botão! Fui pacientemente ensinado e juro que prestei atenção. Mas nunca usei o que aprendi... e esqueci. Passa-se a linha de trás para frente ou de frente para trás? Quanto de linha devo usar para que não fique solto, nem apertado demais? A linha precisa ser da cor exata da camisa, ou pode ser só aproximada?
Porque se tiver que ser exata, eu estou ferrado! Quantas linhas vou precisar comprar para combinar com cada camisa que tenho? Aliás, onde é que se compra linha? No Carrefour não deve ser... Não me lembro de ter visto, jamais. Deve ser numa loja de.... como é que chama aquela loja com coisas de costura? Armarinhos? Como vou comprar uma coisa se não sei nem o tipo de loja que a vende?
Também não vou levar para a costureira! Não! Eu tenho vergonha nessa cara! Sou um homem adulto, inteligente, moderno. Preciso conseguir resolver um problema simples como este! E não, não venha me sugerir para ver um tutorial no YouTube! Tenho quase 40 anos, não 14! Tenho barba branca, já!
Confesso: me dá medo do fracasso, ao imaginar esses meus dedos grossos e duros, tentando desempenhar esta tarefa que vi outras mulheres, de dedos precisos e delicados, fazerem com desenvoltura e facilidade. Imagina o meu biquinho, tendo que lamber a linha para enfiar no buraquinho da agulha!
É, mas vou ter que fazer, mesmo. Não vai ter jeito. Tenho que enfrentar este fantasma. Tenho que ser homem o suficiente para costurar um botão numa camisa. Sou um macho! Sou macho com pedigree! É! Vou me tornar um mestre da linha e agulha. Vou costurar botões, vou cerzir. E não vai ser só isso! Vou aprender a fazer tricô e crochê! E também descobrir um shampoo que não deixe meu cabelo feito uma palha! E vou comprar minhas próprias cuecas e meias! E providenciar um cheirinho bom para o ambiente! E vou aprender a fazer bolo de chocolate - daqueles com cobertura cremosa, bem melecada! E de cenoura! E pudim! E vou decidir quando trocar a roupa de cama e quanto de Comfort colocar na máquina! E vou lavar a roupa separada por cor! E vou aprender a tomar chá! Vou fazer a porra toda, feito homem que sou.
Mas isso, só amanhã. Agora já está tarde. Vou tomar meu leitinho, colocar meu pijaminha e mimir. Pelo menos, esse pijaminha não tem botão. Ele não me julga. Não ri de mim. Meu pijaminha me aceita assim, do jeito que sou: ignorante e acomodado, sim. Mas, macho. Muito macho!
Beijar as pessoas é coisa corriqueira. Felizmente. Às vezes é um só beijinho no rosto, uma "bochechada" - em que os rostos se encostam, mas os lábios só estalam -, daquelas que se dá em colegas ou conhecidos. Ou pode ser beijo de amigo, daquele em que os lábios encontram o rosto do outro. Ou pode ser beijo na boca. Para os mais jovens, talvez uma sucessão de bocas sem nome, em ficadas efêmeras e irrelevantes. Para os enamorados, uma janela para dentro do outro. Para o casal já estável, talvez uma frasezinha sem palavras: "Tenha um bom dia, amor".
Lembro-me, na pré-adolescência, quando comecei a cumprimentar as meninas com um beijinho no rosto, que eu fazia com aparente naturalidade, mas sempre com especial ansiedade.
Lembro-me dos primeiros beijos na boca desengonçados e cheios de técnica ensaiada e pueril.
Lembro-me dos beijos de corpo todo, sem técnica nenhuma, e cheios de pele, mãos e verdade.
Lembre-me dos beijos em pai, mãe e irmão.
Lembro-me de beijinhos em bochechas e barriguinhas e testinhas e pezinhos e cabelinhos de crianças que me fizeram acreditar que, ufa, eu devo valer alguma coisa nesta vida.
Beijar é parte do cotidiano. Não sabemos dizer quantos beijos damos ao longo de um só dia. Mas há um beijo que é singular. Este, talvez se possa saber quantos foram, ao longo de toda uma vida. É um beijo que se pode dar em homem, em mulher, em criança, em idoso. E, apesar de tão universal, é o mais raro; o diamante dos beijos: o beijo na mão.
Não estou me referindo ao beijo de galanteio, que hoje pareceria anacrônico e tolo. Nem estou falando de "A sua benção, padre". Não. Falo do beijo que se dá na mão de alguém, por devoção. É aquele beijo que se dá como o melhor dos agradecimentos, porque qualquer palavra seria rasa demais. É uma gratidão que transborda e precisa virar pele. É um "Não acredito que você exista para mim".
Beijar a mão de alguém é beijar sua alma. É orar para um Deus que tem nome e rosto e pele. É adorar sua imprescindibilidade. É torcer para que a vida lhe seja tão generosa quanto foi conosco, por termos aquela pessoa a quem beijar.
Beijar a mão é fazer-se oferenda, quando todas as outras formas de agradecer seriam tolas; quando a dádiva é tão grande, que só cabe agradecer com o próprio corpo; só se pode agradecer com aquilo que se é, e não com o que se pode dizer ou dar.
Beijar a mão é acolher-se no ninho, enquanto se explode de gratidão.