Tinha sido um namoro curtíssimo, mas intenso. E por serem talvez tão iguais, ou talvez tão diferentes, passados poucos dias desde o primeiro beijo, havia muitos motivos para continuarem namorando, e também muitos motivos para terminarem. Todos bons motivos. Todos legítimos. Prevaleceram os últimos. Terminaram. E mantiveram, desde aquele noite, distância. Silêncio.
Passada uma semana desde o término, Carina acordou bem disposta. Ainda pensava nele, e ainda doía. Mas, pela primeira vez em dias, sentia-se bem. Passara aquela semana em viagem a trabalho, em uma pequena cidade de interior. Não sabia se aquela semana, sozinha naquela cidade, havia sido uma coisa boa ou não. Se, por um lado, permitia-lhe desfrutar de uma bem-vinda distância inevitável e completa, por outro dava-lhe tempo demasiado para ficar sozinha com os próprios pensamentos. O fato é que, mesmo distante e sozinha, acordou bem naquela manhã
Não se achava uma mulher particularmente interessante. Achava-se inteligente, gentil, educada, agradável. Mas não se achava nem um pouco atraente. Não entendia o quê, afinal, ele havia visto nela. O quê será que pareceu-lhe tão atraente naquela mulher que, no espelho, via uma pessoa tão sem cor, tão triste e tão sem graça?
Voltou para casa. Finalmente havia acabado aquele dia e aquela semana. O trajeto desde a pequena cidade até sua casa havia sido cansativo. Mesmo assim, como estava sentindo-se bem disposta, resolveu passar no shopping center, para comer alguma coisa. Não queria chegar em casa e ainda ter que cozinhar.
Foi ao shopping, sentou-se à mesa de um restaurante e comeu sozinha, navegando na internet pelo velho celular, do qual ela jurava que iria desfazer-se em breve, e trocar por um mais novo. E, quando terminou o prato, achou que conseguiria manter a promessa que havia feito para si própria: a de não procurar nenhuma mensagem dele. Mas não cumpriu. Antes da sobremesa chegar, já havia procurado, mas nada encontrou. Veio a sobremesa: petit gateau - talvez porque precisasse de um pouco de chocolate. Comeu só o gateau e deixou o sorvete.
Pagou a conta, levantou-se e procurou o batom na bolsa. Não estava. Onde teria deixado o batom? Lembrou-se: ficara no criado mudo, ao lado da cama, no quarto do hotel na pequena cidade onde tinha passado a semana, 600 Km dali.
Passou numa loja de maquiagens, para comprar um batom novo. Ainda daria tempo? Daria, eram 21h, ainda. Não era mulher de ter 1000 batons. Tinha 3 ou 4, apenas um de cada cor. Pediu à atendente um batom clarinho. Batom, em geral, era clarinho. A maquiagem, ainda que visível e bem-feita, era geralmente discreta. Vermelho, em geral, só mesmo nas unhas. Nos lábios, só em ocasiões especiais ou em dias em que se sentia poderosa, o que era pouco frequente.
A atendente deu a ela de brinde um porta-batons, um daqueles estojinhos com um espelhinho retangular, comprido e estreitinho. Carina agradeceu-lhe a gentileza e, sem pensar, abriu o estojinho para olhar os lábios, enquanto passava o batom recém-comprado. Não havia porque olhar-se naquele espelhinho, já que a loja era cheia de espelhos grandes e bem iluminados. Mas, sem perceber, foi no espelhinho mesmo.
Ao olhar o reflexo no espelhinho, espantou-se: achou seu lábios lindos. Não só a cor, mas a forma. A pele clara, em volta dos lábios, parecia-lhe também especialmente bela. Ficou alguns segundos admirando a própria beleza, naquele espelho estreito. Não, não estava só bela. Estava linda!
Virou-se para olhar no espelho grande, da loja. Mas o espelho refletia a mesma imagem de sempre, sem graça. Olhou-se em mais outro espelho. Idem. Voltou a olhar-se no espelhinho do estojo do batom. Lindíssima. Achou que tinha enlouquecido. Como pode um espelho refletir de um jeito, e todos os outros refletirem de outro?
A atendente, percebendo a agitação dela, perguntou se estava tudo bem. Mas ela apenas agradeceu e saiu da loja correndo, meio atordoada, meio feliz. Queria chegar em casa logo e estudar aquele espelho. Chegou, largou a mala na sala, tirou os sapatos - como tinha conseguido ficar de salto alto tantas horas? - e correu para o banheiro, descalça. Acendeu a luz, olhou-se no espelho grande e viu-se como sempre: normal. Abriu o estojinho do batom: linda. Como assim?!
Moveu o estojinho, de forma a ver seus olhos. Grandes, como sempre. Mas refletiam-se belos e intrigantes. Afastou um pouco o espelhinho, para tentar ver-se um pouco mais, naquele reflexo tão estreito. Esticou bem os braços. A pele fina, quase sem marcas, refletia-se clara e delicada. Quase podia dizer que a pele refletia-se perfumada, até.
Àquela altura, ouvia sua própria respiração, acelerada. O coração batia forte. Abaixou o espelhinho e, no espelho maior, notou seu rosto cansado, depois de uma dia longo de viagem. Precisava de um bom banho e uma boa noite de sono. Definitivamente, o reflexo do espelho de rosto do banheiro continuava não combinando com o do espelhinho do porta-batom. Desinteressantemente normal em um; deslumbrantemente encantadora em outro.
Tomou seu banho e deitou-se imediatamente. Estava intrigada e contente com aquele reflexo especial, que aquele espelho mágico lhe oferecia. No dia seguinte, consultaria uma amiga, para saber o que ela via. Não tardou a dormir. Estava realmente cansada. Dormiu um sono só, sem despertar-se durante toda a noite.
Acordou de repente, sem sobressaltos. Era preguiçosa ao acordar, especialmente nos finais de semana. Ficava na cama, namorando o travesseiro macio e o silêncio, tão valioso e raro em uma grande cidade. Mas, naquele dia, não. Acordou instantaneamente, como se alguém a tivesse ligado na tomada de repente. Não tinha o menor sono, mesmo tendo dormido apenas algumas horas. O dia ainda estava amanhecendo.
Levantou-se, foi até a cozinha, tomou um copo d'água e foi ao banheiro, mesmo sem estar com muita vontade. Acendeu a luz e, ao lavar as mãos, viu o porta-batom, que havia deixado na pia. Abriu o estojinho e olhou-se, para ver se continuava mágico. Continuava. No espelho grande, olheiras. No pequeno, olhos doces e vivos. Belíssimos. Continuava sem entender, mas estava feliz. E sentir-se genuinamente feliz, depois de uma semana de tristeza, distância e silêncio, era um presente.
Iria mantê-lo ali, junto com os objetos que ficavam na prateleira do banheiro. Mas a cola que prendia o espelhinho ao porta-batom era fraquíssima. E, ao começar a fechá-lo, o pequeno espelho soltou-se. Carina soltou um "Ah, não!", enquanto o via cair e espatifar-se em mil pedaços, no chão do banheiro. "Ah, não! Ah, não! Ah, não!".
Abaixou-se, apanhando no chão os pequeníssimos pedaços do espelhinho, sem acreditar na tristeza daquele momento. O único motivo de alegria naquela semana havia tornado-se, em uma fração de segundo, um reforço à sua tristeza. Carina chorou. "Ai, que droga!". Era a mesma frase que tinha dito chorando, abraçada ao ex-namorado, no momento em que se despediam, dias antes.
Arrasada, voltou ao quarto e obrigou-se a dormir. Conseguiu, finalmente. Acordou quase meio-dia. "Que se dane", pensou. Estranhou o silêncio. Àquela hora, a rua deveria estar muito barulhenta, mas não se ouvia absolutamente nada. Silêncio total.
Calçou suas sandálias - aquele piso sempre lhe parecia frio ao despertar, especialmente em dias tristes - levantou-se e, à porta do banheiro, viu os caquinhos do espelho, que permaneceram no chão. Fez um rápido coque nos cabelos lisos, borrifou um pouco do sabonete líquido nas mãos, abriu a torneira e lavou bem o rosto. Secou-se delicadamente e olhou-se no espelho do armário do banheiro.
Riu, de felicidade e espanto. O espelho grande refletia a mesma imagem linda que o espelhinho pequeno refletira antes de se quebrar. Correu até o quarto, onde havia um espelho de corpo inteiro, do lado de dentro da porta do armário. Quase nunca usava aquele espelho. Abriu a janela, para deixar a luz do sol entrar. Abriu a porta do armário e viu-se no reflexo grande.
De camisola, com um coque nos cabelos e Havaianas nos pés, Carina viu-se linda como jamais havia se sentido. Admirava-se com o coque natural e displicente, com uma parte da franja solta; com a pele lisa e macia dos braços, as pernas bem torneadas, o colo vistoso e delicado exposto pelo decote generoso daquela camisola nova, que só ela conhecia; o sorriso aberto e honesto, os dentes brancos e perfeitos e os olhos escuros atentos, que enxergavam especialmente bem naquela manhã silenciosa - "Ih! Dormi de novo com as lentes de contato!" disse em voz alta, sorrindo. Não podia acreditar no que via. Carina estava, verdadeiramente, linda.
E assim permaneceu. Ela nunca achou explicação para o fenômeno que se passara com aquele espelhinho que se quebrara. Chegou a comentar com as amigas sobre o ocorrido, que elas acharam ser apenas brincadeira. Mas o fato é que, daquele dia em diante, todos os espelhos, dentro e fora de casa, por alguma razão inexplicável e feliz, passaram a refletir a mesma Carina que o espelhinho um dia refletira. Em alguns dias mais bonita, em outros mais normal. Mas, em todos, tão linda quanto o rapaz a vira, e muito mais bela do que jamais havia acreditado ser.
Que graça! Quantas vezes a gente se sente tão feia! Basta apenas um re-olhar-se com carinho, traduzido em auto-estima, para nos sentirmos lindas.
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