terça-feira, 18 de novembro de 2014

Sem pegada



"Toda perfeição é um defeito"
Voltaire, pensador francês

Faltava-lhe algo. Ela não sabia dizer o que era. Era bem apessoado, até. Falava direitinho, sabia usar acento circunflexo e sabia a diferença entre rímel e blush. Era um homem sensível, cuidadoso, atencioso. Um bom partido, sem dúvida.

Mas faltava-lhe algo. Na verdade, sobrava-lhe esmero. A barba estava sempre feita, as unhas sempre cortadas, o hálito sempre fresco, o desodorante sempre renovado. Faltava-lhe ser mais cru, mais rebelde, menos civilizado. Precisava de alguma coisa que a fizesse acreditar que ele seria capaz de algo impensável, impetuoso; algo que a surpreendesse.

Queria acordar de manhã insegura se ele ainda estaria ali. Queria temer ser traída. Queria ficar enciumada com alguma mensagem de WhatsApp suspeita depois da meia-noite. Queria tentar entrar no banheiro enquanto ele tomasse banho e encontrar a porta trancada.

Mas, não. Ele queria ouvir música baixa depois das 22h, queria lavar a louça depois da janta, queria escovar os dentes antes de beijar pela manhã. Queria usar cotonetes. Johnson.

Um dia, ele dormiu na casa dela e ficou até mais tarde, depois que ela saiu para trabalhar. Quando voltou do trabalho, deparou-se com seu maior medo: ele tinha feito a cama, arrumado perfeitamente os 10 travesseiros, lavado a louça e deixado bilhetinhos apaixonados.

Não, não ia dar certo. E, ali, decidiu: iria deixá-lo, coitado. Era um bom partido, sim, mas faltava-lhe pegada. Era isso! Faltava-lhe pegada. Faltava-lhe loucura. Faltava-lhe ser um pouco menos perfeitinho.

Ela estava convicta: queria o bom. Apenas o bom. O perfeito, não. Perfeito era demais...

domingo, 9 de novembro de 2014

O Rei do Castelo Móvel


Estava entre os 60 e 70 e tinha desistido de aparar os pelos nas orelhas. Já estava aposentado, mas continuava trabalhando. Achara muito monótona a vida em casa. Não aguentou uma semana sequer.

- Essa porra dessa mulher fala demais! - dizia sobre a esposa. Sempre temperava as frases com um palavrão.

Era um homem franzino, baixo, de pele morena e bigodinho. Apesar de casado há muitos anos, não tinha aquela barriga redonda, característica dos homens que já arrearam a âncora há anos. Mas não fazia atividade física de nenhum tipo. Era magro porque era magro, mesmo. Comia pouco, dormia pouco. Tomava muito café e fumava 2 maços desde os 14 anos. Os dentes amarelos e os dedos longos e finos, encardidos pela nicotina, revelavam o vício, que ele não fazia nenhuma questão de largar.

Era um homem rude. Havia parado de estudar aos 13. Aos 18, tornou-se cobrador e nunca mais deixou de sê-lo. Ficou ali, naquele trabalho, por anos e anos. Acordava às 03h30 e antes do sol nascer já estava circulando pela cidade como um sentinela, no seu assento mais alto, com o couro gasto, revelando um pedaço da espuma. Sentava com as pernas abertas, para não apertar as partes.

Nunca tirou carta de motorista. Nunca se interessou por dirigir. A viagem mais longa que fez, foi para Sorocaba, para o casamento de um primo. Nunca tinha lido um livro e na TV só assistia a 2 canais.

Seu novo chefe tinha 41 anos - a idade do seu filho mais novo - e tinha feito especialização em alguma universidade barata para entrar e cara para sair. Ao assumir o cargo, fez uma reunião com todos os motoristas e cobradores da empresa, numa segunda-feira, dizendo que queria que todos fizessem um novo treinamento de "orientação para o cliente", para melhorar a "experiência dos usuários durante o translado, encantando-os com a eficiência dos serviços".

- Que porra de cliente? Nós temos passageiros! E que porra de translado? Nós fazemos transporte! E que porra de "encantar"? Eu por acaso tenho cara de fada? - disse aos colegas, com seu tradicional mau humor, depois da reunião.

Foi ao treinamento, no dia e horário marcados. Assim que as luzes se apagaram e começou um vídeo intitulado "Você, gerente de si mesmo", levantou-se e foi fumar. Depois, mijar.

- Mulher urina, homem mija - dizia.

Depois, comeu uma coxinha xexelenta e voltou para a sala. Dormiu alguns minutos e, depois que as luzes se acenderam e alguns consultores palestraram durante uns 20 minutos sobre "Interpretação do Perfil de Cliente", ficou repassando mentalmente a escalação do Palmeiras, de 72 a 78. Ao final, respondeu ao questionário, assinalando "Concordo Plenamente" em todos os itens de avaliação de satisfação, só para não ter que explicar do que não havia gostado.

Não precisava de treinamento nenhum. Tinha sido cobrador a vida toda. Não era sua profissão, era parte de quem era. Não mandava em nada na vida, a não ser no seu ônibus. Em casa, quem decidia o que comer era sua mulher. Até o pijama que iria usar, era ela quem deixava em cima da cama. Os filhos decidiam quando iria ao médico. O chefe decidia se trabalharia ou não em um final de semana ou feriado. Até a moça do caixa da padaria mandava nele: tinha decidido que não ia mais vender o estoura peito que ele fumava, e que só venderia a ele um cigarro tipo "light", com menos alcatrão e menos nicotina.

- Cigarro de mulher, essa porra.

Mas, no ônibus, mandava ele. Do seu assento mais alto, falava grosso, para todo mundo ouvir, com sua voz rouca, tipo Adoniram Barbosa:

- Atenção: eu SEI que ainda tem espaço nesse ônibus! E eu não vou deixar essa porra andar enquanto vocês não tiver dado um passo à frente! Então, um passinho à frente, que eu tenho hora para almoçar e fumar meu cigarro "lait"! Alguma dúvida?

Ou, então, nos dias em que tinha enxaqueca:

- Aí, é o seguinte: eu trabalho aqui faz mais de 40 anos e não aguento mais esse barulho dessa maldita dessa cordinha que vocês puxa! Então, NÃO PUXA. Basta fazer "psiu" e eu aviso o motorista, com 3 batidinha no vidro, com essa moeda de 1 real. Ele ouve! Então, para aqueles que não entendeu, vou repetir: Não puxa a corda! Faz "Psiu"! Eu NÃO vou olhar para você quando você fazer "Psiu", porque a) eu não preciso; e b) porque você é feio. Se eu bater na janela com a moeda, é porque ouvi o seu "Psiu". Eu sou velho, mas não sou surdo. Alguma dúvida?

Ou, quando via um malandrão querendo encochar uma moça:

- Um aviso aos passageiros! Eu gosto de mulher e sei que muitos aqui também gosta. Mas não é por causa disso que vamos por aí encochando e desrespeitando as moça. Temos, neste ônibus, neste momento, um vagabundo que está querendo se aproveitar para tirar casquinha das moça. Neste ônibus, não! Quem quer tirar casquinha, vai cutucar ferida. Ou desce do ônibus e pega o próximo. Mas, no meu ônibus, ninguém tira casquinha de moça! Alguma dúvida?

Naquele ônibus, mandava o Tião. Ali, ele era o rei. Ninguém duvidava.

Naquela tarde, horas depois do treinamento, estava sentindo uma dormência no braço esquerdo e uma ardência no peito, que ele tinha certeza que era azia por causa da coxinha xexelenta que comera naquela manhã.

Era infarto. Morreu, no caminho de casa. Tinha renovado o desodorante, antes de sair.

Morreu dentro do ônibus, sem o uniforme de cobrador, sentado, quieto e anônimo, como outros passageiros. O cobrador não o conhecia. Era um rapaz de 18 anos, que tinha acabado de entrar na empresa e não percebeu que ele não estava dormindo. Só se deu conta no ponto final, quando ele não desceu.

Nunca mais se ouvir falar de outro rei de um castelo móvel. Morria naquela tarde Tião, o cobrador-rei, que nunca mandou em nada, que não fosse o seu próprio reino sem súditos. Morreu feliz, convicto do próprio poder. Em paz e em movimento, nômade como seu reino. E disso, ninguém duvidava.

Helder Conde

Inclusive


Sábado à noite. O leve cheiro de carpete gasto o lembrava de que precisava comprar um daqueles cheirinhos de ambiente para dar um ar pessoal ao local, com paredes cor de nada.

Não tinha programa nenhum. Tomou banho, decidindo o que iria fazer, enquanto via a espuma branca do shampoo escorrer pelo ralo. Desodorante. Pente. Cueca, calças, meias, camisa. Sem perfume. Preguiça.

Iria sair, talvez. Cinema? Nah! Poderia fazer qualquer coisa. Para que se fechar sozinho, ainda que rodeado de gente, em uma sala escura, com um balde de pipoca na mão? Não. Faria algo mais interessante, claro.

Quase pegou o carro e saiu dirigindo. Poderia facilmente dirigir por horas, centenas de quilômetros, para algum lugar onde houvesse perfume, brisa fresca e sorrisos.

Poderia ligar para uns amigos, poderia ir dançar, poderia ir ao teatro, que adorava. Poderia tentar escrever algo que prestasse. Poderia jantar em algum lugar novo. Poderia ver pornografia na internet.

Mas, não. Foi ao Carrefour, comprar sabonete e desodorante. E observou as pessoas, com respeito. Notou que os olhos de quem faz supermercado num sábado à noite têm um que de resignação e paz. Olhos de tanto faz.
  
Comprou também Ferrero Rocher, para quando a boca ficasse amarga, depois que as luzes se apagassem. E bolacha recheada de doce de leite. Porque a dieta iria começar só na segunda-feira, como em todas as outras.

Fez o que tinha que fazer e voltou. Notebook no colo. Norah Jones. Mãos sobre o teclado. Tela em branco. Tela em branco. Tela em branco. Ar condicionado fraquinho, travesseiro macio e lençol cheiroso. Tela ainda em branco e olhos pesados. Mão no abajur.

Há momentos em que se pode fazer qualquer coisa. Qualquer uma. Tem-se todas as opções à disposição. Inclusive, a de estar só. Click!

Com meus botões



"Um homem sozinho está sempre em má companhia."
Paul Valéry, filósofo francês


Aconteceu. Fui vestir a camisa e vi: faltava um maldito de um botão. E acho que ele fez de propósito. "Nunca tinha pensado nisso, né, mané? Então, vai! Me costura nessa camisa, que eu quero ver!". Os outros botões, pareciam rir. Carinhas redondas, com seus pares de olhos tirando sarro de mim, gargalhando junto com suas respectivas casas, da minha incompetência em cuidar de mim mesmo.

Desgraçados. Não sei como se costura um botão! Fui pacientemente ensinado e juro que prestei atenção. Mas nunca usei o que aprendi... e esqueci. Passa-se a linha de trás para frente ou de frente para trás? Quanto de linha devo usar para que não fique solto, nem apertado demais? A linha precisa ser da cor exata da camisa, ou pode ser só aproximada?

Porque se tiver que ser exata, eu estou ferrado! Quantas linhas vou precisar comprar para combinar com cada camisa que tenho? Aliás, onde é que se compra linha? No Carrefour não deve ser... Não me lembro de ter visto, jamais. Deve ser numa loja de.... como é que chama aquela loja com coisas de costura? Armarinhos? Como vou comprar uma coisa se não sei nem o tipo de loja que a vende?

Também não vou levar para a costureira! Não! Eu tenho vergonha nessa cara! Sou um homem adulto, inteligente, moderno. Preciso conseguir resolver um problema simples como este! E não, não venha me sugerir para ver um tutorial no YouTube! Tenho quase 40 anos, não 14! Tenho barba branca, já!

Confesso: me dá medo do fracasso, ao imaginar esses meus dedos grossos e duros, tentando desempenhar esta tarefa que vi outras mulheres, de dedos precisos e delicados, fazerem com desenvoltura e facilidade. Imagina o meu biquinho, tendo que lamber a linha para enfiar no buraquinho da agulha!

É, mas vou ter que fazer, mesmo. Não vai ter jeito. Tenho que enfrentar este fantasma. Tenho que ser homem o suficiente para costurar um botão numa camisa. Sou um macho! Sou macho com pedigree! É! Vou me tornar um mestre da linha e agulha. Vou costurar botões, vou cerzir. E não vai ser só isso! Vou aprender a fazer tricô e crochê! E também descobrir um shampoo que não deixe meu cabelo feito uma palha! E vou comprar minhas próprias cuecas e meias! E providenciar um cheirinho bom para o ambiente! E vou aprender a fazer bolo de chocolate - daqueles com cobertura cremosa, bem melecada! E de cenoura! E pudim! E vou decidir quando trocar a roupa de cama e quanto de Comfort colocar na máquina! E vou lavar a roupa separada por cor! E vou aprender a tomar chá! Vou fazer a porra toda, feito homem que sou.

Mas isso, só amanhã. Agora já está tarde. Vou tomar meu leitinho, colocar meu pijaminha e mimir. Pelo menos, esse pijaminha não tem botão. Ele não me julga. Não ri de mim. Meu pijaminha me aceita assim, do jeito que sou: ignorante e acomodado, sim. Mas, macho. Muito macho!

Helder Conde

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Beijo na Mão

Ilustração de Roswie Goof

Beijar as pessoas é coisa corriqueira. Felizmente. Às vezes é um só beijinho no rosto, uma "bochechada" - em que os rostos se encostam, mas os lábios só estalam -, daquelas que se dá em colegas ou conhecidos. Ou pode ser beijo de amigo, daquele em que os lábios encontram o rosto do outro. Ou pode ser beijo na boca. Para os mais jovens, talvez uma sucessão de bocas sem nome, em ficadas efêmeras e irrelevantes. Para os enamorados, uma janela para dentro do outro. Para o casal já estável, talvez uma frasezinha sem palavras: "Tenha um bom dia, amor".

Lembro-me, na pré-adolescência, quando comecei a cumprimentar as meninas com um beijinho no rosto, que eu fazia com aparente naturalidade, mas sempre com especial ansiedade.

Lembro-me dos primeiros beijos na boca desengonçados e cheios de técnica ensaiada e pueril.

Lembro-me dos beijos de corpo todo, sem técnica nenhuma, e cheios de pele, mãos e verdade.

Lembre-me dos beijos em pai, mãe e irmão.

Lembro-me de beijinhos em bochechas e barriguinhas e testinhas e pezinhos e cabelinhos de crianças que me fizeram acreditar que, ufa, eu devo valer alguma coisa nesta vida.

Beijar é parte do cotidiano. Não sabemos dizer quantos beijos damos ao longo de um só dia. Mas há um beijo que é singular. Este, talvez se possa saber quantos foram, ao longo de toda uma vida. É um beijo que se pode dar em homem, em mulher, em criança, em idoso. E, apesar de tão universal, é o mais raro; o diamante dos beijos: o beijo na mão.

Não estou me referindo ao beijo de galanteio, que hoje pareceria anacrônico e tolo. Nem estou falando de "A sua benção, padre". Não. Falo do beijo que se dá na mão de alguém, por devoção. É aquele beijo que se dá como o melhor dos agradecimentos, porque qualquer palavra seria rasa demais. É uma gratidão que transborda e precisa virar pele. É um "Não acredito que você exista para mim".

Beijar a mão de alguém é beijar sua alma. É orar para um Deus que tem nome e rosto e pele. É adorar sua imprescindibilidade. É torcer para que a vida lhe seja tão generosa quanto foi conosco, por termos aquela pessoa a quem beijar.

Beijar a mão é fazer-se oferenda, quando todas as outras formas de agradecer seriam tolas; quando a dádiva é tão grande, que só cabe agradecer com o próprio corpo; só se pode agradecer com aquilo que se é, e não com o que se pode dizer ou dar.

Beijar a mão é acolher-se no ninho, enquanto se explode de gratidão.

Beijar a mão é ajoelhar-se com os lábios.

Helder Conde



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