quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Meus Ipês Amarelos - para os Palhaços Graças a Deus


"Há memórias que moram na cabeça, muito úteis. 
Essas memórias não doem, são informações que levamos no bolso, ferramentas.
 Mas há outras memórias que moram no coração, são parte da gente."  
   
Rubem Alves  

    
É absolutamente verdade que as histórias dependem do olho do seu narrador. Isto vale aqui, especialmente considerando que ele as viveu em primeira pessoa. Perdoem-me aqueles que viveram estas mesmas histórias e têm delas visões diferentes. E perdoem-me também se os anos apagaram alguns dos detalhes importantes ou tornaram mais vistosos alguns que talvez tenham sido apenas embelezados pela moldura da saudade. Mas é exatamente assim que um garoto, já crescido, vê 3 dos melhores anos que viveu.

Na primavera de exatos 20 anos atrás, com os Ipês Amarelos em plena floração, um garoto magro de voz engraçada estreou em sua primeira peça teatral no Grupo de Teatro Palhaços Graças a Deus. Este texto homenageia um pouco desta história e de seus personagens, que tanto o marcaram. E, humildemente, fala sobre o orgulho de fazer parte dela...



O ano é 1988 e o garoto acaba de chegar à 5a. série. Sempre foi meio lerdo pela manhã, mas daqui em diante não há mais jeito: não poderá mais estudar à tarde. É inevitável ter que estudar justamente no período do dia em que seu cérebro é tão ágil quanto uma ameba em coma.

No segundo dia de aula, uma professora de cabelos curtos e loiros entra na sala e escreve na lousa seu nome e sobrenome, com mais consoantes consecutivas do que ele está acostumado a ver. Ela diz qual será a matéria que irá ministrar: Arte Dramática. "Que raios é Arte Dramática?!".

Passam-se alguns dias, e o garoto sobe ao palco pela primeira vez. Não sente nada de especial. Na verdade, sente-se meio estranho, porque a atividade consiste em, bem, consiste em não fazer nada. Apenas ficar lá, em pé, raspando levemente as pontas dos dedos umas nas outras, para acalmar, para manter-se "à vontade", enquanto se é observado pelos colegas de classe. Enquanto isso, deve transferir periodicamente o peso de uma perna para outra, para uma e para outra. Um "não fazer nada" bastante desconfortável para um garoto prestes a fazer 11 anos, sob os olhares dos colegas de classe, na mesma situação.

Na aula seguinte, triangulação de palco: imaginar o palco como um barco, e dispor os elementos (pessoas inclusas na categoria) de forma a equilibrá-los em cena, para que o barco não afunde. Tarefa de casa: desenhar alguns exemplo de triangulação usando 3, 4, 5, 6 elementos.

Ele a faz às pressas, em uma folha de caderno. Arranca-a e entrega à professora, mas é repreendido: ela não acha adequada uma tarefa feita em uma folha arrancada, cheia daquelas rebarbas na borda do papel. Ele, com toda a extraordinária bagagem intelectual de um menino de 11 anos, já tem o veredito: "Este curso será estranho".

1990. Dois anos se passam e, com eles, muitas aulas de Artes Dramáticas. Ele nunca detestara as aulas até ali, mas também nunca morrera de amores. Com o passar do tempo, e depois de assistir às peças feitas pelos "grandes" do colegial, subir ao palco havia se tornado, digamos, curioso. Apenas curioso.

Particularmente curiosa é também sua voz. Na verdade, curioso é o descompasso entre seu corpo de adolescente, magro e desajeitado, e sua voz, já de um homem adulto. Os colegas brincam, sem maldade, imitando-o. E ele gosta daquela atenção.

A professora de Arte Dramática é agora também sua professora de Português. Exigente e desafiadora como é, passa a demandar da 7a. série muitas coisas com as quais não estão acostumados. E, com o passar dos meses, o garoto, agora com 13 anos, descobre ter certa facilidade para escrever. Os desafios impostos pela professora, em vez de afastá-los, começa a aproximá-los.

O quebra-cabeças começa a fazer sentido: as palavras, que ele está aprendendo a moldar a seu próprio estilo, viram peças úteis no curso de Arte Dramática. E, quando se apercebe disto, ele passa a se interessar também pelas não-palavras, pelas expressões, as posturas e as ações, e o que elas representam, sem serem ditas.

A peça do final de ano, montada com todos os alunos da 7a série, é sua última "obrigação" com o teatro, já que no ano seguinte não há mais o curso de Arte Dramática. Durante a peça, ele participa de uma cena, durante poucos segundos, no papel de um padre, à frente de uma procissão, em absoluto silêncio. Uma música fúnebre os acompanha, enquanto a procissão simplesmente atravessa o palco, de uma coxia à outra. Alguns colegas ficam na coxia "de chegada" fazendo palhaçadas, para que se desconcentrem e riam. Ele não ri. E, ali, orgulhoso pelo simples fato de ter conseguido não rir, percebe que quer continuar a fazer teatro por mais algum tempo. O curioso curso de Arte Dramática definitivamente virou prazer, e o garoto quer mais. Quer muito.

1991. O garoto, já na 8a série e prestes a fazer 14 anos, entra, finalmente, no Palhaços Graças a Deus.

Dia do batismo. É o dia em que se deixa de ser simplesmente um calouro, para virar um Palhaço, para sempre. Pelo menos, é o que dizem os veteranos, com ar solene (que o garoto viria a reproduzir no anos seguintes, exatamente como os que o antecederam).

Batismo de 1992. Clique na imagem para ampliar.
 
São muitos minutos de uma deliciosa ansiedade, enquanto tem o seu rosto maquiado, vendo a maquiagem dos outros, mas sem ver a sua própria. E que sussurros e risadinhas são aqueles dos veteranos? O que será que estão tramando? Como será que escolheram os nomes de palhaço para cada pessoa? E, caramba, que nome será que vai receber?

Ele não espera muito, porque é o primeiro a ser batizado. As palhaças Fantasia e Coxia o chamam ao palco e ele pode finalmente ver sua maquiagem no espelho: uma partitura estilizada. Seu nome de Palhaço: Pavarotti. Um reconhecimento "oficial" àquela curiosa voz de adulto no corpo de garoto. E que orgulho! Uma sensação extraordinária que, ele sabe, não irá se repetir de novo. Ele é, oficialmente, um Palhaço a partir de agora. O que ele não sabe, ainda, é que se lembrará disso todos os dias dali em diante, pelos 20 anos seguintes.

Neste ano de 1991, é a primeira vez que o grupo divide-se em dois, para fazer duas montagens distintas: o infanto-juvenil "Cavalinho Azul", e o adulto "Filme Triste", numa clara demonstração de feeling apurado das diretoras, que antecipam a tendência de "revival" dos anos 60, que só iria se manifestar alguns meses depois, em todo o Brasil. O garoto faz parte da montagem de "Filme Triste": um grupo de rapazes e moças dos anos 60 e suas preocupações inocentes com estudos, namoro, paqueras, curtições, e ao mesmo tempo, uma inexplicável e inapropriada alienação quanto à turbulência política do país naquele momento.

O garoto sempre foi um rapaz bastante reservado. Não exatamente tímido, mas reservado. Nunca foi o centro das atenções, nem buscou ser. Não é feio, nem bonito. É simplesmente normal. Mas, para "Filme Triste", ele recebe o papel de Mário Jorge, o namorador da peça. Nada a ver com seu jeito reservado... mas como não adorar aquela situação e aquela badalação toda? Seu apelido nos ensaios vira MJ (caprichosamente pronunciado em inglês: "ÉM-DJEI"). Ele adora!

Que fascinante o processo de montagem de uma peça teatral! A criação das cenas, os textos, os personagens e as personalidades que vão se moldando, a agitação e o senso de realização...

Especial é também o momento da chegada do figurino e da caracterização: os vestidos coloridos e alegres para as meninas, suas maquiagens com olho de gatinha, as calças justas de tergal dos meninos e as gravatinhas azuis, que eram parte do uniforme escolar na época representada pela peça. Tudo pronto para a estreia! A expectativa e a energia são indescritíveis e palpáveis como um presente embrulhado, que ainda não se pode abrir.

Elenco de "Filme Triste", 1991. Clique na imagem para ampliar.


Entre os meninos, surge (ou talvez já viesse de anos anteriores) o grito "THUNDER-THUNDER-THUNDERCASTS - UOOOOOUU!": uma brincadeira com o desenho animado da infância deles, e que dá àquele grupo de rapazes a sensação de união, de pertencerem a algo único e especial - o que é particularmente forte naquela peça, em que os garotos atuam quase o tempo todo juntos.

Finalmente, a estreia, a concentração e o delicioso nervosismo, perceptível nos olhos arregalados, nos sorrisos ansiosos e nas mãos geladas que se apertam com força, minutos antes do espetáculo. É uma sensação mágica e poderosa de pertencer a um grupo de pessoas que estão ali, de corpo e alma, e que não trocariam aquela experiência por nada no mundo.

Na estreia, o tal garoto esquece-se de uma cena, em que estariam só o seu personagem, Mário Jorge, e a Madalena, interpretada pela bela palhaça Dama da Noite, com sua voz tão peculiar. Mas ele simplesmente se esquece de entrar em cena e ela fica lá vários segundos, esperando-o chegar. No final das contas, chamado às pressas pelos colegas, ele entra e a cena acontece. Ele se desculpa com ela depois e promete a si mesmo que não iria mais deixar aquilo acontecer, perfeccionista como é.

Curiosamente, o garoto guarda o manuscrito daquela cena, com a letra inconfundível da diretora que escrevia com uma Mont Blanc bico de pena preta, que não emprestava a absolutamente ninguém. Encontrá-lo, 20 anos depois, numa caixa de recordações apelidada de "Slices of Life" ("Pedacinhos de Vida"), foi um dos fatores que o motivaram a narrar o presente texto.

Cena de "Filme Triste" (1991), na caligrafia da palhaça Fantasia. Clique na imagem para ampliar

Mas, voltemos a 1991. Foram muitas apresentações, inclusive no TUCA, e até adaptações-relâmpago para uma versão "teatro de arena", realizada em uma escola pública. Um total de quase 20 apresentações, em cujos talentos e esforços de seus amigos Palhaços o encantam: as cenas de baile, as cenas de beijo que despertavam pontinhas de inveja nos garotos (Sulceneide, Sulceneide!!!) e um impecável e emocionante monólogo de encerramento da palhaça Rubrica Perneira, cujos expressivos e diretos olhos azuis choravam com a verdade das grandes atrizes, seguido por "Carcará", na voz de Maria Bethânia.

São muitos aplausos, muitos sorrisos e uma sensação de alegria diferente de tudo o que já sentiu.

Embora no dia-a-dia o garoto seja (ou acredite ser) o mesmo, está inegavelmente fascinado com os aplausos. Recebe cartinhas de "admiradoras", brincadeiras e namora uma de suas "paqueras", na peça: a palhaça Cambalhota, um ano mais velha que ele. As cartas de Anita, sua personagem, para Mario Jorge, escritas e assinadas como se fossem de 1962, faziam parte do texto original da peça, mas nunca chegaram ao palco na montagem final do Palhaços. Ainda assim, tornaram-se lembranças incríveis do processo de criação da peça - e do vínculo que se esboçava, além dela. O garoto reservado, caramba, agora namora uma menina do colegial, cara!!!!


O garoto não cabe em si. E é devidamente alertado por algumas pessoas próximas, como a palhaça Fofucha, em uma carta pessoal, que está lá, também na caixinha, guardada: "não misture as bolas, não se encante demais consigo mesmo. O excesso de auto-confiança poderá decepcioná-lo, no futuro". Isto vem, sim, a fazer sentido para ele, alguns anos depois. Ele nunca teve a chance de agradecê-la pelos conselhos e pela verdade neles contida, mas lembrou-se muito deles em sua vida adulta.

Mas, por enquanto, não. O sucesso da peça e o sentimento de ter sido visto - ainda que muito mais pelo papel que recebeu, do que exatamente pela sua performance - o enchem de alegria, assim como o orgulho decorrente de uma nítida sensação de um vínculo especial, de respeito, admiração e carinho mútuos, com algumas das pessoas que mais influenciariam sua vida.

Termina o ano de 1991 e começa o igualmente fascinante ano de 1992. É neste ano (veio a saber o garoto só em 2010) que surge o grito de "SEXO" das meninas, para "competir" com o "THUNDERCATS", dos meninos. Soa bobinho, assim, por escrito, mas é engraçadíssimo. Especialmente quando se tem 15 anos...

A diretora acredita que o grupo, entrando no seu 12o. ano de existência, está pronto para um clássico: "Romeu e Julieta", de William Shakespeare. A peça é montada inteiramente com músicas de Chico Buarque.

Montar "Romeu e Julieta" revela-se um desafio em um grupo de teatro-escola, amador, com 20 e poucas pessoas, em que a existência de protagonistas é uma tema delicado e potencialmente espinhoso.

A solução encontrada é criativa e nobre, com vários Romeus e várias Julietas. Seriam diferentes "romances proibidos": um (espetacular) casal de idosos, um belo e muito elegantemente conduzido casal formado por um aluno e uma professora, e o "original", com os filhos das famílias Capuleto e Montecchio. Na verdade, após a publicação deste texto, o palhaço Pluft, que entrara no grupo naquele ano de 1992, lembrou este autor que havia ainda um quarto casal, com um Romeu tímido (o próprio Pluft) e uma Julieta extrovertida. A memória infelizmente não lhes permitiu resgatar quem era exatamente aquela Julieta.

Pavarotti tem a felicidade de ser escolhido Romeu Montecchio. Como Julieta, é escolhida a palhaça Colombina. Só que, sem que saibam exatamente o porquê, o casal no início dos ensaios mostra não ter grande afinidade. Nunca brigaram, nunca discutiram... mas existe entre eles uma certa distância tola e inexplicável - talvez por serem mais parecidos um com o outro do que estão dispostos a admitir - e não muito interessante para um par que deve ser romântico e parecer apaixonado.

Em um desses ensaios, na clássica cena do balcão, realizada nos recém-instalados praticáveis nas laterais do teatro, Julieta falava ao vento sobre sua paixão secreta por Romeu, enquanto ele ouvia às escondidas, para em seguida declarar-se a ela também. No final da cena, o casal se abraça apaixonadamente. Ou, melhor dizendo, deveria se abraçar apaixonadamente. Mas a distância entre os atores é tão visível quanto engraçada. A diretora, divertindo-se com a situação os "ensina" a abraçar:

- Abracem direito, com o corpo todo! Não é só passar os braços! Encostem-se! Assim, ó!

E apertava os dois.

- Abracem-se de verdade! Vocês estão apaixonados, caramba! Vocês não precisam se amar fora daqui, não. Mas devem nos convencer no palco! Devem ser capazes de olhar apaixonadamente para um prego, se precisar!

Sobe ao palco e olha apaixonadamente para um prego na parede.

- Agora, tratem de se apaixonar!

Demora, mas o abraço sai. E, depois da estreia, já na temporada de apresentações, durante a cena do balcão, diversas vezes o garoto se pega admirando a naturalidade com que sua parceira atua e a beleza viva e delicada que imprime à personagem - embora nunca tenha tido a chance de dizer isto a ela, com todas as letras.

Como de hábito ao final dos espetáculos, os atores, no proscênio, conversam com a plateia sobre a peça, sobre o que acharam, do que gostaram, ou não gostaram, o que têm a perguntar. Em uma dessas ocasiões, uma jovem senhora, sorrindo, pede a palavra:

- Posso fazer só uma pergutinha?
Faz alguns segundos de silêncio, mantém o sorriso, e diz:
- Posso levar o Romeu e a Julieta para casa?

O teatro todo a acompanha no sorriso e solta um sonoro "Oooooooh" (de "Ó, que fofo!"). Pavarotti e Colombina se olham e, sem que precisem dizer nada, sabem que aquilo tudo funcionou. A aproximação entre os dois nunca viria a acontecer fora dos palcos. Mas existia, sim, uma química curiosa e inegável, que parecia funcionar em cena e que, muito provavelmente, fosse motivo de orgulho e satisfação para ela tanto quanto era para ele.

O garoto lamenta nunca ter podido assistir à cena do enterro de Julieta, nem mesmo em ensaios - pois sempre estave na coxia, esperando para entrar na cena da qual participaria, logo em seguida. Mas ele lembra-se de ouvir pessoas queridas mencionando que aquela era uma das cenas mais lindas que o grupo já havia apresentado em sua história. Recorda-se apenas da luminosidade bruxuleante das tochas, que sentia na coxia, e do réquien solene e alto... mas isto é tudo. O resto desta cena, para ele, só existe em imaginação, porque nunca a pode ver por completo, assim como Julieta, que nela sempre esteve de olhos fechados.

1993, Anarquistas Graças a Deus. Em oposição ao ano anterior, nesta peça há uma grande família, em dose dupla: o casal de pais, a pajem, os vários filhos, em 2 grupos distintos, que atuam alterando-se entre as cenas. Ambos os grupos, infantil e adulto, montam a mesma peça, e o sortudo garoto tem a honra de poder participar de ambas as montagens, que trazem muitos personagens e muitos novos talentos - certamente alguns dos maiores da história do grupo, em todas as épocas.

A sensação do garoto, agora com 16 anos, é diferente do que fora até ali; uma felicidade intensa, só que mais serena. Como uma paixão que vira amor. A ansiedade sobre o processo de elaboração da peça é menor, talvez por já conhecê-lo dos anos anteriores e por saber que o processo como um todo, e não simplesmente o seu fim, é o que torna tudo tão incrivelmente extraordinário.

Além do mais, sabendo que é o seu último ano no grupo, pensar sobre o fim é exatamente a última coisa que ele deseja fazer...

Os figurinos são - como dizer? - cor de chá. São sépia; cor de fotografia tirada no início do século XX - exatamente a época retratada pela peça.

O garoto interpreta Ernesto, o pai da família Gattai, desta vez alterando a voz, para torná-la um tanto rouca e parecer de um homem de mais idade, com seu sotaque ítalo-brasileiro de meia tigela, mas desempenhado da maneira mais sincera que lhe foi possível fazer.

"Anarquistas Graças a Deus" é uma peça sóbria, mas com várias situações cômicas - talvez mais pelos atores que a interpretaram do que pelo tom do texto. E o garoto lembra-se bem de algumas dessas passagens, apreciadas à época pelo gosto antecipado da saudade iminente que, ele sabia, viria a sentir quando a temporada acabasse.

Em uma cena, em que ele faz o seu próprio genro (?! - coisas de Fantasia...), ele curiosamente é de novo par da mesma palhaça que fez Julieta no ano anterior. Ele a pede em casamento aos sogros, interpretados pela impagável e hilária palhaça Fanikito e um acolhedor e naturalíssimo Chicabon. É simplesmente impossível fazer a cena sem rir, sem se desconcentrar. Depois de algumas vezes, o garoto simplesmente desiste de tentar. O casal de sogros rouba a cena de tal forma, que ele sabe que pode rir sem medo: não existe a menor chance de alguém estar prestando atenção nele. E, mesmo que estejam, veriam o mesmo que em todas as outras pessoas, no palco ou fora dele: risadas.

Há também uma outra passagem curiosa. Passam-se alguns dias da estreia da peça e o garoto está envolvido com a palhaça Xantili (assim mesmo, com X e I no final). Mas, oficialmente, ainda não estão namorando.

Em uma das cenas, Xantili faz uma rica e severa mulher, que inspeciona alguns candidatos para o emprego de motorista. O garoto, Pavarotti, é um deles, e lembra-se que ela dizia mais ou menos assim:

- Eu sou uma mulher fina! E meu motorista deve ter aparência impecável! Deve andar arrumado, perfumado e barbeado!

Os homens, perfilados, ouvem em silêncio.

- E devem ter a mãos e as unhas perfeitamente limpas para trabalhar no meu carro! Limpíssimas, ouviram bem? Deixem-me ver suas mãos!

Os homens mostram as mãos e ela inspeciona, esbravejando e resmungando. Olha primeiro as unhas, em seguida as palmas, de cada um.

Chega a vez do garoto e ela vê suas unhas. Ao virar suas mãos, lê a mensagem secretamente escrita em suas palmas: "Quer namorar comigo?". Ela arregala os olhos, cora-se como uma criança envergonhada, esboça um sorriso contido e continua a cena, sem hesitar. Na coxia, Xantili e Pavarotti tornam-se, oficialmente, namorados.

Mesmo sabendo que a plateia não perceberia, talvez não tenha sido muito adequado misturar as bolas, colocando no meio da peça uma coisa tão pessoal, que poderia ter desconstruído a cena... Mas aquele foi definitivamente o pedido de namoro mais original que já fizera. E ele nunca duvidou, a qualquer tempo, que a imagem do sorriso contido da Xantili compensou em muito os riscos de ter estragado a cena.

A temporada está chegando ao fim. Pavarotti desfruta pela última vez de uma das cenas mais simples da peça. Ele, em um dos praticáveis, sentado com um cobertor sobre as pernas. No outro lado, a palhaça Té Kinfim - talentosíssima! - no papel de Angelina, faz o mesmo. O casal, na cama (da qual a plateia, entre os dois, faz parte), conversa sobre a contratação de uma pajem para as filhas. A cena termina em blecaute e, em todos eles, desde o início da temporada, o garoto pensa em como aquela cena tão simples era tão deliciosa de fazer: a naturalidade do texto e a liberdade de dizê-lo de diferentes modos, as expressões precisas de sua parceira, a segurança da direção em resolver uma cena simples com apenas dois banquinhos, duas pessoas sentadas e um blecaute.

Mas, no último espetáculo, aquele blecaute doi. Cada segundo, doi. Cada fala, tem gosto de despedida. E, ao final, ao som da voz rouca de Raul Seixas em "Tente Outra Vez", Pavarotti chora um choro verdadeiro e desavergonhado. Um choro espedaçado. Um choro intenso, que mistura orgulho pelo que realizou e uma dor inconsolável pelo que sabe que não virá mais. Chora uma saudade que ainda nem veio. Uma saudade dos outros e de si próprio. Acaba ali a jornada de Pavarotti no Palhaços Graças a Deus.

Com o passar do tempo, o azedo da saudade rasgada dá lugar ao sabor doce das lembranças ternas. Ele desiste de pensar no que perdeu e no que deixou de ter, para ficar só com aquilo que ganhou e que ninguém lhe pode tirar: recordações de uma das melhores épocas de sua vida, em que suas semanas gravitavam em torno dos dias em que o grupo de teatro se reunia.

Não houve dia sequer, desde que saiu do grupo, em que não se sentiu Palhaço. Ser Palhaço, e ter vivido as coisas que viveu, deixou no garoto, já crescido, marcas que foram impressas em sua personalidade, em sua forma de ver as pessoas, o mundo e a vida. Para melhor ou para pior, ciente dos seus novos talentos e também dos seus novos defeitos, sua vida foi profundamente influenciada pelo que viveu ali.

Talvez alguns Palhaços não se lembrem de detalhes, ou talvez nem sequer lembrem dos seus nomes de batismo. Mas isto também não é importante. Porque estes Palhaços também viveram coisas naquele grupo que certamente não viveram nem viverão em nenhum outro lugar - mesmo que talvez nem se lembrem mais delas.

As pessoas que hoje fazem parte do grupo certamente não sabem nada a respeito do Palhaço Pavarotti ou de suas lembranças, que, no fundo, talvez não tenham importância alguma, a não ser para ele próprio. O que o orgulha, o que é de fato importante, é saber que gerações e gerações de Palhaços carregam em suas vidas as lições que ali aprendem e ensinam, muitas vezes sem querer, nem perceber. Este é seu maior orgulho nesta jornada: saber que faz parte de uma história que deixa um legado tão importante na vida de tantas e tantas pessoas que, mesmo de épocas tão diferentes (afinal, são mais de 30 anos de história), mesmo que completamente desconhecidas uma das outras, carregam semelhanças e valores que são tão belos quanto atemporais e que os une de uma forma inexplicável.

A primavera é a época da floração dos Ipês. E, especialmente quando florescem os amarelos, é sinal de que está próxima a estreia da montagem daquele ano. Faz 20 anos que o garoto sorri todas as vezes em que vê um Ipê Amarelo florido. E, especialmente nesta época, mesmo com a distância física que às vezes o tempo acaba impondo, lembra com imenso carinho de muitos palhaços que dividiram com ele o palco, os aplausos e que foram, ao mesmo tempo, espectadores e atores importantes da sua vida: Coxia, Pôr-do-Sol, Fuligem, Bastidor, Fofucha, Arrelia, Sereno Orvalho, Alvorada, Cambalhota, Colibri, Amanhecer, Aquarela, Xantili, Tcham Tcham Tcham Tcham, 123 Sinais, Bereré, Colombina, Tim Pim Pim, Batatinha Quando Nasce Espalha a Rama Pelo Chão, Chicabon, Raspa de Tacho, Joystick, Té Kinfim, Pingo, Pluft, Papoula, Ciclorama, Butterfly, Fanfarra, Fanikito, Dama da Noite, Brigadeiro, Peteca, Rubrica Perneira e, a mãe de todos, Fantasia, além de todos aqueles cujos nomes o tempo apagou de sua memória, mas não do legado dos Palhaços Graças a Deus.

Amyr Klink, em um dos seus extraordinários livros, em um trecho que fala das saudades que sente enquanto está em suas viagens solitárias, diz que "Trazia próximos, como nunca, pessoas queridas e amigos, e a provisória distância que nos separava era apenas física. Uma distância real e emocionante, que sabia muito bem como percorrer. Uma distância fácil de resolver. (...) E foi, só - por esses breves instantes que dura um inverno -, que descobri como fazer o tempo correr para tornar próximos todos os lugares, e certas pessoas, por quem se morre de saudades".

Ao escrever este texto, o garoto fez o tempo correr e percorreu distâncias enormes, sem sair do lugar. Sentiu inúmeras vezes o coração acelerado e as pernas inquietas, como se uma parte do seu corpo revivesse as lembranças e sensações que resgatou. Sonhou com o que escreveu, dormindo e acordado. Mas, acima de tudo, humildemente, homenageou em pensamento aquelas tantas pessoas, por quem nunca deixou de morrer de saudades e que tão generosamente dividiram dias tão especiais com ele.

Que os Ipês amarelos continuem a florescer. E que as lembranças da época que simbolizam, continuem deixando marcas indeléveis na vida de pessoas absolutamente inesquecíveis.


     Pavarotti  
 Agosto de 2011   
  


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Medíocre, mas imortal


Peço desculpas pelo texto grande. Mas não faço ideia de como resumir o tema...

Sou um artista medíocre, mas feliz. Não, não estou carente de atenção, de afagos ou dos aplausos dos amigos que me leem - ainda que me sinta muito agradecido sempre que os recebo. O fato é que conheço bem quais são e quais não são os meus talentos, e sei que a arte verdadeira está no segundo grupo.

Não sei fazer poemas, não sei cantar, não toco nenhum instrumento direito, não sei pintar, desenhar ou esculpir. No entanto, sou perdidamente apaixonado por arte. Perdidamente. E, ao longo da vida, venho tentando criar pedacinhos de arte dos quais possa me orgulhar.

Na adolescência, há exatos 20 anos, foi o teatro: uma das épocas mais felizes e mais importantes da minha vida, da qual me orgulho imensamente, e que muito tem a ver com a pessoa que sou. Atuei por 3 anos, no Palhaços Graças a Deus, no colégio em que estudei. Não vou escrever muito a respeito agora, porque pretendo fazê-lo em um texto especificamente para isto, em breve, em meados da primavera, quando os ipês amarelos já estiverem em plena floração.

Mais recentemente, resolvi começar a escrever, sem saber bem o porquê. Estou feliz em conseguir manter este blog com conteúdos pelo menos mensais. E faço-o sem nenhuma pretensão, sem me preocupar com quantas pessoas vão ler, nem que opiniões terão a meu respeito através do que escrevo. Faço-o com imenso prazer, só para não esquecer dos meus próprios pensamentos, muitas vezes tão fugazes. Escrevo, talvez, para poder me lembrar como era lá atrás, quando o futuro de hoje virar presente amanhã. Mas também não é sobre isso que quero falar hoje...

Ainda sob o efeito mágico do show do Bobby McFerrin, que tive a honra de assistir na semana que passou, hoje vou escrever sobre música e sobre dança. E porque preciso delas para viver...

Sempre fui apaixonado por música, desde muito pequeno. Quando eu tinha, sei lá, uns 5 anos, lembro-me de assistir aos primeiros e ainda incipientes vídeo-clipes no programa Realce, na TV Gazeta, na época em que a TV tinha não mais do que 7 canais. Me divertia nos finais de tarde com o Capivara - o personagem que apresentava o programa - e com meu tio, com quem eu assistia.

Andando de carro, lembro-me de ouvir as músicas no rádio tentando listar todos os instrumentos que conseguia escutar, prestando atenção aos seus tímbres e seus "papéis" nas músicas.

Lá pelos 10 anos, ganhei dos meus pais um pequeno teclado Casio, e comecei a dedilhar. Na mesma época de pré-adolescência, começaram os bailinhos lá no prédio, que deixaram lembranças de pessoas queridas e meus primeiros contatos com a dança... e com as meninas.

Depois de muito esperar - era uma época economicamente difícil - ganhei meu micro-system Gradiente com duplo-deck! Era uma sexta-feira, e naquela noite eu quase não dormi, porque fiquei escutando músicas até de madrugada, fascinado com o presente. E passei então a preparar as fitas cassete, com as músicas para os bailinhos.

CD-players, no início muito caros, fui o último a ter... Todo mundo tinha, menos eu. E talvez a longa espera tenha alimentado ainda mais o desejo de ouvir os detalhes e a pureza do som que antes só podia escutar na casa dos amigos.

Algum tempo depois, comecei a estudar piano. Me encantava o seu som solene, e o desafio de tocar coisas diferentes com cada mão era imenso. Não me lembro do porquê, mas parei de fazê-lo algum tempo depois. Nunca perdi o encantamento pelo instrumento, que pretendo voltar a tocar um dia.

Com a adolescência, veio o teatro, que ocupou em mim todo o espaço que havia para a paixão por arte. Minhas semanas giravam, durante 3 anos, em torno dos dias em que havia reuniões do grupo. E, claro, sempre havia muita música. Foi nesta época que me dei conta de que precisaria de arte pelo resto da minha vida.

Mas faltou-me a coragem para tentar fazer da arte propriamente dita a minha profissão. E já, já eu digo porque eu acho que isto foi bom...

Veio a vida adulta, o namoro, a faculdade, o casamento, e muito trabalho. Produzindo vídeos, animações, roteiros e personagens, pude me manter envolvido com música - ainda que ela fosse coadjuvante em um processo eminentemente técnico - e também com atuação, já que fiz a direção e vozes de alguns personagens em filmes que produzimos.

Em alguns dos vídeos, fiz da música o elemento principal. E, quando os produzia, ouvia a música-tema repetidamente, vez após vez, horas a fio, dias ininterruptamente - até que aquela música entrasse no meu sangue. Nunca enjoava.

Foi exatamente nesta época que desenvolvi o gosto eclético que orgulhosamente trago até hoje. Tenho dezenas e dezenas de CDs, de muitos gêneros, de artistas magníficos, mesmo que desconhecidos do grande público. Tive a oportunidade e a honra de assistir a alguns desses artistas em shows ao vivo - e é sempre um orgulho fazê-lo. Com eles, e graças a eles, aprendi a ouvir sutilezas e apreciar com gratidão pequenos toques de genialidade que colocam em suas músicas, pelas quais me apaixonei tão intensamente.

Lembro-me que em 2000, às vésperas do nascimento da minha primeira filha, após vários dias de intenso trabalho e pouquíssimas horas de sono, voltei para casa ouvindo um CD instrumental, só com violão, que continha a música "How Great Thou Art". Foi como se algo maior do que eu (sobre o qual também pretendo escrever um dia), quisesse falar comigo, e me colocar numa sintonia diferente, para receber minha pequena e iniciar uma nova fase em minha vida...

E por aí, foi. Novas descobertas, novas músicas e, por elas, incontáveis paixões. Mas, nos primeiros anos do novo século, ainda que eu me mantivesse próximo à música através dos vídeos que produzia, o excesso de trabalho e o cansaço permanente chegaram ao limite do aceitável. Produzir aquilo deixou de ser um prazer, para virar um processo doloroso e angustiante.

Minha empresa, naquele momento, mudou de rumos - para melhor. Muito melhor! Passamos a trabalhar com internet, e os vídeos ficaram para trás. Meu dia-a-dia tornou-se mais técnico do que jamais fora, e a música deixou de fazer parte dele. Mas, ao diminuir sensivelmente o ritmo do trabalho, passei a ter vida fora dele. Sem a carga de obrigações e stress que o trabalho envolvia, passei a ter espaço e tempo para a arte e para música. E foi exatamente aí que reencontrei-me com elas, através da dança.

Quem diria! Pois é... o CDF aprendeu a dançar... Na segunda metade de 2006, com as filhas já mais crescidinhas, e motivados pelos novos ares que a vida nos trazia e demandava, eu e minha esposa resolvemos iniciar um curso de dança de salão. "Vamos lá, ver como é...". Só que o "ver como é" virou para mim paixão imediata e arrebatadora, que persiste até hoje. E isto também abriu portas para ouvir novas músicas, que antes meu gosto "eclético e pseudo-refinado" não me permitia apreciar.

Quem lê isto talvez possa me julgar um artista frustrado e covarde. Mas se por um lado talvez tenha me faltado a coragem - quase com certeza, também o talento - para seguir atuando profissionalmente, por outro, hoje posso me dar o luxo de ter uma relação com a arte que é de puro prazer. Me assusta me imaginar como ator profissional, ainda que amasse a profissão, pensando um "Ai, que saco! Hoje eu não estou a fim de subir no palco!" - porque afinal, todos nós temos nossos dias de chateação e desmotivação. Para mim, não. Não tenho obrigações com a minha arte, porque não preciso sobreviver dela.

Eu sei que isto soa cômodo, e talvez me impeça de desenvolver plenamente esta tal arte pela qual me digo tão apaixonado. Mas, por outro lado, me permite ter com ela uma relação de prazer em seu estado mais puro: faço quando e como quiser, sem amarras, sem obrigações e sem expectativas de terceiros...

A dança foi a oportunidade de voltar a juntar a paixão pela música, com a paixão e o desafio do teatro. Danço bem? Não. Só engano - como fazia com o teatro, com o piano e agora, com esses textos que alguns amigos pacientes e queridos insistem em ler, apesar do tamanho inadequado para a internet. Mas é este "enganar", este fazer unicamente pelo prazer, que me permite respirar arte, mesmo tendo um dia-a-dia tão técnico. Encontrei, sem querer e por mera força das circunstâncias, um equilíbrio que me permite viver, hoje, feliz e realizado com a arte que humildemente tento produzir, escrevendo, dançando e aprimorando meu ouvido, para que um dia meus dedos possam tocar o que eu escuto com admiração.

Quem tiver interesse em trocar figurinhas musicais comigo, por favor deixe um comentário! Sempre estou interessado em conhecer novidades musicais. Talvez eu possa também apresentar algumas das minhas, que vão da genialidade elétrica e contemporânea de Joe Satriani, à universalidade quase ancestral de Ladysmith Black Mambazo ou de Bobby McFerrin, que me motivou a escrever este texto.

Sim, sou um artista medíocre. Mas, isto não faz de mim um artista frustrado. E muito menos me impediu de descobrir a razão pela qual a arte existe e é tão desesperadoramente necessária: tornar a vida mais feliz e dar formas às lembranças que, de outro modo, poderiam ser apagadas pelo tempo. Porque a arte nos torna, mesmo que medíocres, imortais.




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