terça-feira, 23 de abril de 2013

As Esfihas de Tobias


O primo do cunhado da tia da esposa do meu amigo jura que esta história é verdadeira.

Tobby Saints era o nome dele. Tinha formado-se na faculdade havia um ano e finalmente conseguira entrar como estagiário remunerado (remunerado, veja só!) em uma grande agência de propaganda.

Na verdade, na verdade, o nome Tobby Saints era uma invenção recente, de dois diretores de criação da agência.

- Não! Tobias dos Santos?! Isto é nome de gente comum demais! Tobias?! Quem dá o nome de Tobias a um filho hoje em dia?!
- É o nome do meu pai, gente!
- Que idade tem seu pai? 100?
- 61.
- Nem é tão velho...
- Era o nome do meu avô, também.
- Milênio passado! Você precisa de um nome artístico!
- Artístico?! - Tobias espantou-se com aquela ideia, que lhe soava meio insana - Mas eu não sou artista!
- Todos somos artistas aqui, Tobias.
- Todos nós.
- Somos?
- Somos.
- Tobby!
- O quê?!
- É! Tobby!
- Tobby Saints! Este é o seu novo nome artístico! Tobby Saints!

Pronto: Tobias dos Santos tornara-se Tobby Saints. E decidiu-se também que ele não seria mais simplesmente um estagiário. Tornara-se um trainee. Seu colega, José Carlos, que era mensageiro inteiro, também tivera seu cargo alterado naquele mesmo dia: Superintendente de Internal Mailing, e a Dona Rosa, a copeira, tornara-se Rose, Gerente Senior de Foods and Beverages. Ela nunca conseguiu falar Beverages, coitada. "Em agências de propaganda, todos somos muito, muito importantes. Nossos cargos devem demonstrar nossa relevância", dizia o CEO da firma. Da holding, na verdade.

- Tobby Saints?! Isto parece nome de ator pornô! - observou seu irmão adolescente - Está querendo entrar no ramo?

Mas não adiantou. Já estava decidido: na agência, todos se referiam a ele por Tobby Saints. Passou a usar camisas justíssimas com gravata frouxa de crochet, passou a depilar as sobrancelhas, colocou um brinco na orelha esquerda (que ele tirava, quando chegava em casa) e fez uns leves reflexos no cabelo. Até uma tatuagem tribal ele fez, no fino braço esquerdo, de poucos pelos. Tornara-se um antenado.

Alguns meses se passaram e Tobias começou a interessar-se por uma gaúcha alta, loira natural, recém-contratada. Chamava-se Ellen Vorsicht, filha de um alemão com uma curitibana. Criada em família abastada, bem de vida, ganhara carrão importado (alemão, claro), aos 18 anos.

O que era mero interesse, ao longo de alguns poucos meses deu lugar a uma paixão platônica, da parte dele. Ellen era uma moça simpática, mas um tanto amedrontadora, naqueles seus mais de 1,80 metro, acrescidos dos saltos altíssimos que costumava usar. Ele sabia que, se quisesse chamar sua atenção, teria que fazer algo em grande estilo.

Um dia, depois de ouvir o CEO da agência comentar sobre um restaurante de luxo que costumava frequentar, Tobby decidiu que iria convidar Ellen para jantar no mesmo restaurante. E começou a poupar.

Poupou durante meses. Queria levá-la para comer e beber bem, em um restaurante realmente à sua altura. Tomariam vinhos. Vinhos bons de verdade, franceses. "Vinhos bons são os franceses. Só os franceses. Vinhos americanos são superficiais. Sul-africanos são tolos. Neozelandeses são imaturos. Espanhóis são rudes. Italianos são ultrapassados. Argentinos e Chilenos são sucos de uva de periferia. Brasileiros... ah, fala sério, vai? Não se pode levar a sério um vinho que se compra em supermercado... Quer degustar um bom vinho? Tome um francês, e nenhum outro", dizia o diretor de criação da agência, que dera a Tobias seu nome artístico.

Ao longo de 8 meses, Tobby conseguira poupar 2 mil Reais! Pesquisou na internet, leu algumas críticas em revistas especializadas, para ter uma ideia de quanto gastaria em um bom jantar naquele restaurante, e decidiu que era hora de fazer o convite a Ellen.

- Ela aceitou! Ela aceitou! - gritava ele, sozinho, dentro de seu carro 1.0 recém-comprado, usado mas bem conservado, com DVD, insulfilm e tudo mais! Mal podia acreditar! Ele iria levar Ellen Vorsicht para jantar na sexta-feira seguinte!

E, depois de longos 4 dias, finalmente a sexta-feira chegou. Tobby saiu da empresa mais cedo e foi para casa. Tomou banho, calçou seu melhor sapato, que havia pedido para sua mãe engraxar, e seu terno recém-comprado. Na gravata, que desta vez não era de crochet, finalmente conseguiu, depois de 6 tentativas, fazer um impecável nó Windsor, seguindo passo-a-passo um tutorial do YouTube. E saiu, ansioso, rumo ao restaurante.

Era um elegante salão com paredes cor de ferrugem, bastante amplo, mas com poucas mesas, com muitas taças e uns 9 talhares para cada cliente. A luz baixa e a música instrumental completavam a atmosfera intimista e sofisticada. Nada daquilo assustou Tobby. Ele estava realmente pronto! Aquela seria sua noite. De Tobby Saints e Ellen Vorsicht.

Ela chegou um pouco atrasada. Tinha vindo direto de uma reunião com um cliente. Mas estava linda, como sempre. Sentou-se, cumprimentou Tobby com um rápido beijo no rosto - na verdade, foi uma daquelas bochechadas em que a boca do beijador não chega a encostar da pele do beijado - e pediu uma Perrier com gás, que o maître trouxe pessoalmente, junto com o couvert sofisticadíssimo e o menu, com uma bela capa de couro e páginas grossas e texturizadas.

- Que lindo que é aqui, Tobby! Eu não conhecia, guri! - disse, com seu forte sotaque gaúcho.
- Bonito, né?
- Muito!

Começara bem. Bastava pedir boa comida, tomar uns bons vinhos e, quem sabe, ganhar o que lhe parecia inimaginável alguns meses antes.

O cardápio tinha umas comidas das quais ele nunca ouvira falar. Nem mesmo ela, que já tinha frequentado bons restaurantes. Mas ele já sabia exatamente o que pedir. Tinha realmente se preparado para aquele encontro.

Esquecera-se apenas de um pequeno de detalhe: sabia que o vinho que iriam tomar seria necessariamente um francês, mas não tinha pesquisado antecipadamente qual seria. O maître apresentou-lhe a carta de vinhos, com nomes que ele não se atreveria a pronunciar na frente dela. Mas, afinal, aquilo não haveria de ser problema. Em um restaurante de luxo, como aquele, qualquer pedida seria certa. Olhou os nomes e os preços por quase 1 minuto, como se os analisasse cuidadosamente

1. Montrachet DRC (Pauillac, França) ............ 90
2. Screaming Eagle (Napa Valley, EUA) .......... 97
3. Château Petrus (Bordeux, França) .............. 90
4. Château Le Pin  (Bordeux, França) ............. 99
5. Pingus (Espanha) ........................................ 95
6. Romanée Conti (Bourgogne, França) .......... 97

A carta de vinhos seguia, com várias páginas. Apontou aleatoriamente para o terceiro da lista:

- Vamos tomar este aqui, para começar.
- Excelente opção, senhor. Um dos melhores vinhos de nossa adega, senhor.

Ellen estava impressionada com a postura e com a segurança de Tobby. Nunca pensara nele como sendo um homem sofisticado ou particularmente atraente, mas sentia-se interessada em saber mais sobre ele.

O primeiro prato foi perfeito. O vinho, delicioso.

Final da primeira garrafa. Tobby pediu novamente a carta de vinhos e desta vez apontou para um outro, também francês: o sexto da lista, surpreendentemente ainda mais delicioso que o anterior. Degustaram-no juntamente com prato principal, igualmente impecável.

A conversa fluiu naturalmente. Acharam até um gosto em comum: os dois gostavam de tapioca. Ele aprendera a comer ainda pequeno, porque na rua em que morava havia uma feira livre aos sábados, onde um velhinho, cego de um olho, as preparava, caprichadas, com coco, queijo coalho e leite condensado, bem em frente à sua porta. Ela, por outro lado, aprendera a comer tapioca na viagem que fizera ainda adolescente para Fernando de Noronha, com seus pais, para um curso de mergulho.

Veio a sobremesa: Crepe Suzette, leve e delicioso, preparado à mesa, com belas labaredas durante a flambagem. Em seguida, mais um vinho. Porto. "A única coisa que os Portugueses fazem direito", dissera o CEO da agência certa vez, enquanto conversava sobre vinhos com um dos diretores.

Ao final da taça, Tobby pediu a conta, imaginando que poderia sobrar ainda um pouco daqueles 2 mil Reais que levara.

Chegou a conta: R$ 22 mil Reais. Tobby olhou rapidamente, sorriu e chamou o maître, para corrigir o engano.

- Acho que vocês cobraram a mais... Multiplicaram por 10 o valor da conta! Hehehe - disse, sorrindo para Ellen, que também achara graça do engano.

O maître, em pé ao lado de Tobias, olhou a conta atentamente por alguns segundos, percorrendo os itens com seu dedo indicador, para se certificar de que não houvesse nenhum engano. Fechou novamente a pastinha e entregou-a novamente a Tobby.

- Senhor, a conta está correta, senhor.
- Não pode ser! Esta conta está 10 vezes acima do valor correto!

A tranquilidade de Tobias havia passado por completo. Suas sobrancelhas franzidas tremiam levemente. O maître olhou para Ellen, olhou para Tobby e percebeu a delicadeza da situação.

- O senhor se incomodaria de me acompanhar por um instante, senhor?

Tobias levantou-se impaciente.

- Ellen, vou resolver essa palhaçada e já volto. Com licença. - disse, levantando-se e deixando cair no chão o guardanapo que estava em seu colo.

O celular de Ellen, que estava sobre a mesa, vibrou. Chegara uma mensagem via SMS, que ela olhou enquanto Tobby afastava-se da mesa, atrás do maître. Dirigiram-se a um balcão, de onde Ellen não poderia vê-los.

- Senhor, eu lamento informar, mas a conta está rigorosamente certa, mesmo.

- Parceiro - Tobby respondeu, enquanto olhava novamente a conta, incrédulo -  eu não tomei vinho de 10 mil Reais! Nem este, de 8 mil! Estes vinhos custam, sei lá, 90, 90 e poucos reais! Eu vi na carta de vinhos!

- Perdão, senhor, deve haver algum engano de sua parte. Não temos nenhum vinho na casa que custe menos de R$ 400 Reais, senhor. O senhor pediu dois dos nossos melhores vinhos. Os preços deles estão corretos.

- Vocês só podem estar de sacanagem! Me dá a carta de vinhos!

Abriu a carta de vinhos e conferiu:


1. Montrachet DRC (Pauillac, França) ............ 90
2. Screaming Eagle (Napa Valley, EUA) ......... 97
3. Château Petrus (Bordeux, França) ........ 90
4. Château Le Pin  (Bordeux, França) ............. 99
5. Pingus (Espanha) ........................................ 95
6. Romanée Conti (Bourgogne, França) .... 97


- Olha aqui, ó! 90 e 97 Reais!

O maître comprimiu os lábios e soltou um longo suspiro. Estava desfeito o mal-entendido.

- Senhor, estes não são os preços. São os anos das safras dos vinhos.

Tobby sentiu o sangue gelar nas veias, enquanto o maître abria a orelha dobrada da página da carta de vinhos, que Tobby não vira até então.

- Aqui estão os preços, senhor.

Tobby não podia acreditar no que via. Os preços da conta estavam certos: no total, mais de 18 mil Reais em vinhos. Nem sabia que existiam vinhos daquele preço! Como pôde ser tão estúpido?! Como pôde se preparar tanto para ir a um restaurante tão chique, sem antes pesquisar o preço dos vinhos?! Os dois mil Reais que poupara pagavam somente os pratos, mas não cobriam sequer os 10% do serviço.

- Ah, meu Deus! - as mãos tremiam - Meu Deus!
- Eu sinto muito, senhor.
- Parceiro! - pegou no braço do maître, como se buscasse um apoio ou pedisse um abraço - Eu me enganei! Eu me enganei totalmente! Eu ganho 2 mil Reais por mês! 2 mil! Como é que eu vou pagar esta conta?!

A mão esquerda tapava os lábios, enquanto a direita continuava segurando a conta. Os olhos desesperados, enterrados no cenho franzido, eram dignos de pena.

- Eu não tenho como pagar isto!

A voz já estava embargada. Tobias controlava-se para não chorar. O maître olhava para Tobias e lamentava. Sensibilizou-se com a situação dele, mas nada poderia fazer.

- Eu acabei de comprar um carro em 60 vezes! Estou me matando para pagar R$ 800 por mês! E ainda estou na terceira parcela! Caramba! 22 mil Reais?!

Um filme passava em sua cabeça. Pensava nos seus pais, no seu irmão adolescente jogando vídeo-game, nos malditos diretores da agência e seu CEO metido a besta. Sentiu-se um completo idiota e odiou estar ali. Olhou para Ellen, que, àquela altura, falava ao celular, sorrindo, linda e inalcançável.

Apareceram o chef e o gerente. Ouviram a história toda, não só do jantar, mas uma breve história da vida de Tobias, acompanhada de algumas lágrimas sinceras e muitos "Pelo amor de Deus, gente!". Depois de 10 minutos de conversa, sensibilizados com a sinceridade do rapaz, entraram em um acordo, que ele aceitou na hora: ele pagaria R$ 1.000 no cartão, divididos em 3 vezes, e mais 9 cheques pré-datados de R$ 1.400, cada. O jantar de R$ 22 mil sairia por 13.600. Ainda assim, quase impagáveis.

Tobby voltou quase se arrastando à mesa. Ellen, já impaciente, levantou-se.

- Tobby, uns amigos meus acabaram de me ligar. Vai rolar uma balada na cobertura de um hotel, nos Jardins. Eu vou em casa tomar um banho e vou para lá. Se tu quiser ir...
- Não, Ellen, obrigado. Eu tive uma semana muito difícil e estou muito cansado. Só quero ir pra casa.
- Adorei o jantar, Tobby! Obrigado, tá?

Deu mais uma bochechada nele, virou-se e foi embora, apressada. Nem deu tempo para ele também agradecer. Tobby foi ao toalete, lavou o rosto, respirou fundo e foi-se embora. Passou o fim de semana no quarto, saindo só para comer. Nem banho tomou.

Na segunda-feira seguinte, ficou sabendo pela Dona Rosa, a copeira, que durante aquele final de semana Ellen tinha ficado noiva do ex-namorado, um diretor de atendimento de uma outra agência, com o qual reatara o namoro justamente na sexta-feira à noite, na balada da cobertura do hotel, para a qual havia convidado Tobby.

Nove meses se passaram. No dia em que caiu o último cheque do restaurante, com o saldo exato de 1.401 Reais na conta, Tobby pediu demissão da agência. Nunca mais queria pôr os pés ali.

Um ano depois, ninguém mais pôs os pés ali. O juiz decretou falência da agência na mesma semana em que os sócios passavam férias em Punta del Este. Nunca mais se ouviu falar deles. Dizem que abriram uma agência de receptivo na Costa Rica. Mas ninguém sabe ao certo.

Tobby Saints voltou a ser apenas o bom e simples Tobias dos Santos, e seguiu adiante. Poucos anos depois, casou-se com Cleide, neta do já falecido velhinho cego de um olho, que fazia tapioca na frente da casa dele. Cleide era uma morena baixinha, gente boa, de quadris largos, sorriso fácil e cabelos lisos, muito escuros. Pau pra toda obra, apoiou Tobias quando ele decidiu abrir uma lanchonete em sociedade com o pai, Seu Tobias, já aposentado, mas muito disposto. Era uma lanchonete especializada em esfihas. Só esfihas. Nada de coxinhas, risoles, empadas, nem nada disso. Tobias queria uma daquelas casas especializadas, que ficam abertas de madrugada, aonde a moçada vai depois da balada, para comer um bom lanche, a preços nem altos, nem baixos demais.

E assim aconteceu. Dois anos depois de aberta, graças aos recheios generosos das esfihas e ao segredo da massa inventada por sua mãe, a casa tornara-se um sucesso nas madrugadas, com filas de jovens famintos e antenados. Não tardou para as esfihas de Tobias aparecerem na capa de uma edição da Vejinha São Paulo, eleitas como as melhores da cidade.

Coincidentemente, no dia da publicação da matéria, Tobias fez o primeiro pagamento para a compra em definitivo do imóvel alugado, onde funcionava sua esfiharia. E ali, ao lado de Cleide e do pai, feliz como nunca se sentira na vida, já tarde da noite, Tobias comeu esfihas e brindou com eles e com seus jovens clientes, oferecendo-lhes de graça uma rodada do melhor vinho nacional que conseguira comprar no supermercado, na manhã daquele dia tão feliz.

domingo, 7 de abril de 2013

O Homem da Nuca

Depois de mais de 2 anos escrevendo crônicas neste blog, apesar de poucas, comecei a notar que os assuntos se repetiam. E passei, então, a namorar a ideia de escrever contos, com os vários personagens que me vêm à cabeça - homens, mulheres e crianças com algum traço a partir do qual possa fazer algo que adoro: inventar o todo pela parte; desenvolver toda uma história com base em uma característica pouco ou nada importante. Para os contos, não quero as "morais da história", que este autor iniciante ainda não consegue deixar de inserir nas crônicas. Contos não precisam de conclusão, não precisam de silogismos. São mais livres, enfim, e resolvi que era hora de escrevê-los. As crônicas continuarão a vir, também. Mas, junto com elas, a partir de agora, virão também eles, os contos, maturados ao longo de semanas, ou então criados de supetão, enquanto escrevo, como este.

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O Homem da Nuca

Havia algo na nuca dele, que a atraía. É, na nuca. Naquela parte inexpressiva atrás do pescoço, entre as costas e a cabeça. Não eram os olhos, nem a boca, nem o queixo bem delineado que ele tinha, que a atraiam. Não. Ela gostava da nuca.

Na verdade, ela nem sequer sabia que rosto ele tinha. Ele trabalhava no mezanino de uma loja onde ela ia todas as semanas, de costas para um vidro que ela via do térreo, onde fazia as compras. Lá de baixo, através do vidro, via as costas daquele homem, sempre sentado, trabalhando sem levantar, quase como uma estátua, sem jamais se virar. Nunca vira seu rosto, nem ouvira sua voz. Não sabia se era solteiro ou casado, nem se gostava de bacon. Não sabia se já tinha viajado para o exterior, nem se já havia sido assaltado. Não sabia se era alto, se usava perfume, se gostava de Cat Stevens, nem de MPB. Não sabia nada. Apenas conhecia sua nuca - o único pedaço de sua pele visível através do vidro.

Ela mesma não sabia porquê, afinal, sentia atração por aquela nuca. Nucas são tão interessantes quanto testas, pulsos ou solas do pé. Meros pedaços de pele que servem simplesmente para interligar partes mais nobres do corpo, mais gostáveis e sedutoras. Mas, por falta de outras coisas para gostar naquele homem, Isa interessou-se pela nuca.

Depois de alguns meses vendo, sem ser vista, e intrigada com o mistério daquele homem sem nome e sem rosto, ela notou que começou a passar com mais frequência pelos corredores da loja que lhe permitiam vê-lo. Pegava-se a todo momento olhando para cima, através do vidro, às vezes sem perceber. Não tinha a real pretensão de vê-lo, mas olhava mesmo assim.

Começou a frequentar a loja em horários diferentes. Quem sabe ele se levantaria em algum momento? Talvez na hora do almoço? Mas, nada. Ou ele simplesmente não estava, ou estava lá, de costas, sentado e inerte. Ele e sua nuca indecifrável.

Certo dia, enquanto andava pelo corredor central, olhando para o vidro, Isa deu um forte encontrão em um rapaz magro, de estatura média, sobrancelhas grossas e rosto honesto, com entradas bem pronunciadas no cabelo muito encaracolado. A topada foi tão forte que derrubou o celular, no qual ele falava, e os shampoos que estavam na prateleira.

- Ai, moço, por favor me perdoe! Eu estava tão distraída que não vi!
- Imagine, não tem problema!
- Não, não! Olha me perdoe, eu realmente não sei onde estou com a cabeça!

Envergonhada, abaixou-se na frente dele para apanhar os shampoos que estavam no chão. Usava uma blusa florida e alegre, com decote muito discreto, que não revelava nada, mas permitia ver seu colo de pele muito clara. Ele também abaixou-se, enquanto admirava sua beleza natural e frágil, no rosto sem maquiagem. Ajudou-a pegar as poucas embalagens de shampoo que estavam pelo chão. E pegou também o celular, cujo visor havia quebrado na queda. Pôs no bolso, rapidamente, sem que ela notasse. Não queria que ela percebesse que o tinha quebrado.

Voltaram a levantar, trocando mais algumas palavras:

- Obrigado pela ajuda!
- Imagine! Espero que não tenha se machucado!
- Não, não machucou. Mas tenho que ser mais atenta! Me desculpe.
- Perdoo com uma condição...

Naquela hora, sem querer, como sempre fazia, Isa olhou para o vidro. A cadeira do homem girava no próprio eixo. O homem da nuca havia acabado de se levantar! O mundo ficou em câmera lenta e os sons ficaram abafados, como música embaixo d'água, indistinguível. Será que voltaria? Será que tinha ido embora - que horas são? - ou tinha ido falar com alguém e voltaria em seguida? Tinha ido ao toalete? Será que ela finalmente iria vê-lo?

- A condição é você aceitar tomar um café comigo! - disse o rapaz.

Mas ela não ouviu. Continuava a olhar para o vidro, como uma criança que olha para as mãos de um mágico, momentos antes do truque ser revelado.

O rapaz insistiu:

- Aceita?
- Hã? Ah, desculpe! Eu não ouvi o que você disse...
- Aceita tomar um café comigo?

Ela sorriu, surpresa. Baixou os olhos e prendeu a respiração por um instante. Tirou o cabelo do rosto e colocou atrás da orelha. Estava lisonjeada com o convite, mas não poderia aceitar. Não poderia! Balançava a cabeça. Tomar um café com um estranho, assim, do nada? Não...

A cadeira do homem da nuca já parara de girar, mas ela não viu. Olhava curiosa para o rosto do rapaz, intrigada com o interesse dele por ela. Estaria sendo apenas gentil ou realmente vira algo nela? Antes que percebesse, respondeu, mantendo o leve sorriso e soltando a respiração, que ainda estava presa:

- Aceito! Aceito, sim! - fez uma pausa, pensativa, impressionada com a própria resposta - Vamos tomar um café!

E saíram andando na direção contrária à do vidro, dirigindo-se para o caixa. O homem da nuca retornou. Tinha ido buscar um cappuccino. E, durante alguns segundos, enquanto assoprava para o cappuccino esfriar, ficou ali, de frente para o vidro, observando o casal que se afastava no corredor em frente. Voltou a sentar em sua cadeira, de costas para o vidro, e continuou a trabalhar. Isa nada viu.

Aquele foi o último dia dele na loja. Havia sido promovido a gerente de uma outra loja da rede, que seria aberta em outro estado. Nunca mais pôs os pés ali.

Isa casou-se alguns anos depois com o rapaz de rosto honesto, cujo celular tinha quebrado. Ela nunca havia de fato se apaixonado pelo homem da nuca. Afinal, era apenas uma nuca. Mas lembrava-se dele às vezes, quando ia à loja. E ali, no corredor onde costumava andar na esperança de vê-lo, de vez em quando se pegava pensando em qual seria o seu nome, e se era feliz.



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