terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Com a outra mão



"Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado."
Fabrício Carpinejar, escritor gaúcho

Como em todos os anos desde que comecei a escrever, faço reflexões de final de ano. Esta, é a do ano de 2014.

Antigamente, eu gostava de acreditar que eu era um cara diferente. E a música era a forma de provar isto a mim mesmo. Tolo, eu sei. Mas era assim. Entre os meus 15 e meus 20 e poucos anos, eu gostava de ouvir umas músicas meio incomuns. Passava horas nas lojas de CD "descobrindo" novidades, na época em que nem existia internet e MP3 não queria dizer absolutamente nada.

De uns anos para cá (estou agora com 37), passei a ouvir músicas mais convencionais - talvez porque eu, também, tornei-me mais convencional. Mas, naquela época, gostava de ouvir o que quase ninguém ouvia... Dava-me um certo senso tolo e infantil de singularidade.

O fato é que, no afã de ser pseudo-eclético, conheci muita, muita coisa legal. E, numa dessas andanças em uma loja de CDs, me deparei com uma capa que me chamou atenção, de um álbum intitulado, Fingerdance, de um músico do qual nunca tinha ouvido falar: Billy McLaughlin.

Fingerdance, do álbum homônimo, de 1996

Achei o título interessante. "Dança do Dedos". Fiquei curioso. O texto da capa, dizia:

Close your eyes
Feche os olhos

And you won't believe you're listening to an acoustic guitar
E você não vai acreditar que está ouvindo um violão

Open your eyes
Abra os olhos

And you won't believe how he does it
E você não vai acreditar em como ele o faz.


Achei irresistível! Pedi para ouvir, o vendedor deixou (eles não gostavam muito de abrir capinhas de CD fechadas) e escutei a faixa-título. Foi um daqueles momentos em que você sabe que está experimentando uma coisa especial pela primeira vez. Fiquei absolutamente fascinado com a sonoridade singular, o estilo imprevisível e sofisticado, uma forma que, para mim, com 18 anos, era completamente nova. Comprei o CD imediatamente e ouvi, ininterruptamente, por vários e vários dias. Decorei todas as músicas e sou capaz de cantarolar cada uma delas até hoje, nos mínimos detalhes.

Sempre achei meio assombroso alguém conseguir tocar violão. Toquei um pouco (pouquíssimo) de piano e teclado na adolescência, mas nunca compreendi como é possível alguém conseguir domar um instrumento complexo como o violão: a sincronia dos dedos, a complexidade dos acordes, a destreza. Billy McLaughlin toca praticamente 100% do tempo apenas no braço do violão. Toda a sonoridade das suas músicas sai dali, como se fosse um teclado. É um som diferente, improvável, intrigante e delicado.

Outros gênios já tinham feito isto antes dele, em diferentes gêneros: Hendrix, Jordan, Hedges e outros. Mas foi com ele que ouvi pela primeira vez.

Ele lançou poucos anos depois uns novos CDs, igualmente excelentes. E, depois disso, sumiu. Não ouvi mais falar em Billy McLaughlin. Veio a popularização da internet, ele chegou a ter um site, mas não lançou mais nada. Nem uma música, sequer. Evaporou. Silêncio de muitos anos.

Mas, em 2006, Billy ressurgiu das cinzas, com uma incrível história para contar...

O sumiço teve uma causa. Em 1999 ele começou a "errar" as próprias músicas. Foi aos poucos perdendo a capacidade de tocar. Em 2001, foi finalmente diagnosticado com uma doença neuromuscular incurável, chamada "Distonia Focal". Ela afeta justamente pessoas que fazem movimentos repetitivos, como músicos e atletas, causando contrações involuntárias dos músculos - no caso dele, de dois dedos da mão esquerda. O virtuoso do violão estava completamente impossibilitado de tocar.

Em 2002, sua carreira estava encerrada. De 1988 a 1999, Billy fez mais de 1700 shows. De 1999 a 2006, foram 14. Neste intervalo de tempo, ele perdeu seu o contrato com a gravadora, sua empresa, seu empresário, sua renda. E perdeu também seu casamento e sua casa.

A Distonia Focal roubou-lhe dois dedos. E isto foi o suficiente para roubar-lhe também sua música e sua vida até ali.

Até que ele decidiu fazer o improvável... com a outra mão. Reaprendeu a tocar suas próprias músicas, uma a uma, nota por nota, invertendo a posição do violão, passando a tocá-lo com a mão direita, em vez da esquerda.

Não é tão simples quanto parece... Eu sempre tive facilidade de fazer as coisas com as duas mãos. Não sou um ambidestro verdadeiro - daqueles para os quais é realmente indiferente usar qualquer uma das mãos, já quem ambas têm a mesma desenvoltura. Eu, não. Meu cérebro não foi tão privilegiado. Sou destro, mas com o passar do anos fui me obrigando a fazer coisas com a mão esquerda, de forma que, com o tempo, consegui alguma desenvoltura. Digo que sou apenas um "falso ambidestro".

Mas, quando se toca música profissionalmente, no nível em que ele tocava, a coisa é diferente. Se alguém me exigir que eu escreva tão bem com a mão esquerda quanto faço com a direita, simplesmente não vou conseguir. Uma coisa é escrever de forma que seja legível. Outra coisa é escrever exatamente com a mesma desenvoltura, com a mesma velocidade e com a mesma letra. Não dá; é impossível.

É equivalente a aprender a falar sua própria língua fluentemente, de trás para frente. É como virar o teclado de cabeça para baixo, cruzar as mãos sobre ele e tentar digitar um texto inteiro sem um erro sequer. Não dá. Ou dá?

Bem, ele o fez. Retomou sua carreira em 2006, 5 anos após o diagnóstico. Voltou a compor, voltou a se apresentar. Recuperou a coisa que mais gostava de fazer e para a qual havia tanto se preparado. Recuperou a arte que refletia quem ele era.

Uma história inspiradora, de um gênio cuja teimosia foi tão poderosa quanto o talento, e cujo esforço foi tão grande quanto o sonho de voltar a tocar.

Church Bells, já com as mãos invertidas. 2006

Isso me traz aos desejos para 2015. Para o ano que vem, espero que sejamos um pouco como Billy McLaughlin. Espero não apenas acreditar que é possível fazer "com a outra mão". Acreditar é pouco. Quero ir lá e fazer. Mesmo que demore. Mesmo que dê trabalho e requeira paciência. Mesmo que seja necessário olhar para a própria mão e ensiná-la tudo de novo, insistir, fazê-la conquistar a mesma alegria e a mesma destreza da outra.

Quero reaprender o que sabia, para tocar as músicas que me são importantes, e compor outras músicas que ninguém jamais ouviu. E que eu nem sabia que havia em mim.

Quero fazer com a outra mão, para expor o artista que ainda posso ser, sem negar o que fui. Quero que os silêncios virem música. E que "resignar" seja palavra banida do dicionário.

Quero recompensas e aplausos. Quero inspirar. Quero não ter medo de cair e levantar quantas vezes sejam necessárias. Quero enfrentar o medo e a incerteza. Quero agradecer. Quero conseguir fazer o que eu sei que sei fazer. E também o que nem sei que sei.

Não quero fazer com a outra mão porque me obrigo. Quero porque a outra mão também pode, também consegue. Não para ser melhor, nem diametralmente diferente. Mas possível, viva. Inteira por si.

Porque mesmo não sendo virtuoso, como Billy McLaughlin, sou um puta de um teimoso. E, em sendo, nego-me. E em negando, abro-me.

Em 2015, serei canhoto. Porque tenho um livro para continuar a escrever. E, mesmo que a letra seja diferente do que era, ainda é a minha letra. Me orgulho dela. E minha outra mão, também.

Feliz 2015!

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Sem pegada



"Toda perfeição é um defeito"
Voltaire, pensador francês

Faltava-lhe algo. Ela não sabia dizer o que era. Era bem apessoado, até. Falava direitinho, sabia usar acento circunflexo e sabia a diferença entre rímel e blush. Era um homem sensível, cuidadoso, atencioso. Um bom partido, sem dúvida.

Mas faltava-lhe algo. Na verdade, sobrava-lhe esmero. A barba estava sempre feita, as unhas sempre cortadas, o hálito sempre fresco, o desodorante sempre renovado. Faltava-lhe ser mais cru, mais rebelde, menos civilizado. Precisava de alguma coisa que a fizesse acreditar que ele seria capaz de algo impensável, impetuoso; algo que a surpreendesse.

Queria acordar de manhã insegura se ele ainda estaria ali. Queria temer ser traída. Queria ficar enciumada com alguma mensagem de WhatsApp suspeita depois da meia-noite. Queria tentar entrar no banheiro enquanto ele tomasse banho e encontrar a porta trancada.

Mas, não. Ele queria ouvir música baixa depois das 22h, queria lavar a louça depois da janta, queria escovar os dentes antes de beijar pela manhã. Queria usar cotonetes. Johnson.

Um dia, ele dormiu na casa dela e ficou até mais tarde, depois que ela saiu para trabalhar. Quando voltou do trabalho, deparou-se com seu maior medo: ele tinha feito a cama, arrumado perfeitamente os 10 travesseiros, lavado a louça e deixado bilhetinhos apaixonados.

Não, não ia dar certo. E, ali, decidiu: iria deixá-lo, coitado. Era um bom partido, sim, mas faltava-lhe pegada. Era isso! Faltava-lhe pegada. Faltava-lhe loucura. Faltava-lhe ser um pouco menos perfeitinho.

Ela estava convicta: queria o bom. Apenas o bom. O perfeito, não. Perfeito era demais...

domingo, 9 de novembro de 2014

O Rei do Castelo Móvel


Estava entre os 60 e 70 e tinha desistido de aparar os pelos nas orelhas. Já estava aposentado, mas continuava trabalhando. Achara muito monótona a vida em casa. Não aguentou uma semana sequer.

- Essa porra dessa mulher fala demais! - dizia sobre a esposa. Sempre temperava as frases com um palavrão.

Era um homem franzino, baixo, de pele morena e bigodinho. Apesar de casado há muitos anos, não tinha aquela barriga redonda, característica dos homens que já arrearam a âncora há anos. Mas não fazia atividade física de nenhum tipo. Era magro porque era magro, mesmo. Comia pouco, dormia pouco. Tomava muito café e fumava 2 maços desde os 14 anos. Os dentes amarelos e os dedos longos e finos, encardidos pela nicotina, revelavam o vício, que ele não fazia nenhuma questão de largar.

Era um homem rude. Havia parado de estudar aos 13. Aos 18, tornou-se cobrador e nunca mais deixou de sê-lo. Ficou ali, naquele trabalho, por anos e anos. Acordava às 03h30 e antes do sol nascer já estava circulando pela cidade como um sentinela, no seu assento mais alto, com o couro gasto, revelando um pedaço da espuma. Sentava com as pernas abertas, para não apertar as partes.

Nunca tirou carta de motorista. Nunca se interessou por dirigir. A viagem mais longa que fez, foi para Sorocaba, para o casamento de um primo. Nunca tinha lido um livro e na TV só assistia a 2 canais.

Seu novo chefe tinha 41 anos - a idade do seu filho mais novo - e tinha feito especialização em alguma universidade barata para entrar e cara para sair. Ao assumir o cargo, fez uma reunião com todos os motoristas e cobradores da empresa, numa segunda-feira, dizendo que queria que todos fizessem um novo treinamento de "orientação para o cliente", para melhorar a "experiência dos usuários durante o translado, encantando-os com a eficiência dos serviços".

- Que porra de cliente? Nós temos passageiros! E que porra de translado? Nós fazemos transporte! E que porra de "encantar"? Eu por acaso tenho cara de fada? - disse aos colegas, com seu tradicional mau humor, depois da reunião.

Foi ao treinamento, no dia e horário marcados. Assim que as luzes se apagaram e começou um vídeo intitulado "Você, gerente de si mesmo", levantou-se e foi fumar. Depois, mijar.

- Mulher urina, homem mija - dizia.

Depois, comeu uma coxinha xexelenta e voltou para a sala. Dormiu alguns minutos e, depois que as luzes se acenderam e alguns consultores palestraram durante uns 20 minutos sobre "Interpretação do Perfil de Cliente", ficou repassando mentalmente a escalação do Palmeiras, de 72 a 78. Ao final, respondeu ao questionário, assinalando "Concordo Plenamente" em todos os itens de avaliação de satisfação, só para não ter que explicar do que não havia gostado.

Não precisava de treinamento nenhum. Tinha sido cobrador a vida toda. Não era sua profissão, era parte de quem era. Não mandava em nada na vida, a não ser no seu ônibus. Em casa, quem decidia o que comer era sua mulher. Até o pijama que iria usar, era ela quem deixava em cima da cama. Os filhos decidiam quando iria ao médico. O chefe decidia se trabalharia ou não em um final de semana ou feriado. Até a moça do caixa da padaria mandava nele: tinha decidido que não ia mais vender o estoura peito que ele fumava, e que só venderia a ele um cigarro tipo "light", com menos alcatrão e menos nicotina.

- Cigarro de mulher, essa porra.

Mas, no ônibus, mandava ele. Do seu assento mais alto, falava grosso, para todo mundo ouvir, com sua voz rouca, tipo Adoniram Barbosa:

- Atenção: eu SEI que ainda tem espaço nesse ônibus! E eu não vou deixar essa porra andar enquanto vocês não tiver dado um passo à frente! Então, um passinho à frente, que eu tenho hora para almoçar e fumar meu cigarro "lait"! Alguma dúvida?

Ou, então, nos dias em que tinha enxaqueca:

- Aí, é o seguinte: eu trabalho aqui faz mais de 40 anos e não aguento mais esse barulho dessa maldita dessa cordinha que vocês puxa! Então, NÃO PUXA. Basta fazer "psiu" e eu aviso o motorista, com 3 batidinha no vidro, com essa moeda de 1 real. Ele ouve! Então, para aqueles que não entendeu, vou repetir: Não puxa a corda! Faz "Psiu"! Eu NÃO vou olhar para você quando você fazer "Psiu", porque a) eu não preciso; e b) porque você é feio. Se eu bater na janela com a moeda, é porque ouvi o seu "Psiu". Eu sou velho, mas não sou surdo. Alguma dúvida?

Ou, quando via um malandrão querendo encochar uma moça:

- Um aviso aos passageiros! Eu gosto de mulher e sei que muitos aqui também gosta. Mas não é por causa disso que vamos por aí encochando e desrespeitando as moça. Temos, neste ônibus, neste momento, um vagabundo que está querendo se aproveitar para tirar casquinha das moça. Neste ônibus, não! Quem quer tirar casquinha, vai cutucar ferida. Ou desce do ônibus e pega o próximo. Mas, no meu ônibus, ninguém tira casquinha de moça! Alguma dúvida?

Naquele ônibus, mandava o Tião. Ali, ele era o rei. Ninguém duvidava.

Naquela tarde, horas depois do treinamento, estava sentindo uma dormência no braço esquerdo e uma ardência no peito, que ele tinha certeza que era azia por causa da coxinha xexelenta que comera naquela manhã.

Era infarto. Morreu, no caminho de casa. Tinha renovado o desodorante, antes de sair.

Morreu dentro do ônibus, sem o uniforme de cobrador, sentado, quieto e anônimo, como outros passageiros. O cobrador não o conhecia. Era um rapaz de 18 anos, que tinha acabado de entrar na empresa e não percebeu que ele não estava dormindo. Só se deu conta no ponto final, quando ele não desceu.

Nunca mais se ouvir falar de outro rei de um castelo móvel. Morria naquela tarde Tião, o cobrador-rei, que nunca mandou em nada, que não fosse o seu próprio reino sem súditos. Morreu feliz, convicto do próprio poder. Em paz e em movimento, nômade como seu reino. E disso, ninguém duvidava.

Helder Conde

Inclusive


Sábado à noite. O leve cheiro de carpete gasto o lembrava de que precisava comprar um daqueles cheirinhos de ambiente para dar um ar pessoal ao local, com paredes cor de nada.

Não tinha programa nenhum. Tomou banho, decidindo o que iria fazer, enquanto via a espuma branca do shampoo escorrer pelo ralo. Desodorante. Pente. Cueca, calças, meias, camisa. Sem perfume. Preguiça.

Iria sair, talvez. Cinema? Nah! Poderia fazer qualquer coisa. Para que se fechar sozinho, ainda que rodeado de gente, em uma sala escura, com um balde de pipoca na mão? Não. Faria algo mais interessante, claro.

Quase pegou o carro e saiu dirigindo. Poderia facilmente dirigir por horas, centenas de quilômetros, para algum lugar onde houvesse perfume, brisa fresca e sorrisos.

Poderia ligar para uns amigos, poderia ir dançar, poderia ir ao teatro, que adorava. Poderia tentar escrever algo que prestasse. Poderia jantar em algum lugar novo. Poderia ver pornografia na internet.

Mas, não. Foi ao Carrefour, comprar sabonete e desodorante. E observou as pessoas, com respeito. Notou que os olhos de quem faz supermercado num sábado à noite têm um que de resignação e paz. Olhos de tanto faz.
  
Comprou também Ferrero Rocher, para quando a boca ficasse amarga, depois que as luzes se apagassem. E bolacha recheada de doce de leite. Porque a dieta iria começar só na segunda-feira, como em todas as outras.

Fez o que tinha que fazer e voltou. Notebook no colo. Norah Jones. Mãos sobre o teclado. Tela em branco. Tela em branco. Tela em branco. Ar condicionado fraquinho, travesseiro macio e lençol cheiroso. Tela ainda em branco e olhos pesados. Mão no abajur.

Há momentos em que se pode fazer qualquer coisa. Qualquer uma. Tem-se todas as opções à disposição. Inclusive, a de estar só. Click!

Com meus botões



"Um homem sozinho está sempre em má companhia."
Paul Valéry, filósofo francês


Aconteceu. Fui vestir a camisa e vi: faltava um maldito de um botão. E acho que ele fez de propósito. "Nunca tinha pensado nisso, né, mané? Então, vai! Me costura nessa camisa, que eu quero ver!". Os outros botões, pareciam rir. Carinhas redondas, com seus pares de olhos tirando sarro de mim, gargalhando junto com suas respectivas casas, da minha incompetência em cuidar de mim mesmo.

Desgraçados. Não sei como se costura um botão! Fui pacientemente ensinado e juro que prestei atenção. Mas nunca usei o que aprendi... e esqueci. Passa-se a linha de trás para frente ou de frente para trás? Quanto de linha devo usar para que não fique solto, nem apertado demais? A linha precisa ser da cor exata da camisa, ou pode ser só aproximada?

Porque se tiver que ser exata, eu estou ferrado! Quantas linhas vou precisar comprar para combinar com cada camisa que tenho? Aliás, onde é que se compra linha? No Carrefour não deve ser... Não me lembro de ter visto, jamais. Deve ser numa loja de.... como é que chama aquela loja com coisas de costura? Armarinhos? Como vou comprar uma coisa se não sei nem o tipo de loja que a vende?

Também não vou levar para a costureira! Não! Eu tenho vergonha nessa cara! Sou um homem adulto, inteligente, moderno. Preciso conseguir resolver um problema simples como este! E não, não venha me sugerir para ver um tutorial no YouTube! Tenho quase 40 anos, não 14! Tenho barba branca, já!

Confesso: me dá medo do fracasso, ao imaginar esses meus dedos grossos e duros, tentando desempenhar esta tarefa que vi outras mulheres, de dedos precisos e delicados, fazerem com desenvoltura e facilidade. Imagina o meu biquinho, tendo que lamber a linha para enfiar no buraquinho da agulha!

É, mas vou ter que fazer, mesmo. Não vai ter jeito. Tenho que enfrentar este fantasma. Tenho que ser homem o suficiente para costurar um botão numa camisa. Sou um macho! Sou macho com pedigree! É! Vou me tornar um mestre da linha e agulha. Vou costurar botões, vou cerzir. E não vai ser só isso! Vou aprender a fazer tricô e crochê! E também descobrir um shampoo que não deixe meu cabelo feito uma palha! E vou comprar minhas próprias cuecas e meias! E providenciar um cheirinho bom para o ambiente! E vou aprender a fazer bolo de chocolate - daqueles com cobertura cremosa, bem melecada! E de cenoura! E pudim! E vou decidir quando trocar a roupa de cama e quanto de Comfort colocar na máquina! E vou lavar a roupa separada por cor! E vou aprender a tomar chá! Vou fazer a porra toda, feito homem que sou.

Mas isso, só amanhã. Agora já está tarde. Vou tomar meu leitinho, colocar meu pijaminha e mimir. Pelo menos, esse pijaminha não tem botão. Ele não me julga. Não ri de mim. Meu pijaminha me aceita assim, do jeito que sou: ignorante e acomodado, sim. Mas, macho. Muito macho!

Helder Conde

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Beijo na Mão

Ilustração de Roswie Goof

Beijar as pessoas é coisa corriqueira. Felizmente. Às vezes é um só beijinho no rosto, uma "bochechada" - em que os rostos se encostam, mas os lábios só estalam -, daquelas que se dá em colegas ou conhecidos. Ou pode ser beijo de amigo, daquele em que os lábios encontram o rosto do outro. Ou pode ser beijo na boca. Para os mais jovens, talvez uma sucessão de bocas sem nome, em ficadas efêmeras e irrelevantes. Para os enamorados, uma janela para dentro do outro. Para o casal já estável, talvez uma frasezinha sem palavras: "Tenha um bom dia, amor".

Lembro-me, na pré-adolescência, quando comecei a cumprimentar as meninas com um beijinho no rosto, que eu fazia com aparente naturalidade, mas sempre com especial ansiedade.

Lembro-me dos primeiros beijos na boca desengonçados e cheios de técnica ensaiada e pueril.

Lembro-me dos beijos de corpo todo, sem técnica nenhuma, e cheios de pele, mãos e verdade.

Lembre-me dos beijos em pai, mãe e irmão.

Lembro-me de beijinhos em bochechas e barriguinhas e testinhas e pezinhos e cabelinhos de crianças que me fizeram acreditar que, ufa, eu devo valer alguma coisa nesta vida.

Beijar é parte do cotidiano. Não sabemos dizer quantos beijos damos ao longo de um só dia. Mas há um beijo que é singular. Este, talvez se possa saber quantos foram, ao longo de toda uma vida. É um beijo que se pode dar em homem, em mulher, em criança, em idoso. E, apesar de tão universal, é o mais raro; o diamante dos beijos: o beijo na mão.

Não estou me referindo ao beijo de galanteio, que hoje pareceria anacrônico e tolo. Nem estou falando de "A sua benção, padre". Não. Falo do beijo que se dá na mão de alguém, por devoção. É aquele beijo que se dá como o melhor dos agradecimentos, porque qualquer palavra seria rasa demais. É uma gratidão que transborda e precisa virar pele. É um "Não acredito que você exista para mim".

Beijar a mão de alguém é beijar sua alma. É orar para um Deus que tem nome e rosto e pele. É adorar sua imprescindibilidade. É torcer para que a vida lhe seja tão generosa quanto foi conosco, por termos aquela pessoa a quem beijar.

Beijar a mão é fazer-se oferenda, quando todas as outras formas de agradecer seriam tolas; quando a dádiva é tão grande, que só cabe agradecer com o próprio corpo; só se pode agradecer com aquilo que se é, e não com o que se pode dizer ou dar.

Beijar a mão é acolher-se no ninho, enquanto se explode de gratidão.

Beijar a mão é ajoelhar-se com os lábios.

Helder Conde

domingo, 19 de outubro de 2014

Mesa para um


- O senhor prefere sentar-se no bar?

- Pode ser, sim.

Senta-se, mas o balcão é meio alto.

- Com licença? Acho que prefiro uma mesa. Posso?

- Claro, pode ser nessa aqui, senhor.

É a primeira vez que come ali. Para chegar, dirigiu meio sem rumo, tentando pensar um local onde nunca tivesse ido. Estava com fome e sentiu que estava merecendo comer carne. Lembrou-se dali e da indicação feita pelo amigo do irmão do primo do colega. Chega sozinho e, com um "Bom dia!" especialmente caprichado, emenda, estranhando a própria voz: "Mesa para um, por favor".

Lugar novo, script velho: carne mal-passada, sal, fritas, cogumelos, Coca Zero, refil, refil, refil, cheesecake. Calculadora com os 10% extras. Visa. "Crédito, por favor". "CPF na nota?". "Sim. Ou melhor, não".

Mesmos cardápios, rostos parecidos com os de sempre, preços similares. Um almoço como qualquer outro, travestido de novidade insossa.

Na mesa à esquerda, moças bonitas e jovens, mas sem brilho, falam de algo desinteressante. Na outra, adolescentes silenciosos acompanhando suas famílias, fogem, estáticos, sentados em suas cadeiras, com os rostos imberbes iluminados pelos celulares idênticos.

Ele faz o mesmo, para preencher o silêncio: lê Carpinejar, olha o Facebook, curte algumas coisas das quais terá se esquecido antes de digitar a senha do cartão. Relê mensagens antigas no Whatsapp.

Olha no relógio: ainda são 14h30! O que fará pelo resto da tarde? Ouvir John Mayer? Escrever, talvez. Não. Vai colocar os fones de ouvido e correr. É, vai correr... Embora, correr, não seja bem a palavra. Vai andar e, a cada 15 minutos, andar mais rápido um pouquinho. Suar. Ficar cansado e colocar os bofes para fora, para em seguida tomar um bom e merecido banho.

E vai, então, aguardar pelo jantar. Talvez vá merecer um temaki? "Salmão completo". "Cream cheese e cebolinha?". "Sim, por favor". "CPF na nota, senhor?". "Sim. Ou melhor, não".

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Silêncio


Cada um dos dedos pesa uma tonelada. Mal têm forças para encontrar as teclas, em geral tão fáceis.

Os cadarços, que fiquem desamarrados, mesmo.

As costas, que fiquem curvadas, e os ombros, caídos. Vaidade, não há.

A barba, fica por fazer. Porque olhar-se no espelho dá muito trabalho. Ou muito medo.

Os olhos, ásperos, enxergam pela fresta que a duras penas se mantém, ao final de longas e penosas piscadas que imploram por não abrir.

A boca, seca, não fala. A voz rouca, primitiva, quase inaudível, grunhe apenas o indispensável.

A respiração às vezes se esquece de ser. E, aqui e ali, encomenda um longo suspiro ou bocejos de corpo inteiro, em busca de um ar que parece faltar. Ou que, teimoso, falta, de fato.

O ruído dos pés se arrastando pelo chão, reforça um cansaço, que, impiedoso, acorrenta os sentidos e as ideias, deixando lugar apenas para o absolutamente essencial.

E tudo o que se quer é um pouco, só um pouquinho de silêncio. Um silêncio horizontal. Silêncio com cheiro de travesseiro limpo e temperatura de abraço.

Silêncio do corpo, para descansar um pouco. Só um pouco. Só um pouco...

sábado, 20 de setembro de 2014

Bokeh


Era uma menina com um olhar diferente das demais. Uma criança, ainda. Mas olhava a vida com formas, matizes e enfoques diferentes de todos à sua volta. Era especial. Tudo para ela era poesia, tudo era encantamento. Nada passava desapercebido aos seus olhinhos ávidos e interessados.

Mas não era apenas o olhar. Era um talento para transformar o que olhava, em alguma outra coisa. Ela eternizava o que via e sentia, de uma forma só dela, única: fazia um desenho, uma pintura, elaborava um poema sem esforço, saía rodopiando uma dança só sua, ou cantarolava uma música espontânea, nascida de algum lugar perto do peito.

Dormia bem, dormia pesado - talvez para compensar o excesso de atenção que dispensava a tudo na sua vidinha de criança. Mas, na manhã de um sábado frio e ar seco, ela acabou acordando mais cedo do que de hábito. Por algum motivo, os passarinhos naquele dia cantavam mais alto. Ou os seus ouvidos é que estavam mais felizes. O fato é que o canto deles a despertou antes do sol nascer, e não conseguiu mais adormecer.

Nem tentou ficar na caminha. Levantou-se e foi, com os pezinhos descalços até a sala e ficou lá, sentadinha à janela, esperando os primeiros raios do sol. Já tinha visto fotos mas, aos 6 anos, nunca tinha presenciado um amanhecer.

Não demorou muito e começaram a aparecer os primeiros raios de sol. E ela ficou simplesmente encantada. Nunca tinha visto nada tão lindo. Emocionada, pela primeira vez na vida chorou por um motivo que não sabia explicar. Chorou só para si, sem expectadores. E, com o passar dos minutos, e as cores mudando no céu, não conseguiu mais se conter: precisava compartilhar sua alegria, e foi acordar o pai:

- Papai, papai! - sussurrou com aquela delicadeza que sempre tinha, para não assustá-lo, enquanto afagava seus cabelos.
- O que foi, meu amor?
- Vem ver, papai! Vem ver! - já puxando-o para fora da cama.
- O que aconteceu, filha?
- Olha na janela! O sol está vermelho!
- É, meu amor. É porque o dia está nascendo.
- Não, papai! É que o sol passou batom para beijar a gente!

O pai, sorriu, encantado com mais uma das suas ideias criativas e surpreendentes.

- É, sim, filhota. Passou um batom bem bonito, igual ao seu.
- E sabe o que isso quer dizer, papai?
- Não sei. O quer dizer?
- Quer dizer que o sol é mulher!

Daquele dia em diante, a pequenina apaixonou-se pela luz. E, no aniversário seguinte, pediu - e ganhou - uma máquina fotográfica. Simples, mas só sua.

Tirava foto de tudo. Fotografava coisas comuns: o cachorrinho, as árvores, os pais, o irmãozinho, os brinquedos. Mas passava horas, também, caçando as pequenas coisas para fotografar: joaninhas, gotas d'água, a própria mãozinha escrevendo, os primeiros pelos brancos da barba do pai, enquanto cochilava. Queria sugar o mundo nos mínimos detalhes, com a lente sedenta da sua câmera nova.

Passaram-se alguns anos e a menina, já mocinha, apaixonou-se por um garoto na escola, um pouco mais jovem do que ela. E, intensa como era, foi uma paixão daquelas, arrebatadora, vigorosa, colorida. Mas doce, sem doer. Só o lado bom de estar apaixonada.

- O perfume dele, mamãe, tem cheiro de estrela!

A mãe nunca entendeu bem o que era cheiro de estrela. Mas a menina sabia muito bem.

- Mãe, tenho saudade do abraço dele...
- É, filha? Que lindo! E quanto tempo faz que vocês não se abraçam?
- Nunca nos abraçamos, mãe.

Ficaram, sim, amigos, mas o menino era muito tímido. Também gostava dela, do seu sorriso fácil e dos olhos mais ávidos que já tinha visto, mas não tinha a menor coragem de dizer isso a ela com todas as letras.

Certo dia, escondida do pai, pegou a máquina fotográfica dele - uma daqueles grandes, com a lente cheia de ajustes - e levou para a escola. Queria fazer uma foto especial do garoto. Mas não era para colocar no porta-retrato, nem no fundo de tela do celular.

- Pra colocar embaixo do meu travesseiro, ué! - respondeu à amiga, quando perguntada o porquê de querer tanto uma foto dele.

Ela pediu para ele, mas sua timidez o impediu de aceitar de tirar a foto. Ela insistiu, mas ele não quis. Não tinha jeito. Era só um garoto assustado diante de uma menina cheia de ideias e vontades. E foi se afastando, envergonhado, caminhando de costas para ela, fugindo da foto e contrariando seu coração, que queria tanto ficar.

Ela não teve dúvidas: deu o máximo de zoom na lente - adorava aquela câmera do pai - e esperou por alguns segundos. Quando o visor mostrava só a cabeça dele, ainda de costas, ela não se conteve e gritou:

- Eu gosto de você!

Ele parou, imediatamente. A respiração, suspensa. E, de repente, em um segundo, uma calma tomou conta dele. O vento virou brisa. Sorriu, respirou fundo, virou-se e olhou bem para lente, como se olhasse para os olhos dela.

E ela fez a foto: só o rosto dele, sorrindo, no enquadramento bem fechado. O fundo, completamente desfocado, mostrava um mundo que, àquela altura, não importava mais. Ela havia capturado a imagem que queria. Exatamente a imagem que queria.

E ele, sereno, sussurrou, sabendo que ela ainda o olhava através lente:

- Eu também gosto de você.

Aquela foi a melhor foto que lhe tiraram na vida. Ela enviou para ele, por e-mail. O pai dele era fotógrafo e ficou maravilhado com a foto tirada pela garota. Achou lindo o filho, capturado naquela espontaneidade, rodeado por aquele fundo suave, esmaecido pelo fascínio do olhar daquela menina. A luz do início da manhã oferecia uma luz difusa, com sombras suaves. Uma foto singular. Belíssima.

Ele explicou ao filho o termo usado em fotografia para se referir àquele efeito desfocado, difuso, que havia naquela foto: Bokeh.

E, daquele dia em diante, ela ganhou do menino um apelido, pelo qual só ele a chamava. Um apelido que ela adorava. Um apelido nascido do retrato dele, mas que era, na verdade, um retrato dela própria. Porque a atenção que ela dava ao que lhe era importante era tão grande e tão intensa, que fazia todo o resto desaparecer, desfocar-se. O apelido perfeito: Menina Bokeh, a menina que fotografava a felicidade.

sábado, 13 de setembro de 2014

O menino

Não sabia dizer ao certo o que era, nele, que a fascinava tanto.

Sabia que não era o jeito orgulhoso de falar, nem as mãos. Sabia que não era o pomo de Adão, saliente, nem a voz rouca. Também não eram a baixa estatura, nem os lábios carnudos. E sabia também que não era a inteligência, apenas mediana, nem a facilidade em assoviar. Nem a brancura da pele. Nem o escuro dos cabelos. Nem as sobrancelhas bem desenhadas. Nem o jeito singular de apoiar a rosto nas mãos. Nem a panturrilha musculosa e os ombros largos. Nem o beijo mais molhado do que estava habituada.

Ela sabia tudo o que não era, mas não sabia dizer o quê, afinal, era a causa do seu fascínio. Não era um homem misterioso, não era especialmente atraente, não era especialmente nada. Mas era tudo.

E, durante anos, ela nutriu aquele interesse. Fascínio, na verdade. Tudo o que vinha dele a encantava, era motivo de adoração.

Durante algum tempo, pôde tê-lo. Mas, apesar de todos os carinhos e mimos e afagos, ele não ficou. Simplesmente não estava pronto. Ou, como todo homem, talvez nunca viesse a estar, porque nunca deixaria de ser apenas um menino.

E ele se foi. Partiu para, talvez, tentar descobrir em si mesmo o que havia para se gostar. E ela sentiu saudades, muitas saudades. Durante muito tempo.

Mas, com os anos, ela seguiu adiante. Nunca o esqueceu, apenas o superou. Deixou de doer porque simplesmente deixou de lembrar. Virou página no meio do livro. Não rasgada, não molhada, não embolorada. Apenas acolhida, no meio de outros livros, no meio de outras estantes, em bibliotecas que já não costumava visitar.

Um certo dia, muitos anos depois - décadas, talvez - o avistou. Estavam no metrô - ele já no vagão, quando ela entrou. Ele lia um livro, cujo título ela não conseguia destinguir à distância. Lia atentamente, como costumava fazer. Estava, claro, mais envelhecido. As feições maduras, os cabelos já levemente grisalhos, um pouco mais gordo. As olheiras, um pouco mais escuras.

Eram só duas estações até ela descer. Não iria abordá-lo. Ficou ali, olhando-o à distância, folheando na memória as páginas que a levavam a ele e aos sentimentos que um dia a habitaram. Sem dor, sem tristeza. Só contemplação serena.

O metrô começou a desacelerar. Ela desceria na próxima parada.

- Estação... Luz. - disse o alto falante.

Isto o distraiu por um instante e ele levantou os olhos do livro. O metrô já estava praticamente parado. Cruzou o olhar com o dela imediatamente, com se já a soubesse ali. Detiveram-se naquele olhar e, passados apenas três segundos, já tendo localizado as páginas em que viviam, nos livros de suas vidas, sorriram ao mesmo tempo: um sorriso levíssimo, quase imperceptível.

E ela desceu do vagão.

A porta se fechou. Ela ficou parada por alguns instantes na plataforma e virou-se, para olhá-lo novamente. Ele continuava lá, fitando-a com o mesmo sorriso quase imperceptível. Não se moveram. Não acenaram. Não fizeram menção em fazer um gesto de "Me liga". Nada. Só o sorriso quase não-sorriso, enquanto o metrô começava a acelerar e ele ia embora, uma vez mais.

Finalmente, com a respiração ainda suspensa, e com o vento causado pelo deslocamento dos vagões soprando em seus cabelos, descobriu o que tanto a havia fascinado naquele homem: a verdade no jeito carinhoso de olhar. Olhar de menino.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Isso. Ou aquilo. Tá, isso, então.


Ele já tinha tudo decidido. Tinha tudo meticulosamente planejado, as falas ensaiadas, já sabia qual meia iria usar com qual sapato e qual cinto.

Ia chegar já beijando. Ia chegar arrepiando, mostrando que não estava para brincadeira. Estava ansioso por encontrá-la e queria que ela ficasse impressionada com seu ímpeto, com seu fogo. Ela iria conhecê-lo sabendo, de cara, quem era o dono do pedaço.

- É isso aí. Vou chegar beijando, agarrando logo. Essa morena hoje vai ver o que é bom pra tosse...

Tomou seu banho, bem tomado. Muito bem tomado. Até a sola dos pés, esfregou. Lavou atrás das orelhas e embaixo das unhas. O banho da década.

Saiu do chuveiro, enrolou-se na toalha e limpou o espelho embaçado, para ver sua imagem.

- Vou fazer a barba.

Passou uma grossa camada de espuma de barbear no rosto e pegou o aparelho de barbear.

- Pensando bem, não vou fazer, não. A pele fica muito irritada...

Lavou a espuma do rosto. Deu uma olhada para ver se os pelos na orelha estavam aparados. No nariz, idem. Passou desodorante, 8 segundos em cada axila. Não queria nenhum risco de cheirar mal, no seu primeiro encontro com aquela mulher tão linda e tão desejada.

Tinha 2 perfumes. Um mais forte, outro mais suave.

- Vou usar o suave. Vai que ela é alérgica...

Abriu o frasco. Desistiu.

- Pensando bem, vou com o forte. Para combinar com minha atitude mais máscula.

Só que o forte estava quase, quase acabando. O frasco estava praticamente vazio.

- Será que dá? Acho que dá.

Borrifou uma nuvenzinha no pulso direito, atrás da orelha direita, no lado direito do pescoço. Não esfregou, conforme havia aprendido. Mas, na hora de passar do lado esquerdo, já não havia mais perfume algum. Havia usado as últimas gotas em um único lado do corpo.

- Mas que droga! Como é que eu vou com perfume só em metade do corpo?!

Voltou para o banho. Ensaboou-se completamente, para remover todo o perfume. Saiu e enxugou-se com a mesma toalha, já molhada do banho anterior. Cheirou a própria pele para ver se o perfume tinha saído. E tinha, mas agora estava com cheiro de toalha molhada.

- Mas que droga! Será que dá para perceber? - falou, cheirando-se novamente. - Dá, dá, sim.

Tomou um terceiro banho e desta vez usou uma toalha seca. Passou o perfume - o suave desta vez -, terminou de se arrumar, penteou o cabelo e saiu para encontrar aquela deusa.

Estava nervoso. Foi repassando mentalmente o que tinha planejado, o que iria dizer, como iria se comportar. Aquela noite tinha que ser perfeita!

Chegou e no exato momento em que deixava o carro (devidamente lavado e encerado naquele mesmo dia) com o manobrista, se apercebeu:

- Caramba! Esqueci o Halls!

Mas era tarde demais. Chegaram quase juntos e ela já estava parando o carro dela, logo atrás do dele. Não ia poder arranjar um jeito de melhorar o hálito.

Estava deslumbrante, com aquele cabelão preto solto, a maquiagem valorizando os olhos, vivos e atentos. O rosto atraente emoldurado pelos brincos enormes, os braços nus e um decote sexy, mas sem revelar em excesso.

Ele ficou estático. Sem Halls, sua auto-confiança para chegar beijando já tinha ido para a cucuia, mas poderia pelo menos usar alguma frase de efeito para impressioná-la. 

- Oi.
- Oilá - nervoso, acabou não saindo nem "Oi", nem "Olá".

Seu cérebro parecia de bêbado. Não conseguia pensar com rapidez.

- Você está muito... lindita.

Pronto, ferrou-se. Ia dizer "linda", mas mudou de ideia no meio da palavra, para dizer "bonita". Saiu "lindita". Ela riu, achando graça do elogio.

- Muito obrigada! Você também está muito... lindito. - fez até a mesma pausa, para imitá-lo.

"Idiota, idiota, idiota!" - ele pensava. "Lindita?! Sério?! Oilá?!"

Era o primeiro encontro e, embora já se conhecessem "on-line", precisava se apresentar pessoalmente. Esticou a mão para cumprimentá-la, enquanto ela se aproximava para beijar-lhe o rosto. Acabou não fazendo nem uma coisa, nem outra. Ficou com a mão ali, sem jeito, flutuando entre os dois. "E isto por acaso é reunião de negócios, para dar a mão?!", ele pensou, odiando-se.

- Muito prazer. Soraya.
- Prazer o meu. Otávio.
- Gostei do perfume! Suave...
- Obrigado. Vamos entrar? - disse ele, já virando-se. "ELOGIA O PERFUME DELA, SEU ANIMAL!", pensou, já sem a deixa para fazê-lo. Não o fez.

Porra, como estava nervoso! Enquanto o maître os conduzia à mesa, deu um tropeção, ao pisar no próprio cadarço desamarrado. Ela fingiu não perceber.

Chegaram à mesa. O maître puxou a cadeira para ela, mas quem se sentou foi ele, enquanto ela colocava a bolsa na outra cadeira. Ele nem percebeu. Ela sorriu para o maître, que sorriu de volta, puxando a outra cadeira para que, finalmente, se sentasse.

- Vocês aceitam a carta de vinhos?
- Não - ele respondeu sem pensar, já que não gostava de álcool. - Ou sim? Você quer?
- Ah, eu aceito um vinho, sim. Você não quer?
- Eu? Quero, quero, sim.
- Eu adoro vinho.
- Eh... eu também.

Detestava vinho. Não estava habituado a beber. Aquela noite não seria fácil. Mas ela valia o esforço.

- Vocês aceitam o couvert?
- O couvert? Ah... - e enquanto dizia "Acho que não...", ela soltou, ao mesmo tempo:
- Eu estou morrendo de fome!

O garçom olhou para ele, esperando uma definição.

- Claro, claro, pode deixar o couvert.

Petiscaram e a conversa começou a engrenar, enquanto olhavam o menu.

- Eu adoro risoto! - ela disse.
- Ah, eu também. Mas estou tentado a pedir esse ravioli com queijo brie e figos.
- É, parece ser uma ótima pedida, né?
- Mas, pensando bem, talvez eu vá de risoto - disse ele, já se irritando com sua própria indecisão.
- Ué? Desistiu do ravioli?
- Não. É que, gostei da sugestão do risoto... sei lá... Tá, vai, vou de ravio... Não, vou de risot... Não, ravioli. Ravioli, pronto.

Ela mesma pediu os pratos ao garçom:

- Então, para ele vai ser o ravioli com queijo brie e figos. Para mim, o risoto de funghi com medalhão. Mal passado, por favor.

Enquanto o garçom se afastava, Otávio perguntou:

- Mal passado?
- É! Adoro! O verdadeiro gosto da carne só se sente quando ela está mal passada!
- Ah, sim, eu sei.

Detestava carne mal passada! Mas continuou com a farsa:

- Os sucos da carne ficam mais saborosos.
- É, ficam - disse, sorrindo da frase feita.

Comeram. Estava tudo uma delícia, menos o vinho. Ele ficou o jantar todo, na mesma taça. "Como alguém pode gostar disso?".

Ela levantou-se para ir ao toilette, provavelmente retocar o batom, e ele aproveitou para se antecipar e estudar o cardápio de sobremesas. Não queria parecer tão indeciso desta vez. Pediu o menu ao garçom e olhou as opções.

Ela retornou, sentou-se e disse:

- Ai, acho que não vou querer sobremesa, não. Você vai?
- Eh... vou... Eh, pensando bem, não. Acho que não. Acho que não estou muito a fim de sobremesa.
- Pode pedir!
- Não, não.
- Pede!
- Tá bom... Eu vou de... Não, não. Não vou. Não quero sobremesa.
- Quer sim!
- Não, não quero. Sério!

E terminou com um intelectualíssimo:

- Estou "de boa".

Era uma formiga! Teria pedido todas as sobremesas do cardápio. E, pela milésima vez naquela noite, estava consumido pela própria vergonha. "Estou 'de boa'?! Quantos anos você tem?! Dez?!". Estava se sentindo o maior dos patetas da história da humanidade.

Pediram a conta, que veio rapidamente. Desta vez ele não bobeou: pegou rápido e já foi logo sacando o cartão de crédito, para pagar.

- Vamos rachar! - ela disse.
- Imagina! 
- Vamos, faço questão!
- De forma nenhuma!
- Vamos, sim! - ela, decidida, tirou a conta da mão dele e foi logo abrindo.
- Não preci...
- Precisa, sim. Olha, pode cobrar metade em cada cartão. - disse ela ao garçom, já enfiando o cartão na maquininha.

Ele queria se matar. "Onde já viu? Deixar um mulher rachar a conta no primeiro encontro?! Eu sou um fracasso! Que desastre! Por que não insisti?! Por que não peguei a conta de volta?!"

Levantaram e saíram do restaurante. Lá fora, já certo de que ela nunca mais iria querer encontrá-lo na vida, disse, só por educação:

- Então, Soraya, fiquei muito felisfeito de te conhecer - "ANIMAL!", rugiu internamente. "FELIZ ou SATISFEITO, sua besta?!
- O prazer foi todo meu, Otávio! - ela disse sorrindo, com sinceridade.

Estava encantada com o jeito acanhado dele. Mal podia acreditar que estava genuinamente interessada naquele cara.

Ele, para fechar com uma frase feita, segura, e já certo do seu próprio fracasso, completou:

- Quem sabe uma hora dessas a gente pode marcar de se encontrar de novo. Sei lá... semana que vem.
- Semana que vem?
- É... Ou então, na outra semana...
- Na outra?

Ela ficou olhando para ele fixamente, esperando sair algo útil daquela boca. Nada.

- Otávio?

Ela se aproximou e o segurou pela nuca. Apontou aqueles olhos ávidos para seu rosto e sussurou em seu ouvido a única pergunta decente daquela noite:

- E hoje, Otávio?
- Como assim?
- No seu apartamento ou no meu?

Barba Cerrada - Parte 2


Ele abre a porta de casa e entra.

- Ah, não, pai! Vai já tirar essa barba. Está horrível!
- Parece um mendigo, pai!
- Não, nem vem me beijar, pai! Está espetando!
- Vai tirar. Já!

E ele foi. Afinal, ele era homem. Mas quem mandava ali, eram as crianças. Qualquer um sabia disso.

Mas todos também sabiam que ele era um macho alfa. Dominante. Firme. Decidido. E a noite só podia ser encerrada com uma ordem dele:

- Pronto, tirei. Agora alguém traga meu Toddy! Morninho, ouviram?

Esmalte Cintilante

- Pode descer da maca. Agora, por favor, sente-se enquanto escrevo a receita.
- Obrigada, doutor.
- E como foi a viagem, dona Lourdes?
- Ah, doutor, foi incrível!
- Europa, certo?
- Isso mesmo. Passei um mês inteiro por lá. Conhecemos Portugal, Espanha, França, Áustria, Alemanha, Itália, Suíça, Bélgica e Holanda.
- Que bom!
- Fiz tanta compra, tanta compra! Devo ter voltado com umas 17 malas, doutor.
- Que bom. Dona Lourdes, a senhora passa na farmácia, compra esse remédio aqui e toma duas cápsulas por dia, durante 10 dias, ok?
- Ok, doutor. Obrigada.
- Volte em 2 semanas.
- Doutor, posso pedir uma gentileza?
- Pois não.
- O senhor poderia me passar o nome do genérico? Assim eu pego de graça, na farmácia popular...
- Não há genérico deste medicamento, dona Lourdes. Não é caro, não. Acho que não chega a 20 Reais a caixa para 2 semanas.
- Ah, doutor, é muito caro! 20 reais dá pra fazer uma mão inteira na manicure! E com esmalte cintilante!

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Barba cerrada - Parte 1

Se achava o tal. Boa pinta, seguro, maduro, bem-resolvido.

Só estava com um probleminha: tinha acabado de cortar os cabelos. E toda vez que isto acontecia, ficava durante alguns dias se sentindo com cara de garoto. Não queria parecer garoto! Era um homem!

Então, fez o óbvio: naquela manhã, deixou a barba por fazer. Dura, cerrada, escura, combinando com as sobrancelhas grossas. Isto sim, daria a ele a aparência de homem pelas próximas semanas, até que o cabelo estivesse mais crescido.

À noite, no caminho para casa, passou no supermercado que havia ali perto. Antes de sair do carro, deu uma olhada no retrovisor, ajeitou o cabelo, verificou se os dentes estavam limpos e desceu para comprar seu Toddy.

Afinal, não sabia dormir sem seu Toddy morninho...

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O Galanteio



# Lição 1: Elogie
# Lição 2: Nunca, jamais, pergunte a idade de uma mulher
# Lição 3: Demonstre interesse


- Oi. Tudo bem?

- Tudo e você?

- Eu estava te observando de longe e senti uma vontade louca de te dizer uma coisa e te perguntar uma outra.

- Pode falar.

- Preciso te dizer que você é absolutamente linda. Deslumbrante, mesmo.

- Você é muito gentil. Obrigada!

- E, agora, tenho uma pergunta.

- Diga.

- Dizem que não é educado perguntar a idade de uma mulher, certo?

- É verdade.

- Quanto você pesa?

domingo, 10 de agosto de 2014

Brinde à Saudade

"Quem tem um amigo, mesmo que um só, não importa onde se encontre, jamais sofrerá de solidão; poderá morrer de saudades, mas não estará só."
Amyr Klink, navegador e escritor brasileiro


"O melhor espelho é um velho amigo."
George Herbet, pensador anglo-galês



Em agosto de 2014, pelo segundo ano consecutivo, reencontrei amigos de infância, do prédio em que morei por aproximadamente 10 anos. Encontrá-los me deixa extremamente reflexivo, porque me faz olhar em um espelho profundo, em que minha imagem reflete não apenas quem sou, mas porque sou.

Quando a gente cresce, tem a sensação de que "eu sou quem eu sou": eu enxergo o mundo do meu jeito próprio, singular; os meus trejeitos e manias, são meus; minha forma de falar, a expressão dos olhos, o jeito de apoiar o rosto na mão, as músicas que eu gosto, o tipo de assunto que me atrai, foram moldados espontaneamente por mim mesmo, à medida em que amadureci. A gente cresce e se torna adulto, dono de si, seguro de que "fui eu que me fiz assim". Uma imagem auto-suficiente, vaidosa e, como boa parte das convicções adultas, completamente errada.

Ao encontrar esses amigos, vejo que sou, também, eles. Vivi com a maioria deles em um momento em que tudo é muito intenso. Já escrevi que, durante as férias, quando se tem 11 anos, parece que se passa uma eternidade entre o nascer e o pôr do sol. Em um só dia, dá para acordar, ler, jogar, bola, escutar música, nadar, tomar banho de chuva, brincar de esconde-esconde, polícia e ladrão, dançar com as meninas, dançar com a vassoura, ouvir mais música, assistir um filme, jogar vídeo-game, conversar horas ao telefone e dormir, para recomeçar tudo no dia seguinte. Hoje, termino o dia lamentando não ter conseguido responder todos os e-mails que comecei a responder pela manhã... Mas, na infância, um dia é uma vida inteira.

Foi ao lado dessas pessoas, que vivi muitos desses dias. E, justamente pela intensidade que eles tinham, reencontrá-los me mostra que eu, na verdade, sou muitos deles. Às vezes um jeito de olhar, de falar, um gesto, até a forma de rir, são parecidos com os meus - mesmo depois de décadas de distância. Vemos que, na verdade, mesmo diferentes, muito do que somos foi moldado pela influência uns dos outros.

E as lembranças? Eles lembram de frases minhas que nem eu mesmo me lembrava. Recordam-se de detalhes, com suas lembranças de criança, que a minha cabeça de adulto já havia coberto com outras camadas de vida. Encontrá-los é retirar essas camadas e relembrar quem eu fui, com minhas manias, meus talentos, minhas chatices. É ver no que fui bom e em que fui insuportável. É ver no que era admirável, ou irritante. É ver quem eu fui, refletido nas lembranças de quem me conheceu sem as máscaras e escudos que eu mesmo construí, para me proteger de mim mesmo.

E não importa quanto tempo se passe: ao olhá-los, é como se o tempo não tivesse passado. Nenhum de nós é criança, nem adolescente. Mas o jeito de olhar, não muda. O jeito de sorrir e gargalhar. Até a voz é igual. A piada com aquele seu jeitão previsível que você tem desde sempre, o jeito de mexer no cabelo, de apontar o dedo, de arrumar os óculos, de gesticular enquanto se conta uma história... Está tudo lá, como estava antes.

"Você lembra das músicas?", "Como estão seus pais?", "Você ainda tem medo de fantasmas?", "Sua Paquita preferida era a Ana Paula!", "Você lembra como ficava puto, quando...", "Lembra quando a gente derrubou...", "Sua franja era assim...", "Seu perfume era assado...", "Lembra quando a gente se pendurava...". É como se quiséssemos gritar uns aos outros que "Eu me lembro de tudo! Eu me lembro de você!".

Rever amigos de infância é viajar no tempo e reencontrar com alguns protagonistas da minha vida. É convencer-me, com gratidão e humildade, da minha própria "inesquecibilidade". É lembrar não só de quem fui, mas porque me tornei quem eu sou.

E, no final, o abraço, que parece durar só um pouco mais do que seria normal, é dizer "Você se tornou parte de mim. E, eu, de você". Encontrar amigos de infância é brindar à saudade. É brindar à própria vida.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Cada vez menor

"Podemos viajar por todo o mundo em busca do que é belo,
mas se já não o trouxermos conosco, nunca o encontraremos."
Ralph Emerson, escritor norte-americano



Eu tinha uns 8 anos, acho. Ela tinha mais ou menos a mesma idade. Chamava-se Raquel. A casa onde estávamos ficava bem em frente à dela, em uma rua de terra, na deserta e bela Praia do Foguete, em Cabo Frio, RJ. Durante 3 anos, passamos as férias de janeiro naquele local. Eram tempos muito mais difíceis, e aquelas férias eram ansiosamente aguardadas.

Não me lembro com detalhes da Raquel. Não saberia descrever seu rosto. Lembro-me apenas que era carioca da capital, tinha os cabelos negros e pele clara. Não lembro de mais nada. Não lembro do seu rosto, nem do seu sobrenome - se é que algum dia eu soube.

E lembro especialmente de uma imagem, de um daqueles dias quentes de verão. Em frente à casa em que ela ficava, havia uma árvore, com flores brancas muito simples, de pétala aveludada e centro levemente amarelado - que só adulto eu vim a saber tratarem-se de magnólias. Certo dia, estávamos conversando debaixo da árvore, e havia algumas flores recém caídas, pelo chão. Espontaneamente, ela pegou uma delas, arrumou delicadamente o cabelo atrás da orelha e pôs a flor no cabelo. Realmente não me lembro do seu rosto, mas me lembro perfeitamente do que senti quando olhei para ela.

- O que foi? - ela me perguntou, vendo minha cara de bobo.
- Nada!
- Por que está me olhando assim?

Devo ter ficado em silêncio por alguns instantes, antes de responder:
- Você ficou linda com essa flor no cabelo!

Não era um galanteio barato. Meninos de 8 anos não sabem fazer galanteios. Meninos de 8 anos não dizem para meninas que elas estão lindas. Eu era um garoto tímido e jamais teria falado aquilo se não fosse absolutamente indispensável. Só disse aquilo porque meus olhos precisavam gritar.

A menina com a magnólia branca nos cabelos é uma das primeiras visões das quais me recordo, que me causaram encantamento. É um daqueles momentos quase religiosos, em que vivemos algo especial, único, que se torna parte de quem somos, parte daquilo que molda o que chamamos de "beleza". A Raquel e sua magnólia, foi um desses momentos.

Vivi muitos. Os primeiros "Eu te amo", o primeiro adeus, os primeiros beijos, o primeiro palco, o último palco, o "sim", as filhas, os reencontros, os desencontros, uma música ao piano, as viagens, entre outros. Mas, infelizmente, parece que a vida adulta é menos generosa e restringe a frequência desses momentos. É como se nos tornássemos, com o tempo, endurecidos. É como se o mundo passasse a ter menos encantamentos para nos oferecer. É como se nos tornássemos resistentes à alegria e à beleza.

Nas férias de Julho de 2014, tive a felicidade de fazer uma viagem de 3 semanas para os Estados Unidos, com a minha família. Já estive no país incontáveis vezes, sempre a trabalho. Mas esta foi a primeira viagem exclusivamente para lazer. E, desde o princípio, decidimos que iríamos conhecer locais que tivessem algo de especial, algo de diferente, que fosse muito além das Macy's, do Central Park, dos outlets, da Disney ou das Best Buys.

Mas começamos, sim, por Los Angeles, e fomos à Disneyland. Não dá para não ir. Programa normal, esperado. Programa adorável, de turista, com direito a orelhas de Mickey e foto com Cinderela.

De lá, andamos para o leste por incontáveis horas, até o Grand Canyon, majestoso. Ali assisti em silêncio ao mais lindo nascer do sol que já vi.



Entendi, olhando para a paisagem quase inacreditável, como o tempo e a água fria e persistente de um rio são capazes de esculpir maravilhas indescritíveis e impossíveis de fotografar. Se o tempo é capaz de esculpir rochas, o que é capaz de fazer com as pessoas?


Em seguida, visitamos, sim, o exagero de Las Vegas, suas luzes, seus restaurantes e seus shows divertidos.

E, em seguida, atravessamos o apavorante e sublime Vale da Morte. Em fevereiro de 2013, escrevi um texto chamado "Pessoas Nubladas", em que mencionei o Vale da Morte: o local com a temperatura mais alta já registrada pelo homem. Com meu habitual fascínio pelo distante, inacessível e inóspito (ainda vou descobrir o porquê disso), fiquei curiosíssimo em saber como seria esse local - mas nunca imaginei que de fato passaria por ele um dia. O tempo foi generoso e surpreendente: um ano apenas se passou para que acontecesse. E, em pleno verão no hemisfério norte, sob um calor que ultrapassou os 49 graus - ainda que no conforto de um carro com ar condicionado - visitamos um dos locais mais inóspitos da Terra, um deserto cheio de paisagens lindas e amedrontadoras: visão de um outro planeta ou de uma era distante.



Menos de 24 horas depois, visualizamos os contrastes da altitude elevada, da vida exuberante, rochas imensas que namoram o sol, cachoeiras e florestas com árvores descomunais de 2000 anos de idade e 100 metros de altura, testemunhas vivas de um tempo que já não existe mais.





Estivemos também em San Francisco, cuja lembrança desta vez será muito menos preciosa do que há 20 anos, quando visitei pela primeira vez e amei. Vi que Alcatraz, ainda que muito interessante, é bem menos amedrontadora do que o presídio em Ushuaia, no extremo sul da Argentina. E vi que há mendigos, muitos mendigos, que falam inglês fluentemente.

Na Highway 1, pela costa da Califórnia, vimos belas praias e paisagens, que nos lembraram das belezas da generosa costa brasileira e que há tanta coisa linda para se ver sem precisar sair do Brasil, nem falar outro idioma.

E, por último, visitamos o Hawaii, que, ao contrário do que se imagina, não é um vilarejo com prais paradisíacas apenas, mas um estado urbanizado e bem estruturado. Com praias paradisíacas, sim, mas também com vida urbana e infra-estrutura, mesmo em locais remotos.





Sempre que viajo para qualquer lugar, tenho ideias para novos textos. E não queria - como não quis em textos anteriores - que esta fosse uma mera redação sobre as "minhas férias". Não. De modo algum. Mas, nesta, depois de tanto contemplar, não sabia sobre o que escrever. Tantas belas imagens me roubaram as palavras, que em geral me vêm tão facilmente. Um vazio criativo. Foi só quando chegamos ao Hawaii, onde há inúmeras magnólias, que achei o "ponto em comum", o fio condutor de todas essas experiências. Descobri, olhando para as simples magnólias e relembrando o que elas representam para mim, que o "encantamento" que senti era o aspecto comum a todos aqueles locais fascinantes e diferentes que visitei, esculpidos essencialmente pela passagem do tempo - que vai continuar a esculpi-los e transforma-los em coisas completamente distintas do que são hoje, em um futuro distante, talvez já sem testemunhas. Vislumbrei parte do que descrevi em um texto recente, intitulado "Imperfeição Divina": uma história maior do que a nossa, um tempo geológico e biológico, muito mais grandiosos do que o humano, tão recente e restrito.

Mas, curiosa e caprichosamente, na viagem ao Hawaii, não vivi algumas coisas que eu queira muito ter vivido. Por exemplo, não consegui pegar uma onda sequer. Não sou surfista, em absoluto. Meu físico de caçador de mouse sem fio e meu bronzeado de escritório deixam isso bem explícito. Mas sei nadar bem e já peguei umas ondinhas com bodyboard, alguns anos atrás, com um querido amigo de infância, do qual me lembrei quando pisei no Hawaii. Mas, desta vez, mesmo depois de 2 horas na água com uma prancha dessas, não consegui pegar uma onda sequer. Zero. Ao meu lado, rodeado exclusivamente por pessoas com longas pranchas de surf, todos pegavam. Eu, nenhuma. Depois vim a descobrir - quando, indignado, perguntei a um surfista local o porquê do meu fracasso - que aquele tipo de ondas eram adequadas apenas para pranchas maiores, e que outras praias próximas é que eram ideais para a bodyboard que eu estava usando. Resultado: costas (muito) queimadas e só. Vim a um dos paraísos mundiais do surf e não peguei nenhuma onda.

Fui também saltar de paraquedas. Sempre sonhei com isto, mas depois que as crianças nasceram, desisti. Agora, que já estão crescidinhas, resolvi: "se vou fazer isto uma única vez na vida, que seja aqui". Fui. No caminho, o rádio caprichosamente tocou Tom Petti cantando "Free Falling", e vi nisso um "sinal dos céus" de que aquele seria um dia inesquecível. Cheguei. Esperei por quase 5 horas e me animei quando finalmente vi meu nome na lista do próximo voo. Eu iria saltar! Mas, não. As nuvens chegaram de vez e tamparam o céu. Voos cancelados pelo resto do dia. Sonho adiado. Sem salto. E o dia perdido - o último no Hawaii - me impediu de fazer uma outra coisa que desejava: mergulho com snorkel, que também perdi.

O Hawaii é lindo de morrer. Não é muito mais incrível do que o litoral cearense, mas é belo de um jeito diferente. Minha viagem ao Hawaii, ainda que maravilhosa, foi basicamente panorâmica. Faltaram coisas que eu queria ter feito. E, confesso: meu primeiro sentimento foi de frustração.

Mas foi também ele, o Hawaii, que me fez lembrar, com suas magnólias, suas águas turquesas, azuis e outros tantos tons que não devem ter definição em idiomas tão complexos quanto o nosso, e a beleza de suas praias com nomes de pronúncia suave e doce, que sempre há coisas para se descobrir e que, muitas vezes, mesmo que estejamos com tudo à mão, no lugar certo, na hora certa, com tudo pronto, tudo perfeito, algumas coisas simplesmente precisam esperar. Não porque devem, nem porque sejam proibidas ou inacessíveis. Apenas porque o tempo de descobri-las talvez ainda não tenha chegado. Ou talvez nunca chegue. Algumas ondas, simplesmente não são surfadas. Alguns saltos, podem nunca acontecer. E tudo bem. Porque, afinal, é simplesmente impossível conhecer tudo. Algumas coisas simplesmente não acontecem e dão lugar para que outras, aconteçam.

O alfabeto havaiano tem 12 letras, apenas. Não tem R, V, F, T, S, B. As letras não fazem falta e conferem ao idioma uma sonoridade pueril, fresca, leve, infantil. Talvez seja porque, no idioma deles, não há tanto o que se explicar. Há mais o que se apreciar. Talvez não precisem de tantas letras, quando não há tanto para se dizer. A vida e a beleza do que ela tem a oferecer, dizem tudo o que precisa ser dito, sem palavras.

O Hawaii me lembrou que a beleza e a lembrança do que se vive, são mais importantes do que as faltas daquilo que não se viveu, ou que o tempo esfumaçou. As consoantes que faltam, não fazem falta. Não ter saltado de paraquedas, pensando bem, não me faz triste. Nem não ter surfado. E, da infância, posso não me lembrar do rosto da Raquel, mas fui tocado profundamente pela sua flor no cabelo. E isto já basta. Não me dói não me lembrar do seu rosto.

O tempo foi generoso comigo e com minha família, e nos permitiu viver, em apenas 3 semanas, vários dos momentos de encantamento que eu tanto prezo. Não sei dizer se gostei mais do deserto ou das praias. E, quem disse que preciso ter gostado mais de um deles? Espero que minhas meninas, daqui a 30 anos, lembrem-se deles com o mesmo carinho que eu - mesmo que talvez ainda não os compreendam neste momento, em que buscam um sinal de Wi-Fi com a mesma avidez que eu busco um pôr do sol. Talvez só precisem de tempo, assim como os Canyons.

Rubem Alves, um dos meus escritores favoritos, nos deixou durante o período em que fizemos esta viagem. Ele dizia que sua religião era a da beleza, e que Deus vive nas coisas belas. Então, esta viagem e as paisagens que vi foram praticamente uma oração de 3 semanas.

Chegando ao Brasil e à vida cotidiana, volto revigorado para achar nos pequenos momentos - nas simples flores no cabelo, nas árvores do meu bairro, que parecem mais verdes aos sábados, nas crianças que parecem dormir mais gostoso quando muito cansadas, ou no sabor de um prato que tem gosto de felicidade - os tais encantamentos que tornam a vida mais alegre, o coração maior e os caminhos a percorrer cada vez mais diversos, com belezas mais grandiosas do que nossa existência, ou com pequenas belezas tão grandes e simples, como o sorriso das meninas brincando na praia.


Que privilégio! Termino a viagem menor do que quando a comecei, porque meu mundo cresceu. É para isto que viajo; é para isto que vivo: tornar-me cada vez menor.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Imperfeição Divina

"Deus nos deu asas.
As religiões inventaram as gaiolas."
Rubem Alves

"And I believe in miracles
Something sacred burning in every bush and tree"
Steve Earle, em "God is God"
Ouvir no YouTube, cantada por Joan Baez

.


No dia em que entendi a Teoria da Evolução das Espécies, publicada por Charles Darwin em meados do século XIX, minha visão sobre o mundo mudou. Assim, de repente. Eu tinha de 15 para 16 anos, aproximadamente 130 anos depois de sua publicação.

Não, meu amigo leitor, este texto, escrito na Sexta-Feira Santa de 2014, não será sobre ciência, mas sobre como eu vejo Deus. Mas não será também um texto sobre religião. De modo algum. Na verdade, será sobre a beleza da diversidade e daquilo que é inevitavelmente imperfeito. Tenha paciência, leia até o fim e me diga se concorda ou não comigo.

Não sou biólogo, mas com o auxílio de uma, e sem deixar de usar minhas próprias palavras, entendo que a Teoria da Evolução, em síntese, afirma que as características de um indivíduo de uma certa espécie que, por qualquer motivo, representem vantagens para a sobrevivência em um certo ambiente, e sejam transmitidas a seus descendentes, prevalecerão. Até aí, parece óbvio.

No entanto, o que a maioria das pessoas não entende - ou não quer entender - é a incômoda ideia de que não há "propósitos". Pode ligar a TV em qualquer canal em que se fale sobre vida - Animal Planet, Discovery, NatGeo - e todos os dias vocês ouvirá algum locutor falar que "a águia tem olhos incrivelmente precisos para poder ver suas presas desde grandes distâncias", ou que "o urso polar tem uma espessa camada de gordura para protegê-lo do frio extremo", ou que "o tamanduá tem uma longuíssima e áspera língua para penetrar nos formigueiros e extrair seu alimento". Não! Isto está absolutamente errado.

A palavra "para", em cada uma dessas frases - e em quase todas quando se explica a vida - dá um senso incorreto de "propósito", de "intencionalidade". É como se algo ou alguém tivesse decidido que uma certa mudança acontece com um objetivo definido, para se chegar a um efeito pré-desejado. Isto está simplesmente errado.

Seguindo este raciocínio, se eu fosse abandonado peladão no meio do deserto da Sibéria, no norte da Rússia, e, de algum modo, desse um jeito de sobreviver e ainda tivesse a sorte de arrumar uma louca para comigo ter filhos, talvez eles - ou nossos netos, ou nossos bisnetos ou nossos tataranetos - necessariamente teriam mais pelos no corpo, ou mais gordura, ou se tornariam naturalmente imunes aos efeitos do frio extremo.

Ou, se o mundo por algum motivo ficasse submerso e alguns de nós sobrevivêssemos, nossos descendentes criariam nadadeiras ou aprenderiam a respirar embaixo d'água pelo simples fato de que, afinal, "é o que temos para hoje": água

Ou, como alguns dizem por aí há anos, "as próximas gerações de humanos não terão dentes, porque nossos alimentos estão cada vez mais macios, e não precisaremos mais deles para mastigar no futuro".

Sério? Tudo errado. Tudo errado. A "adaptação" (para usar o termo técnico) só se caracteriza como tal depois que representou uma vantagem; não acontece para que a vantagem apareça.

O urso polar está vivo porque tem a capa de gordura. O tamanduá está vivo porque tem a língua comprida. A águia, porque enxerga bem. Porque, se não enxergasse, daria de cara no chão cada vez que tentasse um ataque... ou atacaria uma pedra movida pelo vento.

É completamente diferente! O urso não criou a camada de gordura para sobreviver ao frio. Na verdade, ele sobrevive ao frio porque tem a camada de gordura. As coisas não acontecem "para"; elas acontecem "devido a". Não há intenção. Não há propósito. Há apenas consequência, efeito.

Algum urso polar talvez um dia tenha nascido com um defeito que fazia com que ele produzisse menos gordura. E morreu. E talvez uma águia tenha nascido míope. Ou um tamanduá, sem língua. Morreram, todos. Ou então, nasceu um urso com faro melhor, visão melhor, maior tolerância ao frio, mas estéril. E suas vantagens simplesmente não seguiram adiante - e não se repetiram em mais nenhum outro urso. O certo que deu errado.

Isto significa, portanto, que só vemos o que "deu certo". Todas as espécies que vemos todos os dias, todas as plantas, os cachorros, os gatos, os malditos pernilongos e as baratas que aparecem correndo à noite perto do lixo, são seres que "deram certo" em seus respectivos ambientes. Porque os que não deram, morreram.

Ora, então quer dizer que estes que "deram certo", são perfeitos, certo? Estamos olhando para a perfeição da criação divina - afinal, estamos olhando para "os escolhidos"! Errado.

Se tivermos em mente que mais de 99% de todas as espécies que já existiram na história estão extintas - a grande maioria, muito antes de existir o mais primitivo rascunho do homem - vamos parar para pensar que os "perfeitos", em algum momento, deixaram de sê-lo. A imensa maioria do que deu certo, já não existe mais. E não estamos falando de aberrações, nem de "erros" da natureza, não! Estamos falando de gigantes carnívoros, de insetos do tamanho de ônibus, de peixes fortes e resistentes, de todo tipo de seres que, em algum momento, reinavam absolutos, "perfeitamente" adaptados ao seu ambiente. E, uma dia, deixaram de ser. Ou foram superados por outros que, afinal, mostraram que os perfeitos... bem, não eram tão perfeitos assim.

O que isto quer dizer? Pare e pense um pouco. Quer dizer que não há perfeição, assim como não há propósito! Afirmar que "A Natureza é Perfeita" é, portanto, um erro.

O que há, sim, é uma alteração contínua de circunstâncias que, ao longo de milhões e milhões de anos, esculpe a vida e a torna tão incrivelmente diversa e bela, com base na mais incômoda de todas as variáveis: o acaso. Muitas mudanças acontecem, sem que saiba exatamente se serão úteis ou não. Algumas delas podem ser importantes o suficiente para representarem vantagem e, com sorte, serem passadas adiante; ou simplesmente indiferentes a ponto de não inviabilizarem a vida, e serem levadas adiante, mesmo que inúteis.

Somos, portanto, uma sucessão de acasos que deram certo ou que, na melhor das hipóteses, não atrapalharam. Pelo menos, não por enquanto.

Vamos levar o raciocínio adiante e sair do campo da Biologia, para o da Astronomia. E, em seguida, a Deus.

Nosso Sol é pequeno se comparado a outras estrelas. E ainda é relativamente jovem. Completou apenas um terço do seu "ciclo". Ao longos dos próximos bilhões de anos, vai esquentar muitíssimo a ponto de fazer toda a água da Terra evaporar e fazer sua atmosfera escapar para o espaço. A vida estará inviabilizada muito antes que ele, o Sol, daqui a 5 bilhões de anos, cresça a ponto de finalmente engolir a Terra. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Literalmente.

O mesmo Sol que permite à vida existir, vai inviabilizá-la. E depois, ironicamente, ele próprio vai morrer.

Mas não há com o que se preocupar. Assim como os outros 99% das espécies que já existiram, nós provavelmente estaremos extintos muito antes disso. Porque não somos perfeitos, nem indestrutíveis.

Deprimente? Nem um pouco. Apenas põe as coisas em uma belíssima perspectiva. Falo sério. Belíssima. Vamos falar de Deus, então.

As pessoas veem Deus como um Pai. É o senhor de voz grave, idoso, corpulento e sábio, que interfere, salva, decide, pune e premia. Veem-no como a imagem da perfeição.

Mas, se 99% das Suas criações na Terra já desapareceram, que perfeição é esta? E por qual motivo criaria um sol para aquecer e em seguida engolir a casa de Seus filhos, incluindo Sua "melhor criação" - os humanos? E por qual motivo criaria um universo tão vasto, mesmo sabendo que sua melhor criação nunca chegará a conhecê-lo por completo?

E se falarmos de méritos e de castigos? O que fizeram de tão mal aquelas pessoas que morreram em tsunamis e terremotos? E que perversas devem ser aquelas crianças africanas famintas, para serem tão severamente punidas! E que pouca fé deve ter aquela senhorinha beata, cuja netinha morreu de câncer, apesar de todas as suas orações e promessas sinceras!

Acredito piamente em Deus. Mas não nesse. Não posso acreditar na figura de um pai que beneficia tanto alguns filhos, enquanto pune outros que nem conhecem os próprios erros.

Não posso acreditar na figura construída de um Deus que aplaude o sacrifício e renega o prazer. Rubem Alves, em "Variações sobre o Prazer", faz-nos uma pergunta inquietante: "Será que Deus fica feliz quando vê os seres humanos sofrendo? Digo isso pelo fato de que os fiéis, ao fazerem promessas a Deus para obter seus favores, o que lhes oferecem são sempre objetos dolorosos. Nunca ouvi de um devoto que tivesse oferecido a Deus uma sonata de Mozart ou um poema de Fernando Pessoa. A Igreja ensinou que o prazer é o ninho do pecado. Como se o mundo fosse um imenso jardim cheio de árvores com frutos doces e coloridos, com placas em todas dizendo: “Proibido”.(...) A espiritualidade que nos ensinaram foi construída sobre a negação do prazer. O caminho da santidade é o caminho do sofrimento".

Caramba, se há tanta gente sofrendo, por que essas pessoas não são beneficiadas com o que o sacrifício lhes confere aos olhos de Deus? E o que fiz eu e minhas filhas, tão privilegiados, para merecer tão escancaradamente tantos benefícios em vida?

Não posso acreditar em um Pai tão injusto. Desculpe, mas não. Não posso crer na história de um "Pai implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como todo pai humano que ama sabe fazer), mata o próprio Filho na cruz (...). É claro que quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor, são sempre os pais que morrem para o que filho viva." (Rubem Alves, em "O Deus que Conheço", página 31).

Meu Deus é outro. É o Deus da beleza, da simplicidade, da solução e não da culpa. Do prazer, não da dor. Um Deus que permite viver e experienciar, não limitar e cercear. Um Deus que não pune, nem salva. Não cura, nem mata. Um Deus tão livre que permite à Natureza evoluir sem um propósito pré-definido. Meu Deus não decide que a capa de gordura dos ursos polares será grossa para que vivam no frio, para depois matá-los escaldados sob um Sol voraz. Não. Meu Deus simplesmente é. Ele não faz. Ele não arbitra. As coisas são como são, e pronto.

Acredito no mesmo Deus que Rubem Alves: "Eu amo a beleza da natureza, da música, de um poema. Amo a beleza das palavras de amor que os apaixonados trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto." (em "O Deus que Conheço", página 89).

Meu Deus é a Vida cantada por Mercedes Sosa em "Gracias a La Vida". É o milagre do que é trivial, do que teima em dar certo por um certo tempo, mesmo havendo tanto para dar errado. Meu Deus não nos escolheu para estarmos neste planeta, e provavelmente criou outros tantos iguais a este, aos quais nunca chegaremos. E também os diferentes, aonde, se chegássemos, não seríamos perfeitos o suficiente para neles sobrevivermos. E outros, para sempre desconhecidos, onde talvez Ele tenha "criado" vidas que são tão "suas filhas" quanto nós, mesmo sendo absolutamente diferentes daqueles que se dizem os "perfeitos", criados à sua imagem e semelhança.

Todas essas coisas, eu, você, a barata, a estrela cuja luz nunca chegará à Terra, existem porque existem. Simples assim. Não existem para. Não foram criadas por. Existem porque existem. Só.

E, não importa quão distantes sejam, nem quão inóspitas, nem quão diversas de mim e de você, todas elas são feitas das mesmas coisas, de uns cento e tantos elementos químicos que fazem tudo o que existe, existir - muito além de simplesmente aparecerem naquela tabela periódica que você tentou decorar para a prova de Química e, ainda assim, se estrepou.

Meu Deus está na ideia de unidade que há em tudo isso. Meu Deus está no todo, não na parte. Ou está em ambas, igualmente. Está na beleza de acreditar que essas coisas todas, tão diferentes e tão iguais, vêm de um único lugar, e para ele voltarão um dia. Isto nos faz tão pequenos, ou tão grandes, quanto nosso Sol.

Comecei este texto dizendo que minha percepção mudou no dia em que entendi, quando tinha 15 ou 16 anos, que a imperfeição e os acasos do trajeto são exatamente o que conferem à vida a diversidade e a beleza. De lá para cá (escrevo este texto numa Sexta-Feira Santa, às vésperas de completar 37 anos), não me tornei menos religioso. Apenas mais imediatista, mais sinestésico, mais apegado aos pequenos do que aos grande milagres, mais apegado ao agora do que ao amanhã, mais desejoso da fruta que caiu do pé hoje, do que da que crescerá só na próxima estação. Amante do verão tanto quanto do inverno. E mais crente de que a religiosidade e o divino são um estado de espírito, uma comunhão com a vida, e não uma doutrina com uma série de regras a serem seguidas.

Celebro a Páscoa (daqui a dois dias) por hábito e por respeito àquilo que une tantas pessoas ao redor do planeta, há tantos séculos. E faço-o convicto de que, de um modo ou de outro, rezando para este, para aquele ou para nenhum Deus, somos todos tão diversos quanto irremediavelmente parecidos, transitórios e divinamente imperfeitos.



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