domingo, 6 de outubro de 2013

Noite às escuras

Quando criança, tinha sentido pavor do escuro. Não sabia exatamente o porquê, mas tinha. Com o passar do anos, já adulto, o pavor deu lugar a um mero desconforto. Mas o fato é que havia algo no escuro que sempre lhe causara certo temor.

Nunca tivera qualquer trauma específico envolvendo escuro. Até aquela data, nunca tinha ficado sozinho em casa quando faltara luz, nem tinha tido qualquer experiência sobrenatural - embora tivesse, também, medo de assombração. "Eu não acredito em fantasmas. Mas que eles existem, ah, existem", dizia. Adorava filmes de terror, jogos de terror, história de fantasmas. Adorava desafiar seu medo no conforto do seu sofá, sob a luminosidade acolhedora vinda da tela da TV.

Às vezes, corajoso, obrigava-se a andar no escuro dentro de casa, depois que anoitecia. Sentia os pelos do braço eriçados, mas não corria, enfrentando o medo que não sabia explicar e também não divulgava a ninguém.

Tinha especial fascínio também pelos bichos que viviam na completa escuridão: seres das cavernas, peixes abissais e outras criaturas da noite. "Todos fascinantes".

Enfim, convivia com aquele desconforto desde sempre. Não era algo que lhe incomodasse ou perturbasse. Apenas estava lá, acompanhando-o desde sempre.

Certo dia, no entanto, aconteceu um episódio curioso. Era umas 23h, estava em casa sozinho e faltou luz. Não era uma mera queda de energia no bairro, não. Da sua janela viu - ou na verdade, não viu - a cidade escura por onde olhasse. Um apagão completo.

Era uma noite sem luar. O céu nublado deixava o ar pesado e opaco. Até os carros pareciam ter ido dormir. Não havia circulação. Estava escuro pra valer. Nem barulhos havia. Era como se alguém tivesse congelado o mundo exatamente como descreveu Saramago, mas ao contrário: preto. Completamente preto.

Em poucos instantes, olhando a janela dos outros prédios próximos ao seu, via retângulos iluminados, flutuando de um lado para o outro nos apartamentos escuros. Pois é, até as velas tinham sido substituídas pelos celulares de tela grande o suficiente para serem mais interessantes do que o resto do mundo. "Será que as baterias destes celulares acesos duram mais do que uma vela?". Tentou ligar seu próprio celular, mas estava completamente sem bateria, desde aquela tarde. Apagado de vez.

Onde teria deixado as velas, afinal? "Na cozinha, com certeza". Começou a tatear, devagar. Se as luzes estivessem acesas, provavelmente conseguiria fazer facilmente aquele trajeto, mesmo com os olhos completamente fechados. Mas, no escuro, não. Foi tateando lentamente, com os braços esticados e duros à frente do corpo, os olhos esbugalhados tentando captar qualquer resquício de luz e as mãos bem abertas, esperando tocar a parede à qual nunca chegava. Não estava exatamente com medo, apenas queria poder enxergar alguma coisa à frente do nariz.

Os pés arrastavam-se, como que temerosos de que ao se descolarem do chão por um instante, pudessem perdê-lo de vez. O grande tapete não lhe permitia sequer sentir as emendas das tábuas do piso, que poderiam servir-lhe de referência. Nada. Andava vagarosamente sobre o tapete com os olhos e o tato vendados pela escuridão, já perguntando-se se tinha ido para a direção oposta, até que sentiu uma dor lancinante quando o dedinho do pé esquerdo encontrou o batente da porta da cozinha, que, inexplicavelmente, tinha ido parar ali.

Soltou um palavrão, esperou a dor passar e seguiu tateando. Estava finalmente na cozinha. Queria chegar às gavetas, onde imaginava que encontraria velas.

Finalmente, encontrou. Enquanto mexia na vela, ela escorregou da sua mão e caiu no chão. Pode ouvi-la rolando, embora não tivesse ideia de para qual direção tinha ido. Provavelmente quebrara-se. "Saco!". Passou a ter medo de pisar no chão, e escorregar nos pedaços de vela que, àquela altura, certamente tinham a intenção deliberada de derrubá-lo.

Teve uma ideia brilhante: acender um fósforo! Iluminaria rapidamente o ambiente, acharia a vela, acenderia o pavio, e voilá!

Isso, se houvesse fósforos. Mas não havia. Nenhum. Necas de pitibiribas. Estava definido: suas próximas horas seriam na mais completa escuridão.

Depois de desistir de sua procura em vão pelos fósforos, mesmo depois de ter achado três outras velas, decidiu voltar para a sala, já deslocando-se com melhor desenvoltura pela escuridão. Sentou-se no sofá, pôs as mãos no colo e ali ficou por alguns segundos, pensando no que fazer. "Acho que vou dormir". Mas não sentia sono. Ao contrário, estava mais acordado e alerta do que nunca. E sentia-se relaxado. Não estava com medo, e estranhou o fato. Afinal, quando havia luz, ficar no escuro parecia-lhe desagradável. Mas, quando não havia, e o escuro era sua única opção, pareceu-lhe perfeitamente suportável. Ou, mais do que isso, curiosamente interessante.

Jogou-se para trás, encostando-se no sofá. Cruzou os dedos atrás da cabeça e "olhou" para o teto. Na verdade, não havia nada para olhar, mas imaginou que estivesse olhando para o teto. Respirou fundo, acomodou-se no sofá e, sem querer, adormeceu.

Acordou sobressaltado. "Quanto tempo se passou?" Ainda estava escuro. "Será que já é madrugada?". A que horas ia acordar mesmo? "Será que o despertador já vai tocar? Não posso me atrasar hoje! Já é hoje? Ou ainda é ontem?". Os passarinhos não cantavam. Normalmente, quando acordava antes do despertador, ouvia os passarinhos cantando, muito antes do sol nascer. Mas estavam silenciosos. "É porque é tarde demais ou cedo demais?"

As ruas e as janelas dos outros prédios continuavam às escuras. O blecaute prosseguia. Os olhos, já completamente despertos, conseguiam distinguir a silhueta de alguns objetos na casa. Percebeu que ainda estava com o relógio de pulso. Tentou olhar as horas, mas não conseguiu.

Levantou-se e foi facilmente caminhando até a cozinha. Encheu um copo com água sem derrubá-la, ouvindo apenas o barulho do copo se enchendo, e tomou. Lembrou-se que na geladeira havia um pedaço de queijo minas e um finzinho do pote de dulce de leche que havia trazido de sua viagem recente a Buenos Aires. Comeu, tentando se lembrar se aquele doce de leite estava mais para clarinho ou mais para escurinho. Fez tudo isto na completa escuridão. Fácil e naturalmente.

Foi  para o quarto, ficou de cuecas e deitou-se. Largou a roupa no chão. "Ah, vai lavar, mesmo". E adormeceu de novo, "olhando" para o teto.

Acordou com os primeiros raios do sol entrando pela janela, que havia se esquecido de fechar. O rádio-relógio piscava 00:00. Virou-se de lado e, graças à luz da manhã, conseguia finalmente ver as horas no relógio de pulso: faltavam alguns minutos para as seis. Levantou-se, tomou banho, escovou os dentes e seguiu adiante com seu dia.

Talvez ele ainda não tenha notado, mas desde aquele dia, seu medo de escuro passou. Não sente mais incômodo algum. Os pelos do braço não se eriçam mais. Não se obriga a andar devagar controlando o medo enquanto caminha pelo corredor da própria casa. Estar no escuro, não ver, ter que tatear ou usar os ouvidos para conseguir encher o copo d'água, serviram para aguçar-lhe os sentidos, e mostrar-lhe que o escuro às vezes é não apenas inevitável, como bem-vindo.

Mas, o mais curioso de tudo, não é que o medo do escuro tenha passado. É que ele nunca vá saber quanto tempo ficou adormecido nas duas vezes em que pegou no sono naquela noite. Talvez tenha dormido horas no sofá, e minutos na cama. Ou minutos no sofá e horas na cama. Aquela foi uma noite que ele não sabe - e nunca saberá - exatamente como passou.

Mas, passou. E talvez vá se dar conta, provavelmente com alegria, que o medo do escuro, "quem diria?", também.

terça-feira, 30 de julho de 2013

O Dia Seguinte


Foto de Mariana Conde 
Diga que ainda dormia quando o despertador tocou. E que não foi você quem acordou o sol.

Diga que levantou-se, lavou o rosto e teve coragem de olhar-se no espelho enquanto escovava os dentes.

Diga que abriu a janela e deixou a luz entrar. E que fez a cama.

Diga que colocou pelo menos uma peça de roupa colorida.

Diga que penteou os cabelos e passou perfume. E que calçou sapatos, não pantufas.

Diga que tomou café da manhã, e sentiu seu gosto.

Diga que ouviu o barulho dos próprios passos enquanto caminhava até o carro. E que o fez sem óculos escuros.

Diga que ligou o rádio, sem medo das músicas que pudessem tocar.

Diga que foi, sim, trabalhar, e que quase ninguém notou nada de diferente. E que a única pessoa que notou, respeitou seu silêncio, mas ofereceu colo, se lhe quiser contar.

Diga que deu "Bom Dia", atendeu ligações, reclamou de algo, resolveu coisas, mexeu-se.

Diga que na hora do almoço, não comeu só salada nem tomou só água. E que perdoou-se por ter aceito a sobremesa.

Diga que a tarde passou surpreendentemente rápido, como qualquer outra.

Diga que ao voltar para casa, demorou-se um pouco mais no banho quente. E que usou uma toalha seca e macia para se enxugar.

Diga que vestiu uma roupa, não um roupão.

Diga que não se sentou em frente à TV só para ouvir uma voz qualquer. E que lembra de pelo menos uma notícia do telejornal.

Diga que jantou e depois tomou um licor, ou comeu um bombom.

Diga que escovou os dentes antes de deitar.

Diga que não manteve o abajur aceso por medo de pesadelos.

E que o silêncio da noite não lhe fez ensurdecer com os próprios pensamentos.

E diga que logo antes de adormecer, permitiu-se um suspiro de alívio. Porque sabe que haverá na vida outros dias seguintes. Mas que este, felizmente, já terminou. Boa noite.

domingo, 30 de junho de 2013

E ai de quem não coma!

Era um chato. Pense num cabra chato? Era ele: uma pessoa dotada de uma inteligência ímpar para tudo que fosse cricri, enjoado, metódico e implicante. Um chato natural, puro-sangue, que nascera com o gene da chatice duplo-dominante. Chato com pedigree. Porra, como era chato!

Certo dia, ainda lembrava-se muito bem, quando iniciou as aulas no ginásio, participou de uma dinâmica de grupo em que cada um deveria responder, na roda: "Se você fosse usar uma única palavra para definir-se, qual seria?". As outras crianças, normais, definiram-se como "simpáticas", "alegres", "amigas", "sorridentes". Ele: "perfeccionista". Tinha consciência plena da própria chatice. E nada podia fazer para mudá-la.

Na infância, tinha um problema com os cadarços: precisavam ser milimetricamente alinhados, para que o laço pudesse ser dado com a precisão devida. Não podia haver voltas, nem torções. Após colocá-lo no tênis e esticar a pontas, para medir seu comprimento, a diferença entre elas tinha que ser nula - e isto deveria acontecer "de primeira". Caso contrário, tirava o cadarço todo e colocava-o de novo, paciente e doentiamente, tantas vezes quanto fosse necessário, ou quantas os adultos normais ao seu redor permitissem, antes de explodirem de raiva e indignação com tamanha chatice.

Não comia verduras de nenhum tipo, em nenhuma hipótese, o que lhe valeu o ilustrativo apelido de "Verdurinha", criado por um amigo do pai, que via em tirar-lhe sarro o melhor de todos os passatempos.

Como demonstração de sua chatice, um dia, durante o almoço, estranhou a cor das batatas em rodelas, que adorava:

- Mãe, por que a batata está esverdeada?
- É o tipo de batata, que é diferente, filho. Gostou?
- É, é boa.
- Então come, filho. Come.

Terminada a refeição, soube a verdade: era chuchu. Sua mãe, coitada, mentira para fazer-lhe comer. E Verdurinha passou anos sem comer chuchu. Só foi fazê-lo quando sua filha, já grande, arrumou um namorado.

Os pais de Verdurinha, corajosos e dedicados, odiavam vê-lo adormecer no carro. Porque, já grandinho, ao ser despertado, mesmo que carregado no colo, transforma-se em um ser das trevas. Ficava intragável e sua chatice, naturalmente elevada, parecia ser açoitada pelos deuses do azedume, para tornar-se hiperbólica e completamente insuportável.

Mas, como o tempo é generoso, Verdurinha cresceu e sua chatice foi abrandada. Tornou-se um homem relativamente normal, exceto pelo fato de não gostar de café, nem de sushi, nem de mamão, nem de assovios (dizia que era coisa de velho. Vai entender...) e preferir suspensórios a cintos. Tornara-se supervisor de segurança da informação, em uma empresa de auditoria internacional, trabalho que nunca conseguira explicar a ninguém que, educadamente, lhe perguntava qual era sua profissão e que ele, ingenuamente, acreditava ser interesse verdadeiro em sua pessoa tão desinteressante.

Por uma dessas coisas inexplicáveis da vida, Verdurinha começou a namorar com uma moça completamente maluquinha das ideias, uma meia-irmã de um de seus amigos de infância, apelidado de Zacarias, por causa da voz fina que manteve até quase o final da adolescência.

A moça era divertida e desencanada, tinha os cabelos revoltos e assimétricos, olhos grandes e vivos e lábios inquietos, cujos beijos exagerados e gostosos lhe surpreendiam e excitavam. Era tão doidinha, imagine, que fez xixi de porta aberta, na primeira vez em que dormiram juntos! Cortava sozinha os próprios cabelos e nunca, jamais, usava salto alto.

Seu apelido era Polilla, que quer dizer "traça" em espanhol. Quando adolescente, ela fizera intercambio no Panamá (por vontade própria, e não por falta de vagas na Nova Zelândia ou nos EUA) e, por passar o dia todo com a manga da blusa na boca, como se a quisesse comer feito uma traça, ganhara dos colegas de escola o apelido de "Polilla".

Eram uma espécie de Eduardo e Mônica: diferentes, mas surpreendentemente compatíveis. Namoraram por 8 meses e começavam a acreditar que aquela relação meio amalucada poderia realmente dar certo.

Foi quando surgiu para Polilla uma oportunidade irrecusável: estudar gastronomia em Quebec, no Canadá. Não aguentava mais trabalhar como recepcionista de consultório e queria mesmo era ser chef de cozinha. Aprendera francês ainda jovem, motivada por entender as músicas pelas quais se apaixonara quando criança, enquanto ouvia-as com a mãe, uma goiana deslumbrada pela França, embora nunca tivesse colocado os pés lá. Seu ótimo francês abriu-lhe as portas para a bolsa de estudos na cidade mais francesa do Canadá.

Chegou o dia de Polilla contar a Verdurinha sobre seus planos. Uma tragédia. Verdurinha finalmente sentia-se uma pessoa normal, finalmente sentia-se gostado por alguém que não fosse da família e que lhe fazia, de algum modo, mais livre, mais feliz e mais irresponsável - exatamente como sempre quis ser. E agora, justamente agora, este alguém iria deixar-lhe. Ficou arrasado.

Polilla partiu no final no Fevereiro e chegou ao Canadá em pleno inverno, sob uma forte nevasca. Nunca tinha visto neve e aquela visão tão bonita fez-lhe lembrar de Verdurinha e do calor de suas mãos. Não pensava nele pelo nome de "Verdurinha", que nem sequer conhecia, mas pelo apelido que lhe tinha dado, dois meses depois de começarem a se ver: "Cri", de "cricri", como reconhecimento terno à chatice da qual ela, inexplicavelmente, aprendera a gostar.

Verdurinha estava triste, como nunca havia se sentido. Seus dias sem Polilla eram cheios de nada, cinzas, longos e insípidos, como ele. Não suportava o próprio gosto e sentia uma falta de Polilla que, pela inabilidade com as palavras, não conseguia descrever.

E assim ficaram, completamente afastados e incomunicáveis, por meses. Polilla continuou seus estudos e até trocou uns beijos com um colega romeno, que também estudava na mesma escola de gastronomia. Sem grandes envolvimentos, só uns beijos, mesmo.

Verdurinha seguiu com sua vidinha, resumida a assistir seriados legendados, que baixava da internet, jogar Playstation 3, assistir vídeos pornôs em sites gratuitos e, quando tinha sorte, aos finais de semana, dar uns amassos em alguma feinha bêbada, depois que a noite já estivesse longa o suficiente para que ela aceitasse que ele seria a única coisa que conseguiria, depois de tanta cerveja.

Após vários meses sem falar com Polilla, um dia seu telefone tocou às 11h30, na manhã de um sábado com ar parado, seco e frio.

- O que é? - atendeu ele, com seu tradicional mau-humor matinal, com voz de travesseiro babado.
- Te acordei?
- Quem está falando?
- Te acordei, Cri?

Só ela o chamava de "Cri". Seu coração parou por um momento. Não imaginou que ouvir sua voz pudesse causar-lhe algum impacto, depois de tantos meses de afastamento.

- Polilla?! - falou, sentando-se, surpreso com o volume da própria voz.
- Como você está, Cri?

Ele fez uma longa pausa, já completamente desperto e sentado na cama; uma pausa longa o suficiente para ela achar que a ligação havia caído.

- Alô? Cri?
- Estou aqui.
- Achei que a ligação tivesse caído... Como você está, menino? - ela tinha mania de chamá-lo de menino. A voz não deixava dúvidas: estava sorrindo.

Ele fez novamente uma longa pausa.

- Cri?!
- Estou com saudade, Polilla.

A pausa desta vez foi dela. Ele ficou imaginando se ela estava surpresa com a resposta. Ficou lembrando do rosto que ela fazia quando se surpreendia com alguma coisa, fechando os olhos grandes demoradamente, soltando um suspiro curto e um discreto e adorável sorriso nos lábios.

- Estou voltando para o Brasil, Cri.

Ele também sorria, em silêncio.

- Chego amanhã.


Verdurinha foi apanhá-la no aeroporto. Chegou 2 horas antes, tamanha era a ansiedade.

Polilla chegara diferente, mais madura e mais bonita. Os cabelos estavam bem cortados e simétricos, mais lisos do que antes da viagem. A pele estava mais branca, talvez pela menor generosidade do sol canadense. Mas os olhos, ah, esses eram os mesmos: grandes, escuros e vivos, exatamente como os conhecera.

Sem rodeios nem palavras, abraçaram-se e beijaram-se, como se nunca tivessem se afastado. Um beijo delicado e discreto, de quem não tem nada a provar, nada a explicar, nada que já não soubessem de cor.

Verdurinha voltou a ser homem que Polilla fazia dele, o homem que queria ser. Nunca acostumou-se a comer chuchu, nem tomar café. Mas aprendeu a comer as esquisitices que Polilla, com seu paladar treinado e refinado, preparava. De vez em quando pedia para ela fazer frango com arroz e feijão, mas não recusava seus outros pratos, de nome difícil.

Quando nasceu a primeira filhinha do casal, deram a ela o apelido de "Corú", um pseudo-diminutivo de Coruja. A moleca simplesmente não dormia à noite e trazia, ainda pequena, um pouco dos traços chatonildos do pai, mas disfarçados pelo sorriso fácil, herdado da mãe.

Mesmo agora, já crescida, vive sendo repreendida pelos pais, porque não tira a roupa da boca - tal como fazia a mãe, quando jovem. E ouve-se à boca miúda que Corú está de namorico com um garoto que, puta que pariu, é o maior chato de mundo!

O menino vai almoçar na casa deles, no próximo domingo. E Verdurinha já decidiu que, neste dia, é inegociável: vai haver chuchu na mesa. E ai de quem não coma! Ai de quem não coma!

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Espelhos

Fazia exatamente uma semana. Pareciam meses, mas havia se passado só uma semana desde aquela noite. Se tivesse sido uma como outra qualquer, não teria nada de muito marcante: não tinha sido muito frio, nem muito calor; não teve clássico de futebol; o trânsito não estava tão terrível; nem havia chovido. Poderia até ter sido um dia esquecível. Não fosse pelo fato de, naquele dia, exatamente 7 dias antes, terem terminado o namoro.

Tinha sido um namoro curtíssimo, mas intenso. E por serem talvez tão iguais, ou talvez tão diferentes, passados poucos dias desde o primeiro beijo, havia muitos motivos para continuarem namorando, e também muitos motivos para terminarem. Todos bons motivos. Todos legítimos. Prevaleceram os últimos. Terminaram. E mantiveram, desde aquele noite, distância. Silêncio.

Passada uma semana desde o término, Carina acordou bem disposta. Ainda pensava nele, e ainda doía. Mas, pela primeira vez em dias, sentia-se bem. Passara aquela semana em viagem a trabalho, em uma pequena cidade de interior. Não sabia se aquela semana, sozinha naquela cidade, havia sido uma coisa boa ou não. Se, por um lado, permitia-lhe desfrutar de uma bem-vinda distância inevitável e completa, por outro dava-lhe tempo demasiado para ficar sozinha com os próprios pensamentos. O fato é que, mesmo distante e sozinha, acordou bem naquela manhã

Não se achava uma mulher particularmente interessante. Achava-se inteligente, gentil, educada, agradável. Mas não se achava nem um pouco atraente. Não entendia o quê, afinal, ele havia visto nela. O quê será que pareceu-lhe tão atraente naquela mulher que, no espelho, via uma pessoa tão sem cor, tão triste e tão sem graça?

Voltou para casa. Finalmente havia acabado aquele dia e aquela semana. O trajeto desde a pequena cidade até sua casa havia sido cansativo. Mesmo assim, como estava sentindo-se bem disposta, resolveu passar no shopping center, para comer alguma coisa. Não queria chegar em casa e ainda ter que cozinhar.

Foi ao shopping, sentou-se à mesa de um restaurante e comeu sozinha, navegando na internet pelo velho celular, do qual ela jurava que iria desfazer-se em breve, e trocar por um mais novo. E, quando terminou o prato, achou que conseguiria manter a promessa que havia feito para si própria: a de não procurar nenhuma mensagem dele. Mas não cumpriu. Antes da sobremesa chegar, já havia procurado, mas nada encontrou. Veio a sobremesa: petit gateau - talvez porque precisasse de um pouco de chocolate. Comeu só o gateau e deixou o sorvete.

Pagou a conta, levantou-se e procurou o batom na bolsa. Não estava. Onde teria deixado o batom? Lembrou-se: ficara no criado mudo, ao lado da cama, no quarto do hotel na pequena cidade onde tinha passado a semana, 600 Km dali.

Passou numa loja de maquiagens, para comprar um batom novo. Ainda daria tempo? Daria, eram 21h, ainda. Não era mulher de ter 1000 batons. Tinha 3 ou 4, apenas um de cada cor. Pediu à atendente um batom clarinho. Batom, em geral, era clarinho. A maquiagem, ainda que visível e bem-feita, era geralmente discreta. Vermelho, em geral, só mesmo nas unhas. Nos lábios, só em ocasiões especiais ou em dias em que se sentia poderosa, o que era pouco frequente.

A atendente deu a ela de brinde um porta-batons, um daqueles estojinhos com um espelhinho retangular, comprido e estreitinho. Carina agradeceu-lhe a gentileza e, sem pensar, abriu o estojinho para olhar os lábios, enquanto passava o batom recém-comprado. Não havia porque olhar-se naquele espelhinho, já que a loja era cheia de espelhos grandes e bem iluminados. Mas, sem perceber, foi no espelhinho mesmo.

Ao olhar o reflexo no espelhinho, espantou-se: achou seu lábios lindos. Não só a cor, mas a forma. A pele clara, em volta dos lábios, parecia-lhe também especialmente bela. Ficou alguns segundos admirando a própria beleza, naquele espelho estreito. Não, não estava só bela. Estava linda!

Virou-se para olhar no espelho grande, da loja. Mas o espelho refletia a mesma imagem de sempre, sem graça. Olhou-se em mais outro espelho. Idem. Voltou a olhar-se no espelhinho do estojo do batom. Lindíssima. Achou que tinha enlouquecido. Como pode um espelho refletir de um jeito, e todos os outros refletirem de outro?

A atendente, percebendo a agitação dela, perguntou se estava tudo bem. Mas ela apenas agradeceu e saiu da loja correndo, meio atordoada, meio feliz. Queria chegar em casa logo e estudar aquele espelho. Chegou, largou a mala na sala, tirou os sapatos - como tinha conseguido ficar de salto alto tantas horas? - e correu para o banheiro, descalça. Acendeu a luz, olhou-se no espelho grande e viu-se como sempre: normal. Abriu o estojinho do batom: linda. Como assim?!

Moveu o estojinho, de forma a ver seus olhos. Grandes, como sempre. Mas refletiam-se belos e intrigantes. Afastou um pouco o espelhinho, para tentar ver-se um pouco mais, naquele reflexo tão estreito. Esticou bem os braços. A pele fina, quase sem marcas, refletia-se clara e delicada. Quase podia dizer que a pele refletia-se perfumada, até.

Àquela altura, ouvia sua própria respiração, acelerada. O coração batia forte. Abaixou o espelhinho e, no espelho maior, notou seu rosto cansado, depois de uma dia longo de viagem. Precisava de um bom banho e uma boa noite de sono. Definitivamente, o reflexo do espelho de rosto do banheiro continuava não combinando com o do espelhinho do porta-batom. Desinteressantemente normal em um; deslumbrantemente encantadora em outro.

Tomou seu banho e deitou-se imediatamente. Estava intrigada e contente com aquele reflexo especial, que aquele espelho mágico lhe oferecia. No dia seguinte, consultaria uma amiga, para saber o que ela via. Não tardou a dormir. Estava realmente cansada. Dormiu um sono só, sem despertar-se durante toda a noite.

Acordou de repente, sem sobressaltos. Era preguiçosa ao acordar, especialmente nos finais de semana. Ficava na cama, namorando o travesseiro macio e o silêncio, tão valioso e raro em uma grande cidade. Mas, naquele dia, não. Acordou instantaneamente, como se alguém a tivesse ligado na tomada de repente. Não tinha o menor sono, mesmo tendo dormido apenas algumas horas. O dia ainda estava amanhecendo.

Levantou-se, foi até a cozinha, tomou um copo d'água e foi ao banheiro, mesmo sem estar com muita vontade. Acendeu a luz e, ao lavar as mãos, viu o porta-batom, que havia deixado na pia. Abriu o estojinho e olhou-se, para ver se continuava mágico. Continuava. No espelho grande, olheiras. No pequeno, olhos doces e vivos. Belíssimos. Continuava sem entender, mas estava feliz. E sentir-se genuinamente feliz, depois de uma semana de tristeza, distância e silêncio, era um presente.

Iria mantê-lo ali, junto com os objetos que ficavam na prateleira do banheiro. Mas a cola que prendia o espelhinho ao porta-batom era fraquíssima. E, ao começar a fechá-lo, o pequeno espelho soltou-se. Carina soltou um "Ah, não!", enquanto o via cair e espatifar-se em mil pedaços, no chão do banheiro. "Ah, não! Ah, não! Ah, não!".

Abaixou-se, apanhando no chão os pequeníssimos pedaços do espelhinho, sem acreditar na tristeza daquele momento. O único motivo de alegria naquela semana havia tornado-se, em uma fração de segundo, um reforço à sua tristeza. Carina chorou. "Ai, que droga!". Era a mesma frase que tinha dito chorando, abraçada ao ex-namorado, no momento em que se despediam, dias antes.

Arrasada, voltou ao quarto e obrigou-se a dormir. Conseguiu, finalmente. Acordou quase meio-dia. "Que se dane", pensou. Estranhou o silêncio. Àquela hora, a rua deveria estar muito barulhenta, mas não se ouvia absolutamente nada. Silêncio total.

Calçou suas sandálias - aquele piso sempre lhe parecia frio ao despertar, especialmente em dias tristes - levantou-se e, à porta do banheiro, viu os caquinhos do espelho, que permaneceram no chão. Fez um rápido coque nos cabelos lisos, borrifou um pouco do sabonete líquido nas mãos, abriu a torneira e lavou bem o rosto. Secou-se delicadamente e olhou-se no espelho do armário do banheiro.

Riu, de felicidade e espanto. O espelho grande refletia a mesma imagem linda que o espelhinho pequeno refletira antes de se quebrar. Correu até o quarto, onde havia um espelho de corpo inteiro, do lado de dentro da porta do armário. Quase nunca usava aquele espelho. Abriu a janela, para deixar a luz do sol entrar. Abriu a porta do armário e viu-se no reflexo grande.

De camisola, com um coque nos cabelos e Havaianas nos pés, Carina viu-se linda como jamais havia se sentido. Admirava-se com o coque natural e displicente, com uma parte da franja solta; com a pele lisa e macia dos braços, as pernas bem torneadas, o colo vistoso e delicado exposto pelo decote generoso daquela camisola nova, que só ela conhecia; o sorriso aberto e honesto, os dentes brancos e perfeitos e os olhos escuros atentos, que enxergavam especialmente bem naquela manhã silenciosa - "Ih! Dormi de novo com as lentes de contato!" disse em voz alta, sorrindo. Não podia acreditar no que via. Carina estava, verdadeiramente, linda.

E assim permaneceu. Ela nunca achou explicação para o fenômeno que se passara com aquele espelhinho que se quebrara. Chegou a comentar com as amigas sobre o ocorrido, que elas acharam ser apenas brincadeira. Mas o fato é que, daquele dia em diante, todos os espelhos, dentro e fora de casa, por alguma razão inexplicável e feliz, passaram a refletir a mesma Carina que o espelhinho um dia refletira. Em alguns dias mais bonita, em outros mais normal. Mas, em todos, tão linda quanto o rapaz a vira, e muito mais bela do que jamais havia acreditado ser.


terça-feira, 23 de abril de 2013

As Esfihas de Tobias


O primo do cunhado da tia da esposa do meu amigo jura que esta história é verdadeira.

Tobby Saints era o nome dele. Tinha formado-se na faculdade havia um ano e finalmente conseguira entrar como estagiário remunerado (remunerado, veja só!) em uma grande agência de propaganda.

Na verdade, na verdade, o nome Tobby Saints era uma invenção recente, de dois diretores de criação da agência.

- Não! Tobias dos Santos?! Isto é nome de gente comum demais! Tobias?! Quem dá o nome de Tobias a um filho hoje em dia?!
- É o nome do meu pai, gente!
- Que idade tem seu pai? 100?
- 61.
- Nem é tão velho...
- Era o nome do meu avô, também.
- Milênio passado! Você precisa de um nome artístico!
- Artístico?! - Tobias espantou-se com aquela ideia, que lhe soava meio insana - Mas eu não sou artista!
- Todos somos artistas aqui, Tobias.
- Todos nós.
- Somos?
- Somos.
- Tobby!
- O quê?!
- É! Tobby!
- Tobby Saints! Este é o seu novo nome artístico! Tobby Saints!

Pronto: Tobias dos Santos tornara-se Tobby Saints. E decidiu-se também que ele não seria mais simplesmente um estagiário. Tornara-se um trainee. Seu colega, José Carlos, que era mensageiro inteiro, também tivera seu cargo alterado naquele mesmo dia: Superintendente de Internal Mailing, e a Dona Rosa, a copeira, tornara-se Rose, Gerente Senior de Foods and Beverages. Ela nunca conseguiu falar Beverages, coitada. "Em agências de propaganda, todos somos muito, muito importantes. Nossos cargos devem demonstrar nossa relevância", dizia o CEO da firma. Da holding, na verdade.

- Tobby Saints?! Isto parece nome de ator pornô! - observou seu irmão adolescente - Está querendo entrar no ramo?

Mas não adiantou. Já estava decidido: na agência, todos se referiam a ele por Tobby Saints. Passou a usar camisas justíssimas com gravata frouxa de crochet, passou a depilar as sobrancelhas, colocou um brinco na orelha esquerda (que ele tirava, quando chegava em casa) e fez uns leves reflexos no cabelo. Até uma tatuagem tribal ele fez, no fino braço esquerdo, de poucos pelos. Tornara-se um antenado.

Alguns meses se passaram e Tobias começou a interessar-se por uma gaúcha alta, loira natural, recém-contratada. Chamava-se Ellen Vorsicht, filha de um alemão com uma curitibana. Criada em família abastada, bem de vida, ganhara carrão importado (alemão, claro), aos 18 anos.

O que era mero interesse, ao longo de alguns poucos meses deu lugar a uma paixão platônica, da parte dele. Ellen era uma moça simpática, mas um tanto amedrontadora, naqueles seus mais de 1,80 metro, acrescidos dos saltos altíssimos que costumava usar. Ele sabia que, se quisesse chamar sua atenção, teria que fazer algo em grande estilo.

Um dia, depois de ouvir o CEO da agência comentar sobre um restaurante de luxo que costumava frequentar, Tobby decidiu que iria convidar Ellen para jantar no mesmo restaurante. E começou a poupar.

Poupou durante meses. Queria levá-la para comer e beber bem, em um restaurante realmente à sua altura. Tomariam vinhos. Vinhos bons de verdade, franceses. "Vinhos bons são os franceses. Só os franceses. Vinhos americanos são superficiais. Sul-africanos são tolos. Neozelandeses são imaturos. Espanhóis são rudes. Italianos são ultrapassados. Argentinos e Chilenos são sucos de uva de periferia. Brasileiros... ah, fala sério, vai? Não se pode levar a sério um vinho que se compra em supermercado... Quer degustar um bom vinho? Tome um francês, e nenhum outro", dizia o diretor de criação da agência, que dera a Tobias seu nome artístico.

Ao longo de 8 meses, Tobby conseguira poupar 2 mil Reais! Pesquisou na internet, leu algumas críticas em revistas especializadas, para ter uma ideia de quanto gastaria em um bom jantar naquele restaurante, e decidiu que era hora de fazer o convite a Ellen.

- Ela aceitou! Ela aceitou! - gritava ele, sozinho, dentro de seu carro 1.0 recém-comprado, usado mas bem conservado, com DVD, insulfilm e tudo mais! Mal podia acreditar! Ele iria levar Ellen Vorsicht para jantar na sexta-feira seguinte!

E, depois de longos 4 dias, finalmente a sexta-feira chegou. Tobby saiu da empresa mais cedo e foi para casa. Tomou banho, calçou seu melhor sapato, que havia pedido para sua mãe engraxar, e seu terno recém-comprado. Na gravata, que desta vez não era de crochet, finalmente conseguiu, depois de 6 tentativas, fazer um impecável nó Windsor, seguindo passo-a-passo um tutorial do YouTube. E saiu, ansioso, rumo ao restaurante.

Era um elegante salão com paredes cor de ferrugem, bastante amplo, mas com poucas mesas, com muitas taças e uns 9 talhares para cada cliente. A luz baixa e a música instrumental completavam a atmosfera intimista e sofisticada. Nada daquilo assustou Tobby. Ele estava realmente pronto! Aquela seria sua noite. De Tobby Saints e Ellen Vorsicht.

Ela chegou um pouco atrasada. Tinha vindo direto de uma reunião com um cliente. Mas estava linda, como sempre. Sentou-se, cumprimentou Tobby com um rápido beijo no rosto - na verdade, foi uma daquelas bochechadas em que a boca do beijador não chega a encostar da pele do beijado - e pediu uma Perrier com gás, que o maître trouxe pessoalmente, junto com o couvert sofisticadíssimo e o menu, com uma bela capa de couro e páginas grossas e texturizadas.

- Que lindo que é aqui, Tobby! Eu não conhecia, guri! - disse, com seu forte sotaque gaúcho.
- Bonito, né?
- Muito!

Começara bem. Bastava pedir boa comida, tomar uns bons vinhos e, quem sabe, ganhar o que lhe parecia inimaginável alguns meses antes.

O cardápio tinha umas comidas das quais ele nunca ouvira falar. Nem mesmo ela, que já tinha frequentado bons restaurantes. Mas ele já sabia exatamente o que pedir. Tinha realmente se preparado para aquele encontro.

Esquecera-se apenas de um pequeno de detalhe: sabia que o vinho que iriam tomar seria necessariamente um francês, mas não tinha pesquisado antecipadamente qual seria. O maître apresentou-lhe a carta de vinhos, com nomes que ele não se atreveria a pronunciar na frente dela. Mas, afinal, aquilo não haveria de ser problema. Em um restaurante de luxo, como aquele, qualquer pedida seria certa. Olhou os nomes e os preços por quase 1 minuto, como se os analisasse cuidadosamente

1. Montrachet DRC (Pauillac, França) ............ 90
2. Screaming Eagle (Napa Valley, EUA) .......... 97
3. Château Petrus (Bordeux, França) .............. 90
4. Château Le Pin  (Bordeux, França) ............. 99
5. Pingus (Espanha) ........................................ 95
6. Romanée Conti (Bourgogne, França) .......... 97

A carta de vinhos seguia, com várias páginas. Apontou aleatoriamente para o terceiro da lista:

- Vamos tomar este aqui, para começar.
- Excelente opção, senhor. Um dos melhores vinhos de nossa adega, senhor.

Ellen estava impressionada com a postura e com a segurança de Tobby. Nunca pensara nele como sendo um homem sofisticado ou particularmente atraente, mas sentia-se interessada em saber mais sobre ele.

O primeiro prato foi perfeito. O vinho, delicioso.

Final da primeira garrafa. Tobby pediu novamente a carta de vinhos e desta vez apontou para um outro, também francês: o sexto da lista, surpreendentemente ainda mais delicioso que o anterior. Degustaram-no juntamente com prato principal, igualmente impecável.

A conversa fluiu naturalmente. Acharam até um gosto em comum: os dois gostavam de tapioca. Ele aprendera a comer ainda pequeno, porque na rua em que morava havia uma feira livre aos sábados, onde um velhinho, cego de um olho, as preparava, caprichadas, com coco, queijo coalho e leite condensado, bem em frente à sua porta. Ela, por outro lado, aprendera a comer tapioca na viagem que fizera ainda adolescente para Fernando de Noronha, com seus pais, para um curso de mergulho.

Veio a sobremesa: Crepe Suzette, leve e delicioso, preparado à mesa, com belas labaredas durante a flambagem. Em seguida, mais um vinho. Porto. "A única coisa que os Portugueses fazem direito", dissera o CEO da agência certa vez, enquanto conversava sobre vinhos com um dos diretores.

Ao final da taça, Tobby pediu a conta, imaginando que poderia sobrar ainda um pouco daqueles 2 mil Reais que levara.

Chegou a conta: R$ 22 mil Reais. Tobby olhou rapidamente, sorriu e chamou o maître, para corrigir o engano.

- Acho que vocês cobraram a mais... Multiplicaram por 10 o valor da conta! Hehehe - disse, sorrindo para Ellen, que também achara graça do engano.

O maître, em pé ao lado de Tobias, olhou a conta atentamente por alguns segundos, percorrendo os itens com seu dedo indicador, para se certificar de que não houvesse nenhum engano. Fechou novamente a pastinha e entregou-a novamente a Tobby.

- Senhor, a conta está correta, senhor.
- Não pode ser! Esta conta está 10 vezes acima do valor correto!

A tranquilidade de Tobias havia passado por completo. Suas sobrancelhas franzidas tremiam levemente. O maître olhou para Ellen, olhou para Tobby e percebeu a delicadeza da situação.

- O senhor se incomodaria de me acompanhar por um instante, senhor?

Tobias levantou-se impaciente.

- Ellen, vou resolver essa palhaçada e já volto. Com licença. - disse, levantando-se e deixando cair no chão o guardanapo que estava em seu colo.

O celular de Ellen, que estava sobre a mesa, vibrou. Chegara uma mensagem via SMS, que ela olhou enquanto Tobby afastava-se da mesa, atrás do maître. Dirigiram-se a um balcão, de onde Ellen não poderia vê-los.

- Senhor, eu lamento informar, mas a conta está rigorosamente certa, mesmo.

- Parceiro - Tobby respondeu, enquanto olhava novamente a conta, incrédulo -  eu não tomei vinho de 10 mil Reais! Nem este, de 8 mil! Estes vinhos custam, sei lá, 90, 90 e poucos reais! Eu vi na carta de vinhos!

- Perdão, senhor, deve haver algum engano de sua parte. Não temos nenhum vinho na casa que custe menos de R$ 400 Reais, senhor. O senhor pediu dois dos nossos melhores vinhos. Os preços deles estão corretos.

- Vocês só podem estar de sacanagem! Me dá a carta de vinhos!

Abriu a carta de vinhos e conferiu:


1. Montrachet DRC (Pauillac, França) ............ 90
2. Screaming Eagle (Napa Valley, EUA) ......... 97
3. Château Petrus (Bordeux, França) ........ 90
4. Château Le Pin  (Bordeux, França) ............. 99
5. Pingus (Espanha) ........................................ 95
6. Romanée Conti (Bourgogne, França) .... 97


- Olha aqui, ó! 90 e 97 Reais!

O maître comprimiu os lábios e soltou um longo suspiro. Estava desfeito o mal-entendido.

- Senhor, estes não são os preços. São os anos das safras dos vinhos.

Tobby sentiu o sangue gelar nas veias, enquanto o maître abria a orelha dobrada da página da carta de vinhos, que Tobby não vira até então.

- Aqui estão os preços, senhor.

Tobby não podia acreditar no que via. Os preços da conta estavam certos: no total, mais de 18 mil Reais em vinhos. Nem sabia que existiam vinhos daquele preço! Como pôde ser tão estúpido?! Como pôde se preparar tanto para ir a um restaurante tão chique, sem antes pesquisar o preço dos vinhos?! Os dois mil Reais que poupara pagavam somente os pratos, mas não cobriam sequer os 10% do serviço.

- Ah, meu Deus! - as mãos tremiam - Meu Deus!
- Eu sinto muito, senhor.
- Parceiro! - pegou no braço do maître, como se buscasse um apoio ou pedisse um abraço - Eu me enganei! Eu me enganei totalmente! Eu ganho 2 mil Reais por mês! 2 mil! Como é que eu vou pagar esta conta?!

A mão esquerda tapava os lábios, enquanto a direita continuava segurando a conta. Os olhos desesperados, enterrados no cenho franzido, eram dignos de pena.

- Eu não tenho como pagar isto!

A voz já estava embargada. Tobias controlava-se para não chorar. O maître olhava para Tobias e lamentava. Sensibilizou-se com a situação dele, mas nada poderia fazer.

- Eu acabei de comprar um carro em 60 vezes! Estou me matando para pagar R$ 800 por mês! E ainda estou na terceira parcela! Caramba! 22 mil Reais?!

Um filme passava em sua cabeça. Pensava nos seus pais, no seu irmão adolescente jogando vídeo-game, nos malditos diretores da agência e seu CEO metido a besta. Sentiu-se um completo idiota e odiou estar ali. Olhou para Ellen, que, àquela altura, falava ao celular, sorrindo, linda e inalcançável.

Apareceram o chef e o gerente. Ouviram a história toda, não só do jantar, mas uma breve história da vida de Tobias, acompanhada de algumas lágrimas sinceras e muitos "Pelo amor de Deus, gente!". Depois de 10 minutos de conversa, sensibilizados com a sinceridade do rapaz, entraram em um acordo, que ele aceitou na hora: ele pagaria R$ 1.000 no cartão, divididos em 3 vezes, e mais 9 cheques pré-datados de R$ 1.400, cada. O jantar de R$ 22 mil sairia por 13.600. Ainda assim, quase impagáveis.

Tobby voltou quase se arrastando à mesa. Ellen, já impaciente, levantou-se.

- Tobby, uns amigos meus acabaram de me ligar. Vai rolar uma balada na cobertura de um hotel, nos Jardins. Eu vou em casa tomar um banho e vou para lá. Se tu quiser ir...
- Não, Ellen, obrigado. Eu tive uma semana muito difícil e estou muito cansado. Só quero ir pra casa.
- Adorei o jantar, Tobby! Obrigado, tá?

Deu mais uma bochechada nele, virou-se e foi embora, apressada. Nem deu tempo para ele também agradecer. Tobby foi ao toalete, lavou o rosto, respirou fundo e foi-se embora. Passou o fim de semana no quarto, saindo só para comer. Nem banho tomou.

Na segunda-feira seguinte, ficou sabendo pela Dona Rosa, a copeira, que durante aquele final de semana Ellen tinha ficado noiva do ex-namorado, um diretor de atendimento de uma outra agência, com o qual reatara o namoro justamente na sexta-feira à noite, na balada da cobertura do hotel, para a qual havia convidado Tobby.

Nove meses se passaram. No dia em que caiu o último cheque do restaurante, com o saldo exato de 1.401 Reais na conta, Tobby pediu demissão da agência. Nunca mais queria pôr os pés ali.

Um ano depois, ninguém mais pôs os pés ali. O juiz decretou falência da agência na mesma semana em que os sócios passavam férias em Punta del Este. Nunca mais se ouviu falar deles. Dizem que abriram uma agência de receptivo na Costa Rica. Mas ninguém sabe ao certo.

Tobby Saints voltou a ser apenas o bom e simples Tobias dos Santos, e seguiu adiante. Poucos anos depois, casou-se com Cleide, neta do já falecido velhinho cego de um olho, que fazia tapioca na frente da casa dele. Cleide era uma morena baixinha, gente boa, de quadris largos, sorriso fácil e cabelos lisos, muito escuros. Pau pra toda obra, apoiou Tobias quando ele decidiu abrir uma lanchonete em sociedade com o pai, Seu Tobias, já aposentado, mas muito disposto. Era uma lanchonete especializada em esfihas. Só esfihas. Nada de coxinhas, risoles, empadas, nem nada disso. Tobias queria uma daquelas casas especializadas, que ficam abertas de madrugada, aonde a moçada vai depois da balada, para comer um bom lanche, a preços nem altos, nem baixos demais.

E assim aconteceu. Dois anos depois de aberta, graças aos recheios generosos das esfihas e ao segredo da massa inventada por sua mãe, a casa tornara-se um sucesso nas madrugadas, com filas de jovens famintos e antenados. Não tardou para as esfihas de Tobias aparecerem na capa de uma edição da Vejinha São Paulo, eleitas como as melhores da cidade.

Coincidentemente, no dia da publicação da matéria, Tobias fez o primeiro pagamento para a compra em definitivo do imóvel alugado, onde funcionava sua esfiharia. E ali, ao lado de Cleide e do pai, feliz como nunca se sentira na vida, já tarde da noite, Tobias comeu esfihas e brindou com eles e com seus jovens clientes, oferecendo-lhes de graça uma rodada do melhor vinho nacional que conseguira comprar no supermercado, na manhã daquele dia tão feliz.

domingo, 7 de abril de 2013

O Homem da Nuca

Depois de mais de 2 anos escrevendo crônicas neste blog, apesar de poucas, comecei a notar que os assuntos se repetiam. E passei, então, a namorar a ideia de escrever contos, com os vários personagens que me vêm à cabeça - homens, mulheres e crianças com algum traço a partir do qual possa fazer algo que adoro: inventar o todo pela parte; desenvolver toda uma história com base em uma característica pouco ou nada importante. Para os contos, não quero as "morais da história", que este autor iniciante ainda não consegue deixar de inserir nas crônicas. Contos não precisam de conclusão, não precisam de silogismos. São mais livres, enfim, e resolvi que era hora de escrevê-los. As crônicas continuarão a vir, também. Mas, junto com elas, a partir de agora, virão também eles, os contos, maturados ao longo de semanas, ou então criados de supetão, enquanto escrevo, como este.

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O Homem da Nuca

Havia algo na nuca dele, que a atraía. É, na nuca. Naquela parte inexpressiva atrás do pescoço, entre as costas e a cabeça. Não eram os olhos, nem a boca, nem o queixo bem delineado que ele tinha, que a atraiam. Não. Ela gostava da nuca.

Na verdade, ela nem sequer sabia que rosto ele tinha. Ele trabalhava no mezanino de uma loja onde ela ia todas as semanas, de costas para um vidro que ela via do térreo, onde fazia as compras. Lá de baixo, através do vidro, via as costas daquele homem, sempre sentado, trabalhando sem levantar, quase como uma estátua, sem jamais se virar. Nunca vira seu rosto, nem ouvira sua voz. Não sabia se era solteiro ou casado, nem se gostava de bacon. Não sabia se já tinha viajado para o exterior, nem se já havia sido assaltado. Não sabia se era alto, se usava perfume, se gostava de Cat Stevens, nem de MPB. Não sabia nada. Apenas conhecia sua nuca - o único pedaço de sua pele visível através do vidro.

Ela mesma não sabia porquê, afinal, sentia atração por aquela nuca. Nucas são tão interessantes quanto testas, pulsos ou solas do pé. Meros pedaços de pele que servem simplesmente para interligar partes mais nobres do corpo, mais gostáveis e sedutoras. Mas, por falta de outras coisas para gostar naquele homem, Isa interessou-se pela nuca.

Depois de alguns meses vendo, sem ser vista, e intrigada com o mistério daquele homem sem nome e sem rosto, ela notou que começou a passar com mais frequência pelos corredores da loja que lhe permitiam vê-lo. Pegava-se a todo momento olhando para cima, através do vidro, às vezes sem perceber. Não tinha a real pretensão de vê-lo, mas olhava mesmo assim.

Começou a frequentar a loja em horários diferentes. Quem sabe ele se levantaria em algum momento? Talvez na hora do almoço? Mas, nada. Ou ele simplesmente não estava, ou estava lá, de costas, sentado e inerte. Ele e sua nuca indecifrável.

Certo dia, enquanto andava pelo corredor central, olhando para o vidro, Isa deu um forte encontrão em um rapaz magro, de estatura média, sobrancelhas grossas e rosto honesto, com entradas bem pronunciadas no cabelo muito encaracolado. A topada foi tão forte que derrubou o celular, no qual ele falava, e os shampoos que estavam na prateleira.

- Ai, moço, por favor me perdoe! Eu estava tão distraída que não vi!
- Imagine, não tem problema!
- Não, não! Olha me perdoe, eu realmente não sei onde estou com a cabeça!

Envergonhada, abaixou-se na frente dele para apanhar os shampoos que estavam no chão. Usava uma blusa florida e alegre, com decote muito discreto, que não revelava nada, mas permitia ver seu colo de pele muito clara. Ele também abaixou-se, enquanto admirava sua beleza natural e frágil, no rosto sem maquiagem. Ajudou-a pegar as poucas embalagens de shampoo que estavam pelo chão. E pegou também o celular, cujo visor havia quebrado na queda. Pôs no bolso, rapidamente, sem que ela notasse. Não queria que ela percebesse que o tinha quebrado.

Voltaram a levantar, trocando mais algumas palavras:

- Obrigado pela ajuda!
- Imagine! Espero que não tenha se machucado!
- Não, não machucou. Mas tenho que ser mais atenta! Me desculpe.
- Perdoo com uma condição...

Naquela hora, sem querer, como sempre fazia, Isa olhou para o vidro. A cadeira do homem girava no próprio eixo. O homem da nuca havia acabado de se levantar! O mundo ficou em câmera lenta e os sons ficaram abafados, como música embaixo d'água, indistinguível. Será que voltaria? Será que tinha ido embora - que horas são? - ou tinha ido falar com alguém e voltaria em seguida? Tinha ido ao toalete? Será que ela finalmente iria vê-lo?

- A condição é você aceitar tomar um café comigo! - disse o rapaz.

Mas ela não ouviu. Continuava a olhar para o vidro, como uma criança que olha para as mãos de um mágico, momentos antes do truque ser revelado.

O rapaz insistiu:

- Aceita?
- Hã? Ah, desculpe! Eu não ouvi o que você disse...
- Aceita tomar um café comigo?

Ela sorriu, surpresa. Baixou os olhos e prendeu a respiração por um instante. Tirou o cabelo do rosto e colocou atrás da orelha. Estava lisonjeada com o convite, mas não poderia aceitar. Não poderia! Balançava a cabeça. Tomar um café com um estranho, assim, do nada? Não...

A cadeira do homem da nuca já parara de girar, mas ela não viu. Olhava curiosa para o rosto do rapaz, intrigada com o interesse dele por ela. Estaria sendo apenas gentil ou realmente vira algo nela? Antes que percebesse, respondeu, mantendo o leve sorriso e soltando a respiração, que ainda estava presa:

- Aceito! Aceito, sim! - fez uma pausa, pensativa, impressionada com a própria resposta - Vamos tomar um café!

E saíram andando na direção contrária à do vidro, dirigindo-se para o caixa. O homem da nuca retornou. Tinha ido buscar um cappuccino. E, durante alguns segundos, enquanto assoprava para o cappuccino esfriar, ficou ali, de frente para o vidro, observando o casal que se afastava no corredor em frente. Voltou a sentar em sua cadeira, de costas para o vidro, e continuou a trabalhar. Isa nada viu.

Aquele foi o último dia dele na loja. Havia sido promovido a gerente de uma outra loja da rede, que seria aberta em outro estado. Nunca mais pôs os pés ali.

Isa casou-se alguns anos depois com o rapaz de rosto honesto, cujo celular tinha quebrado. Ela nunca havia de fato se apaixonado pelo homem da nuca. Afinal, era apenas uma nuca. Mas lembrava-se dele às vezes, quando ia à loja. E ali, no corredor onde costumava andar na esperança de vê-lo, de vez em quando se pegava pensando em qual seria o seu nome, e se era feliz.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Decifrando cabelos

"Por mais que protestemos e vociferemos,
sabe a mulher enredar-nos com um simples fio de cabelo."
John Dryden, Dramaturgo Inglês


Eu não diria que é uma homenagem ao Dia da Mulher... É só uma constatação pessoal sobre mais uma prova da superioridade da mulher sobre o homem. Só isso.

Outro dia eu estava em uma dessas lojas Renner, C&A, Mesbla, sei lá, e fiquei um tempão na fila do caixa esperando para pagar alguma coisa qualquer, da qual já não me lembro. Ali me vi, rodeado de mulheres, andando pela loja ou paradas na fila, como eu. Alguma entidade sobrenatural e benévola provavelmente fez com que os homens desaparecessem da face da Terra e manteve ali, por alguns instantes, somente as mulheres - incluindo minha esposa e filhas. Sem ter o que fazer, peguei-me observando uma coisa em cada uma delas: os cabelos.

Cheguei a uma simples e irrefutável conclusão: os cabelos são mais uma prova definitiva da superioridade da mulher sobre o homem. O homem pode até ser mais forte, mais alto, pode comer mais, pode fazer churrasco sem camisa (embora isto seja completamente inapropriado), pode ficar dias sem se preocupar com os pelos faciais e pode até mesmo coçar a própria mão e o braço com a barba grossa, que já até esqueceu o que é uma Gillette. Grande coisa... Mas e as mulheres? Bem, meus amigos, as mulheres têm cabelos. E só isto - como se não bastasse todo o resto - já as faz infinitamente superiores a nós.

Os cabelos são a parte visível do humor da mulher. Os cabelos não mentem. Os cabelos contam, em uma fração de segundo, como se sente uma mulher e o que pensa de si mesma. Para as fêmeas humanas, os cabelos têm importância muito diferente do que têm para os machos, tão menos evoluídos, da mesma espécie.

Cabelos de homens são divididos em dois tipos, apenas: os sem-graça e os sem-gosto. Alguns cortam bem  curtinhos, outros raspam e ponto final. Que criativo! Alguns os deixam crescer mais ondulados, outros - normalmente bem jovens - deixam um franja dura apontando para o céu (talvez em um pedido desesperado por uma intervenção divina, que nunca vem). Outros, ainda menos afortunados, deixam crescer atrás um mullet para compensar a calvície cada vez menos disfarçável na frente. E há ainda os já maduros que ainda usam gel no cabelo, na tentativa de ficarem minimamente parecidos com aquilo que gostariam de ser desde a adolescência e nunca se tornaram. E os bonés?! Ah, os bonés... Nenhum homem com mais de 10 anos deveria ser autorizado a usar bonés, a menos que esteja sob o sol do Saara. Há também os tios paquerando alguma mocinha, que pintam os cabelos com um preto mais preto do que a graxa daquele sapato que eu ia engraxar nas férias, mas não fiz até hoje. E também os que pintam de acaju, por acreditarem piamente que cabelos cor de mel queimado ficam ótimos em um homem que deveria ter assumido há uns 15 anos os fios grisalhos. Aliás, só o grisalhos estão perdoados. Eles e os carecas. Os demais, sem exceção, encaixam-se nas categorias dos sem-graça ou dos sem-gosto.

Já os cabelos das mulheres são muito mais interessantes. São teimosos, temperamentais, mandões - como suas donas, diga-se - e teimam em não ser categorizados, porque estão em permanente mudança. Aponte-me uma única mulher que use o mesmo penteado há muitos anos, e prometo calar-me. Não há. Algumas podem até afirmar estarem felizes com o próprio cabelo. E talvez até estejam. Mas isto não as impede de mudá-los ao sabor dos temperos da própria vida.

Ali, na fila do caixa, vi infinitas cores de cabelo. Havia algumas loiras de cabelos muito claros e finos, como se olhasse para uma recém-chegada de uma cidade finlandesa cheia de consoantes no nome. E outras, loiras tingidas, mas cuidadosamente naturais: com fios mais grossos e alisados, mas minunciosamente manipulados para não parecerem artificiais. E havia também aquelas loiras que, certas de que "só mais uma semaninha não fará diferença", tinham nas raízes muito escuras a mensagem de "é, eu ando sem tempo. Dá mesmo pra notar?". E havia também as quase-loiras-ai-que-dúvida-tá-bom-vamos-em-frente-mas-não-muito-faça-só-alguns-reflexos-só-para-dar-uma-iluminada-sutil-cuidado-para-não-exagerar. Entre estas, algumas, com fios dourados e perfeitos. Outras, vítimas de mãos menos habilidosas, que pretendiam reflexos acobreados, acabaram ficando com faixas cor de mexerica que, espera-se, hão de desaparecer em alguns dias. E havia também as seguras e belas senhoras loiras-quase-grisalhas, que sabem exatamente como fazer para se manterem lindas na maturidade, disfarçando-a sem negá-la.

Havia também as morenas, com cabelos que variavam do castanho vivo, cor de doce de leite argentino, passando pelo açaí, até as morenas profundas, com cabelos negros, lisos e brilhantes, chovidos e finos como os das índias, ou volumosos e cheios de balanço como de uma cigana andaluz. Ou ainda, ondulados ou até crespos, que não precisam nem de pente (porque são penteados com os dedinhos de suas donas), cheios de personalidade e vigor, sempre alegres e seguros de si, como os das mulatas que, perdoe-me o resto do mundo, só nós temos. E também as asiáticas, com seus cabelos sempre impecavelmente lisos e com volume perfeito, brilhantes e negros como os olhos exóticos de suas donas.

E as ruivas? Menos comuns, mas relembrando alguma pintura europeia antiga perdida na memória, variavam entre intrigantes e seguros tons de um vinho-escuro, cor de cereja fresca, profundo e elegante, até o imperdoável e desesperado por-favor-alguém-olhe-pra-mim cor de cereja ao marrasquino em bolo dormido de padaria, que não ficaria bem nem na Moranguinho.

E os comprimentos? Uma enorme variação entre os compridíssimos "não corto os cabelos desde os 12 anos, não sou crente e ninguém tem nada com isso", retos ou em V, passando pelos "na altura dos ombros" à prova de erros, e, para as mais corajosas, os um pouco mais curtos - entre eles, o inigualável Channel, da  mulher discreta, mas que não tem nada a esconder, ousada e segura o suficiente para mostrar o pescoço e o colo sem medo. Comportado, reto, com curvas, repicado, assimétrico ou super simétrico, com franja ou sem... Acho o Channel tão irresistível, que casei-me com a dona de um, que me segura há 15 anos. Varia daqui, varia dali, mas nunca deixou de ser um apaixonante Channel.

Vi também cabelos curtíssimos de mulheres muito, muito ocupadas, que não têm um segundo a perder. Ou então de outras que com eles simplesmente não estão preocupadas e cortaram-nos o bastante para deles se esquecerem por algum tempo. Ou então, quem sabe, tão curtos porque precisassem recomeçar algo do zero - e fizeram do cabelo a prova visível do anseio pelo recomeço tão necessário. Não estava na fila, mas juro que é real: uma conhecida recentemente apareceu completamente sem cabelos, com um longo e colorido lenço em seu lugar. Ela, belíssima, mesmo sem os cabelos, dá uma bronca no próprio marido, desajeitado: "Ei, cuidado! Fiquei uma hora fazendo chapinha pro cabelo ficar lindo deste jeito!". E ainda abriu um sorrisão, que contagiou todos à sua volta. É, porque como se não bastassem os cabelos, as mulheres têm também os sorrisos... E um pode facilmente compensar a ausência do outro, em caso de adversidades.

E os cabelos presos? Havia naquela fila jovens mulheres com tranças longas, que lembravam as da filha dos Capuleto nas cenas do filme de Franco Zeffirelli, e também belos, modernos e independentes rabos de cavalo que dizem "estou, sim, cheia de coisas para fazer", mas com fios caprichosa e rebeldemente soltos atrás, sinalizando sem querer um traço da ousadia e do senso de liberdade comum a quase a todas as mulheres bem resolvidas. E o coque? Atraidor imediato de olhares, frágil e cheio de nuances, o coque envolve enrolar, e enrolar, e dar uma volta aqui, e outra ali, e arranjar um palito, um hashi, uma caneta ou sei-lá-o-quê para prendê-lo de forma quase displicente e natural. O coque avisa "olha, estou ocupada, sim, mas faço questão de estar linda". Não sou mulher, mas tenho certeza de que as invejosas não suportam um coque bem feito.

Havia também franjas, de muitos tipos. Compridas e estilosas, caindo misteriosamente sobre os olhos, ou curtas e honestas, como de menina comportada. E havia também franjas domadas por uma infinidade de "coisas" (o léxico masculino para esses objetos é bastante restrito, perdoem-me): fivelas e tiaras para prender grandes franjas e deixar à mostra um rosto que precisa ver tudo sem obstáculos. E também piranhas, jacarés, presilhas e sei-lá-o-quê-mais que se fixam aos cabelos como pequenos pentes obedientes, formando esculturas irreprodutíveis e efêmeras em cabelos vaidosos e exigentes. 

Por fim, há aquelas senhoras - normalmente são senhoras, ué! - com cabelos orgulhosos e super armadões, escovadíssimos e provavelmente modelados no secador em direção ao céu, talvez com um pouco de laquê, emoldurados por grandes brincos dourados e óculos escuros enormes. Nestes casos, o cabelo não só revela o humor de uma mulher, como permite que se preveja seu futuro próximo: suas donas farão o possível para preservá-los assim, pelo menos até a manhã seguinte. Assim, os benefícios de tamanho esforço não hão de ser tão efêmeros. Naquele noite, talvez até tenham dormido sentadas...

No fim das contas, passados alguns instantes, os homens voltaram a aparecer, e aqueles cabelos todos pararam de conversar comigo. Mas, mesmo que nossa conversa tenha durado alguns poucos segundos,  não me deixaram mesmo dúvidas: jovens ou idosas, com longos ou curtos, naturais ou pintados, presos ou soltos, os cabelos são mais uma prova da generosidade feminina: os cabelos das mulheres pedem para ser decifrados. Mas, coitados de nós, homens: se não conseguimos sequer ouvir e entender as palavras das mulheres, como vamos conseguir escutar seus cabelos?

Bem, escutá-los não creio que vamos conseguir, não. Não se pode esperar tanto de nós. Mas admirarmos... Ah, isto é fácil! Caramba, como isto é fácil!

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Pessoas Nubladas




"Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha"
Millôr Fernandes

Nunca entendi muito bem aquelas pessoas cujo humor varia com o tempo e temperatura. Desculpe-me se você é uma delas. Eu sei que são relativamente comuns. Mas eu simplesmente não consigo entendê-las.

Quem nunca ouviu alguém reclamar "desta chuva que me deixa tão triste"? Ou "até que enfim terminou o inverno. Eu não aguentava mais aquela tristeza"? Ou nunca viu os âncoras de telejornal quase reclamando com a aquelas moças bonitinhas que apresentam a previsão do tempo: "Fulana, afinal, quando é que o sol vai voltar?".

É, realmente não entendo. É claro que é normal sentir-se mais confortável em um certo ambiente. Eu, por exemplo, prefiro o friozinho. Me sinto mais disposto, mais alerta, mais vivo. O calor me deixa letárgico, lento e retardado - o que não é muito favorável, considerando-se que vivo em um país tropical...

Mas não me refiro a conforto físico. É óbvio que ninguém gosta de passar frio demais, nem calor demais. Refiro-me a humor. Tem gente que está perfeitamente bem hoje, mas, amanhã, com o dia nublado e garoa caindo de nuvens grávidas, põe-se melancólica, como se a chuva disparasse um gatilho invisível da tristeza.

Aposto que muitas das pessoas que têm esta característica acreditam também em destino. E acreditam em sorte e em azar. E sejam supersticiosas. Vejam só, não estou dizendo que isto é ruim! Não! Acho apenas curioso tentar entender como elas pensam.

Acho que acreditam em destino, sorte e azar, porque veem neles uma explicação razoável para aquilo que acontece em suas vidas. Existe um certo conforto na ideia de destino. Acreditar nele nos exime de responsabilidades pelo que nos aconteça. Afinal, é tudo obra do destino: uma coisa externa, incontrolável, que simplesmente faz as coisas serem como são. Mais ou menos como o tempo e temperatura: as nuvens simplesmente vêm e nublam o céu e a vida. É incontrolável - e não há nada que se possa fazer.

Fico me perguntando como fazem as pessoas que vivem em lugares realmente "hostis" à vida. Outro dia - graças ao meu fascínio por lugares frios e inóspitos - pesquisei sobre uma cidade russa, localizada na Sibéria, chamada Oymyakon - o lugar habitado mais frio da Terra. Durante a noite do sábado de Carnaval de 2013 - enquanto escrevo este texto e tento achar um título para ele - a temperatura lá é de -54 graus Celsius. Já chegou a -70 graus. Dá para imaginar? Quase 90 graus menos do que a média da temperatura anual que temos em uma cidade como São Paulo! São quase 80 graus menos do que o dia mais frio que tivemos no ano passado. Lá, coisas triviais tornam-se inviáveis. Não dá para usar caneta fora de casa: a tinta congela. Aparelhos eletrônicos funcionam de modo errático. O leite é vendido em blocos sólidos, não em estado líquido. E, ainda assim, a menos que a temperatura fique abaixo de -52 graus, as crianças vão à escola normalmente. Se a temperatura se mantiver assim até segunda-feira, as crianças de Oymyakon se parecerão com as brasileiras, durante o feriadão de Carnaval: não irão à escola.

Há o outro extremo: em Al’Aziziyah, na Líbia, a temperatura já chegou a 57,8 graus Celsius, em 1922. Sabe-se lá a quanto chega hoje em dia. No Vale da Morte, nos Estados Unidos, a temperatura durante o dia passa de 50 graus, e cai para abaixo de zero durante a noite. Dá para querer mergulhar no sorvete de dia, e no chocolate quente à noite.

Como será o humor das pessoas nestes locais? Não sei. É claro que esses não são lugares suportáveis por qualquer pessoa - tanto que as populações em locais como estes são muito reduzidas. De qualquer modo, não imagino que o humor delas se deixe afetar pelo tempo e temperatura. Porque elas não podem se dar este luxo. Porque, se bobearem, elas morrem. Não há desculpas. Não dá para ficar no meio da estrada porque a gasolina acabou. Não dá para esquecer de fechar a janela da cozinha. Não dá para deixar para ir fazer compras amanhã, quando o tempo melhorar. Porque ele simplesmente não melhora. Porque, melhorar, para eles, é manter-se ainda muito acima (ou abaixo) do suportável para nós, que vivemos em um país "abençoado por Deus e bonito por natureza".

Certa vez, durante o verão, um Canadense foi à minha empresa e, no intervalo de uma reunião, foi pegar um solzinho do lado de fora. Naquele dia, eu estava incomodado com o calor e a última coisa que me passaria pela cabeça seria ficar fritando ao sol com roupa social. Perguntei a ele:

- Você não quer vir aqui para dentro, onde há ar condicionado?
- Não. Estamos no inverno no hemisfério norte. Volto hoje à noite para o Canadá. Então, acho que vou aproveitar um pouco mais o sol do Brasil.

Eu, como esforçado e dissimulado anfitrião, fiz companhia a ele por alguns minutos. Mas confesso que, folgado, senti alívio quando voltei para a temperatura agradável do ar condicionado, achando graça do meu desconforto com aquele calor que, para o canadense, era exatamente o que ele precisava.

O fato é que viver aqui só aumenta nossa obrigação em não procurar falsas desculpas, falsas explicações, sempre externas a nós mesmos, para problemas que, na verdade, estão do lado de dentro. Quem fica triste porque está chovendo, muito provavelmente já estava com o rosto molhado antes da chuva chegar. Quem fica triste porque está friozinho, talvez precise aquecer o coração antes de aquecer os pés.

E o mesmo vale para aqueles que não gostam do Carnaval, ou não gostam do Natal, ou não gostam dos almoços em família, nem de shopping centers, nem de rock, nem de comédias românticas, nem de televisão, nem de sei-lá-o-quê-mais. Deve haver algo nestas coisas que, bem lá no fundo, talvez lembrem essas pessoas daquilo que elas não são, mas gostariam muito de ser. Ou são, mas preferiam que não o fossem.

Previsão do tempo para amanhã: tempo alegre, para pessoas ensolaradas. Afinal, é Carnaval e feriadão. Só aqueles com problemas de verdade têm desculpas para se sentirem nublados. O resto é mera tempestade em copo d'água.




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