quarta-feira, 22 de maio de 2013

Espelhos

Fazia exatamente uma semana. Pareciam meses, mas havia se passado só uma semana desde aquela noite. Se tivesse sido uma como outra qualquer, não teria nada de muito marcante: não tinha sido muito frio, nem muito calor; não teve clássico de futebol; o trânsito não estava tão terrível; nem havia chovido. Poderia até ter sido um dia esquecível. Não fosse pelo fato de, naquele dia, exatamente 7 dias antes, terem terminado o namoro.

Tinha sido um namoro curtíssimo, mas intenso. E por serem talvez tão iguais, ou talvez tão diferentes, passados poucos dias desde o primeiro beijo, havia muitos motivos para continuarem namorando, e também muitos motivos para terminarem. Todos bons motivos. Todos legítimos. Prevaleceram os últimos. Terminaram. E mantiveram, desde aquele noite, distância. Silêncio.

Passada uma semana desde o término, Carina acordou bem disposta. Ainda pensava nele, e ainda doía. Mas, pela primeira vez em dias, sentia-se bem. Passara aquela semana em viagem a trabalho, em uma pequena cidade de interior. Não sabia se aquela semana, sozinha naquela cidade, havia sido uma coisa boa ou não. Se, por um lado, permitia-lhe desfrutar de uma bem-vinda distância inevitável e completa, por outro dava-lhe tempo demasiado para ficar sozinha com os próprios pensamentos. O fato é que, mesmo distante e sozinha, acordou bem naquela manhã

Não se achava uma mulher particularmente interessante. Achava-se inteligente, gentil, educada, agradável. Mas não se achava nem um pouco atraente. Não entendia o quê, afinal, ele havia visto nela. O quê será que pareceu-lhe tão atraente naquela mulher que, no espelho, via uma pessoa tão sem cor, tão triste e tão sem graça?

Voltou para casa. Finalmente havia acabado aquele dia e aquela semana. O trajeto desde a pequena cidade até sua casa havia sido cansativo. Mesmo assim, como estava sentindo-se bem disposta, resolveu passar no shopping center, para comer alguma coisa. Não queria chegar em casa e ainda ter que cozinhar.

Foi ao shopping, sentou-se à mesa de um restaurante e comeu sozinha, navegando na internet pelo velho celular, do qual ela jurava que iria desfazer-se em breve, e trocar por um mais novo. E, quando terminou o prato, achou que conseguiria manter a promessa que havia feito para si própria: a de não procurar nenhuma mensagem dele. Mas não cumpriu. Antes da sobremesa chegar, já havia procurado, mas nada encontrou. Veio a sobremesa: petit gateau - talvez porque precisasse de um pouco de chocolate. Comeu só o gateau e deixou o sorvete.

Pagou a conta, levantou-se e procurou o batom na bolsa. Não estava. Onde teria deixado o batom? Lembrou-se: ficara no criado mudo, ao lado da cama, no quarto do hotel na pequena cidade onde tinha passado a semana, 600 Km dali.

Passou numa loja de maquiagens, para comprar um batom novo. Ainda daria tempo? Daria, eram 21h, ainda. Não era mulher de ter 1000 batons. Tinha 3 ou 4, apenas um de cada cor. Pediu à atendente um batom clarinho. Batom, em geral, era clarinho. A maquiagem, ainda que visível e bem-feita, era geralmente discreta. Vermelho, em geral, só mesmo nas unhas. Nos lábios, só em ocasiões especiais ou em dias em que se sentia poderosa, o que era pouco frequente.

A atendente deu a ela de brinde um porta-batons, um daqueles estojinhos com um espelhinho retangular, comprido e estreitinho. Carina agradeceu-lhe a gentileza e, sem pensar, abriu o estojinho para olhar os lábios, enquanto passava o batom recém-comprado. Não havia porque olhar-se naquele espelhinho, já que a loja era cheia de espelhos grandes e bem iluminados. Mas, sem perceber, foi no espelhinho mesmo.

Ao olhar o reflexo no espelhinho, espantou-se: achou seu lábios lindos. Não só a cor, mas a forma. A pele clara, em volta dos lábios, parecia-lhe também especialmente bela. Ficou alguns segundos admirando a própria beleza, naquele espelho estreito. Não, não estava só bela. Estava linda!

Virou-se para olhar no espelho grande, da loja. Mas o espelho refletia a mesma imagem de sempre, sem graça. Olhou-se em mais outro espelho. Idem. Voltou a olhar-se no espelhinho do estojo do batom. Lindíssima. Achou que tinha enlouquecido. Como pode um espelho refletir de um jeito, e todos os outros refletirem de outro?

A atendente, percebendo a agitação dela, perguntou se estava tudo bem. Mas ela apenas agradeceu e saiu da loja correndo, meio atordoada, meio feliz. Queria chegar em casa logo e estudar aquele espelho. Chegou, largou a mala na sala, tirou os sapatos - como tinha conseguido ficar de salto alto tantas horas? - e correu para o banheiro, descalça. Acendeu a luz, olhou-se no espelho grande e viu-se como sempre: normal. Abriu o estojinho do batom: linda. Como assim?!

Moveu o estojinho, de forma a ver seus olhos. Grandes, como sempre. Mas refletiam-se belos e intrigantes. Afastou um pouco o espelhinho, para tentar ver-se um pouco mais, naquele reflexo tão estreito. Esticou bem os braços. A pele fina, quase sem marcas, refletia-se clara e delicada. Quase podia dizer que a pele refletia-se perfumada, até.

Àquela altura, ouvia sua própria respiração, acelerada. O coração batia forte. Abaixou o espelhinho e, no espelho maior, notou seu rosto cansado, depois de uma dia longo de viagem. Precisava de um bom banho e uma boa noite de sono. Definitivamente, o reflexo do espelho de rosto do banheiro continuava não combinando com o do espelhinho do porta-batom. Desinteressantemente normal em um; deslumbrantemente encantadora em outro.

Tomou seu banho e deitou-se imediatamente. Estava intrigada e contente com aquele reflexo especial, que aquele espelho mágico lhe oferecia. No dia seguinte, consultaria uma amiga, para saber o que ela via. Não tardou a dormir. Estava realmente cansada. Dormiu um sono só, sem despertar-se durante toda a noite.

Acordou de repente, sem sobressaltos. Era preguiçosa ao acordar, especialmente nos finais de semana. Ficava na cama, namorando o travesseiro macio e o silêncio, tão valioso e raro em uma grande cidade. Mas, naquele dia, não. Acordou instantaneamente, como se alguém a tivesse ligado na tomada de repente. Não tinha o menor sono, mesmo tendo dormido apenas algumas horas. O dia ainda estava amanhecendo.

Levantou-se, foi até a cozinha, tomou um copo d'água e foi ao banheiro, mesmo sem estar com muita vontade. Acendeu a luz e, ao lavar as mãos, viu o porta-batom, que havia deixado na pia. Abriu o estojinho e olhou-se, para ver se continuava mágico. Continuava. No espelho grande, olheiras. No pequeno, olhos doces e vivos. Belíssimos. Continuava sem entender, mas estava feliz. E sentir-se genuinamente feliz, depois de uma semana de tristeza, distância e silêncio, era um presente.

Iria mantê-lo ali, junto com os objetos que ficavam na prateleira do banheiro. Mas a cola que prendia o espelhinho ao porta-batom era fraquíssima. E, ao começar a fechá-lo, o pequeno espelho soltou-se. Carina soltou um "Ah, não!", enquanto o via cair e espatifar-se em mil pedaços, no chão do banheiro. "Ah, não! Ah, não! Ah, não!".

Abaixou-se, apanhando no chão os pequeníssimos pedaços do espelhinho, sem acreditar na tristeza daquele momento. O único motivo de alegria naquela semana havia tornado-se, em uma fração de segundo, um reforço à sua tristeza. Carina chorou. "Ai, que droga!". Era a mesma frase que tinha dito chorando, abraçada ao ex-namorado, no momento em que se despediam, dias antes.

Arrasada, voltou ao quarto e obrigou-se a dormir. Conseguiu, finalmente. Acordou quase meio-dia. "Que se dane", pensou. Estranhou o silêncio. Àquela hora, a rua deveria estar muito barulhenta, mas não se ouvia absolutamente nada. Silêncio total.

Calçou suas sandálias - aquele piso sempre lhe parecia frio ao despertar, especialmente em dias tristes - levantou-se e, à porta do banheiro, viu os caquinhos do espelho, que permaneceram no chão. Fez um rápido coque nos cabelos lisos, borrifou um pouco do sabonete líquido nas mãos, abriu a torneira e lavou bem o rosto. Secou-se delicadamente e olhou-se no espelho do armário do banheiro.

Riu, de felicidade e espanto. O espelho grande refletia a mesma imagem linda que o espelhinho pequeno refletira antes de se quebrar. Correu até o quarto, onde havia um espelho de corpo inteiro, do lado de dentro da porta do armário. Quase nunca usava aquele espelho. Abriu a janela, para deixar a luz do sol entrar. Abriu a porta do armário e viu-se no reflexo grande.

De camisola, com um coque nos cabelos e Havaianas nos pés, Carina viu-se linda como jamais havia se sentido. Admirava-se com o coque natural e displicente, com uma parte da franja solta; com a pele lisa e macia dos braços, as pernas bem torneadas, o colo vistoso e delicado exposto pelo decote generoso daquela camisola nova, que só ela conhecia; o sorriso aberto e honesto, os dentes brancos e perfeitos e os olhos escuros atentos, que enxergavam especialmente bem naquela manhã silenciosa - "Ih! Dormi de novo com as lentes de contato!" disse em voz alta, sorrindo. Não podia acreditar no que via. Carina estava, verdadeiramente, linda.

E assim permaneceu. Ela nunca achou explicação para o fenômeno que se passara com aquele espelhinho que se quebrara. Chegou a comentar com as amigas sobre o ocorrido, que elas acharam ser apenas brincadeira. Mas o fato é que, daquele dia em diante, todos os espelhos, dentro e fora de casa, por alguma razão inexplicável e feliz, passaram a refletir a mesma Carina que o espelhinho um dia refletira. Em alguns dias mais bonita, em outros mais normal. Mas, em todos, tão linda quanto o rapaz a vira, e muito mais bela do que jamais havia acreditado ser.


Um comentário:

  1. Que graça! Quantas vezes a gente se sente tão feia! Basta apenas um re-olhar-se com carinho, traduzido em auto-estima, para nos sentirmos lindas.

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