domingo, 7 de abril de 2013

O Homem da Nuca

Depois de mais de 2 anos escrevendo crônicas neste blog, apesar de poucas, comecei a notar que os assuntos se repetiam. E passei, então, a namorar a ideia de escrever contos, com os vários personagens que me vêm à cabeça - homens, mulheres e crianças com algum traço a partir do qual possa fazer algo que adoro: inventar o todo pela parte; desenvolver toda uma história com base em uma característica pouco ou nada importante. Para os contos, não quero as "morais da história", que este autor iniciante ainda não consegue deixar de inserir nas crônicas. Contos não precisam de conclusão, não precisam de silogismos. São mais livres, enfim, e resolvi que era hora de escrevê-los. As crônicas continuarão a vir, também. Mas, junto com elas, a partir de agora, virão também eles, os contos, maturados ao longo de semanas, ou então criados de supetão, enquanto escrevo, como este.

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O Homem da Nuca

Havia algo na nuca dele, que a atraía. É, na nuca. Naquela parte inexpressiva atrás do pescoço, entre as costas e a cabeça. Não eram os olhos, nem a boca, nem o queixo bem delineado que ele tinha, que a atraiam. Não. Ela gostava da nuca.

Na verdade, ela nem sequer sabia que rosto ele tinha. Ele trabalhava no mezanino de uma loja onde ela ia todas as semanas, de costas para um vidro que ela via do térreo, onde fazia as compras. Lá de baixo, através do vidro, via as costas daquele homem, sempre sentado, trabalhando sem levantar, quase como uma estátua, sem jamais se virar. Nunca vira seu rosto, nem ouvira sua voz. Não sabia se era solteiro ou casado, nem se gostava de bacon. Não sabia se já tinha viajado para o exterior, nem se já havia sido assaltado. Não sabia se era alto, se usava perfume, se gostava de Cat Stevens, nem de MPB. Não sabia nada. Apenas conhecia sua nuca - o único pedaço de sua pele visível através do vidro.

Ela mesma não sabia porquê, afinal, sentia atração por aquela nuca. Nucas são tão interessantes quanto testas, pulsos ou solas do pé. Meros pedaços de pele que servem simplesmente para interligar partes mais nobres do corpo, mais gostáveis e sedutoras. Mas, por falta de outras coisas para gostar naquele homem, Isa interessou-se pela nuca.

Depois de alguns meses vendo, sem ser vista, e intrigada com o mistério daquele homem sem nome e sem rosto, ela notou que começou a passar com mais frequência pelos corredores da loja que lhe permitiam vê-lo. Pegava-se a todo momento olhando para cima, através do vidro, às vezes sem perceber. Não tinha a real pretensão de vê-lo, mas olhava mesmo assim.

Começou a frequentar a loja em horários diferentes. Quem sabe ele se levantaria em algum momento? Talvez na hora do almoço? Mas, nada. Ou ele simplesmente não estava, ou estava lá, de costas, sentado e inerte. Ele e sua nuca indecifrável.

Certo dia, enquanto andava pelo corredor central, olhando para o vidro, Isa deu um forte encontrão em um rapaz magro, de estatura média, sobrancelhas grossas e rosto honesto, com entradas bem pronunciadas no cabelo muito encaracolado. A topada foi tão forte que derrubou o celular, no qual ele falava, e os shampoos que estavam na prateleira.

- Ai, moço, por favor me perdoe! Eu estava tão distraída que não vi!
- Imagine, não tem problema!
- Não, não! Olha me perdoe, eu realmente não sei onde estou com a cabeça!

Envergonhada, abaixou-se na frente dele para apanhar os shampoos que estavam no chão. Usava uma blusa florida e alegre, com decote muito discreto, que não revelava nada, mas permitia ver seu colo de pele muito clara. Ele também abaixou-se, enquanto admirava sua beleza natural e frágil, no rosto sem maquiagem. Ajudou-a pegar as poucas embalagens de shampoo que estavam pelo chão. E pegou também o celular, cujo visor havia quebrado na queda. Pôs no bolso, rapidamente, sem que ela notasse. Não queria que ela percebesse que o tinha quebrado.

Voltaram a levantar, trocando mais algumas palavras:

- Obrigado pela ajuda!
- Imagine! Espero que não tenha se machucado!
- Não, não machucou. Mas tenho que ser mais atenta! Me desculpe.
- Perdoo com uma condição...

Naquela hora, sem querer, como sempre fazia, Isa olhou para o vidro. A cadeira do homem girava no próprio eixo. O homem da nuca havia acabado de se levantar! O mundo ficou em câmera lenta e os sons ficaram abafados, como música embaixo d'água, indistinguível. Será que voltaria? Será que tinha ido embora - que horas são? - ou tinha ido falar com alguém e voltaria em seguida? Tinha ido ao toalete? Será que ela finalmente iria vê-lo?

- A condição é você aceitar tomar um café comigo! - disse o rapaz.

Mas ela não ouviu. Continuava a olhar para o vidro, como uma criança que olha para as mãos de um mágico, momentos antes do truque ser revelado.

O rapaz insistiu:

- Aceita?
- Hã? Ah, desculpe! Eu não ouvi o que você disse...
- Aceita tomar um café comigo?

Ela sorriu, surpresa. Baixou os olhos e prendeu a respiração por um instante. Tirou o cabelo do rosto e colocou atrás da orelha. Estava lisonjeada com o convite, mas não poderia aceitar. Não poderia! Balançava a cabeça. Tomar um café com um estranho, assim, do nada? Não...

A cadeira do homem da nuca já parara de girar, mas ela não viu. Olhava curiosa para o rosto do rapaz, intrigada com o interesse dele por ela. Estaria sendo apenas gentil ou realmente vira algo nela? Antes que percebesse, respondeu, mantendo o leve sorriso e soltando a respiração, que ainda estava presa:

- Aceito! Aceito, sim! - fez uma pausa, pensativa, impressionada com a própria resposta - Vamos tomar um café!

E saíram andando na direção contrária à do vidro, dirigindo-se para o caixa. O homem da nuca retornou. Tinha ido buscar um cappuccino. E, durante alguns segundos, enquanto assoprava para o cappuccino esfriar, ficou ali, de frente para o vidro, observando o casal que se afastava no corredor em frente. Voltou a sentar em sua cadeira, de costas para o vidro, e continuou a trabalhar. Isa nada viu.

Aquele foi o último dia dele na loja. Havia sido promovido a gerente de uma outra loja da rede, que seria aberta em outro estado. Nunca mais pôs os pés ali.

Isa casou-se alguns anos depois com o rapaz de rosto honesto, cujo celular tinha quebrado. Ela nunca havia de fato se apaixonado pelo homem da nuca. Afinal, era apenas uma nuca. Mas lembrava-se dele às vezes, quando ia à loja. E ali, no corredor onde costumava andar na esperança de vê-lo, de vez em quando se pegava pensando em qual seria o seu nome, e se era feliz.

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