sábado, 13 de setembro de 2014

O menino

Não sabia dizer ao certo o que era, nele, que a fascinava tanto.

Sabia que não era o jeito orgulhoso de falar, nem as mãos. Sabia que não era o pomo de Adão, saliente, nem a voz rouca. Também não eram a baixa estatura, nem os lábios carnudos. E sabia também que não era a inteligência, apenas mediana, nem a facilidade em assoviar. Nem a brancura da pele. Nem o escuro dos cabelos. Nem as sobrancelhas bem desenhadas. Nem o jeito singular de apoiar a rosto nas mãos. Nem a panturrilha musculosa e os ombros largos. Nem o beijo mais molhado do que estava habituada.

Ela sabia tudo o que não era, mas não sabia dizer o quê, afinal, era a causa do seu fascínio. Não era um homem misterioso, não era especialmente atraente, não era especialmente nada. Mas era tudo.

E, durante anos, ela nutriu aquele interesse. Fascínio, na verdade. Tudo o que vinha dele a encantava, era motivo de adoração.

Durante algum tempo, pôde tê-lo. Mas, apesar de todos os carinhos e mimos e afagos, ele não ficou. Simplesmente não estava pronto. Ou, como todo homem, talvez nunca viesse a estar, porque nunca deixaria de ser apenas um menino.

E ele se foi. Partiu para, talvez, tentar descobrir em si mesmo o que havia para se gostar. E ela sentiu saudades, muitas saudades. Durante muito tempo.

Mas, com os anos, ela seguiu adiante. Nunca o esqueceu, apenas o superou. Deixou de doer porque simplesmente deixou de lembrar. Virou página no meio do livro. Não rasgada, não molhada, não embolorada. Apenas acolhida, no meio de outros livros, no meio de outras estantes, em bibliotecas que já não costumava visitar.

Um certo dia, muitos anos depois - décadas, talvez - o avistou. Estavam no metrô - ele já no vagão, quando ela entrou. Ele lia um livro, cujo título ela não conseguia destinguir à distância. Lia atentamente, como costumava fazer. Estava, claro, mais envelhecido. As feições maduras, os cabelos já levemente grisalhos, um pouco mais gordo. As olheiras, um pouco mais escuras.

Eram só duas estações até ela descer. Não iria abordá-lo. Ficou ali, olhando-o à distância, folheando na memória as páginas que a levavam a ele e aos sentimentos que um dia a habitaram. Sem dor, sem tristeza. Só contemplação serena.

O metrô começou a desacelerar. Ela desceria na próxima parada.

- Estação... Luz. - disse o alto falante.

Isto o distraiu por um instante e ele levantou os olhos do livro. O metrô já estava praticamente parado. Cruzou o olhar com o dela imediatamente, com se já a soubesse ali. Detiveram-se naquele olhar e, passados apenas três segundos, já tendo localizado as páginas em que viviam, nos livros de suas vidas, sorriram ao mesmo tempo: um sorriso levíssimo, quase imperceptível.

E ela desceu do vagão.

A porta se fechou. Ela ficou parada por alguns instantes na plataforma e virou-se, para olhá-lo novamente. Ele continuava lá, fitando-a com o mesmo sorriso quase imperceptível. Não se moveram. Não acenaram. Não fizeram menção em fazer um gesto de "Me liga". Nada. Só o sorriso quase não-sorriso, enquanto o metrô começava a acelerar e ele ia embora, uma vez mais.

Finalmente, com a respiração ainda suspensa, e com o vento causado pelo deslocamento dos vagões soprando em seus cabelos, descobriu o que tanto a havia fascinado naquele homem: a verdade no jeito carinhoso de olhar. Olhar de menino.

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