sábado, 20 de setembro de 2014

Bokeh


Era uma menina com um olhar diferente das demais. Uma criança, ainda. Mas olhava a vida com formas, matizes e enfoques diferentes de todos à sua volta. Era especial. Tudo para ela era poesia, tudo era encantamento. Nada passava desapercebido aos seus olhinhos ávidos e interessados.

Mas não era apenas o olhar. Era um talento para transformar o que olhava, em alguma outra coisa. Ela eternizava o que via e sentia, de uma forma só dela, única: fazia um desenho, uma pintura, elaborava um poema sem esforço, saía rodopiando uma dança só sua, ou cantarolava uma música espontânea, nascida de algum lugar perto do peito.

Dormia bem, dormia pesado - talvez para compensar o excesso de atenção que dispensava a tudo na sua vidinha de criança. Mas, na manhã de um sábado frio e ar seco, ela acabou acordando mais cedo do que de hábito. Por algum motivo, os passarinhos naquele dia cantavam mais alto. Ou os seus ouvidos é que estavam mais felizes. O fato é que o canto deles a despertou antes do sol nascer, e não conseguiu mais adormecer.

Nem tentou ficar na caminha. Levantou-se e foi, com os pezinhos descalços até a sala e ficou lá, sentadinha à janela, esperando os primeiros raios do sol. Já tinha visto fotos mas, aos 6 anos, nunca tinha presenciado um amanhecer.

Não demorou muito e começaram a aparecer os primeiros raios de sol. E ela ficou simplesmente encantada. Nunca tinha visto nada tão lindo. Emocionada, pela primeira vez na vida chorou por um motivo que não sabia explicar. Chorou só para si, sem expectadores. E, com o passar dos minutos, e as cores mudando no céu, não conseguiu mais se conter: precisava compartilhar sua alegria, e foi acordar o pai:

- Papai, papai! - sussurrou com aquela delicadeza que sempre tinha, para não assustá-lo, enquanto afagava seus cabelos.
- O que foi, meu amor?
- Vem ver, papai! Vem ver! - já puxando-o para fora da cama.
- O que aconteceu, filha?
- Olha na janela! O sol está vermelho!
- É, meu amor. É porque o dia está nascendo.
- Não, papai! É que o sol passou batom para beijar a gente!

O pai, sorriu, encantado com mais uma das suas ideias criativas e surpreendentes.

- É, sim, filhota. Passou um batom bem bonito, igual ao seu.
- E sabe o que isso quer dizer, papai?
- Não sei. O quer dizer?
- Quer dizer que o sol é mulher!

Daquele dia em diante, a pequenina apaixonou-se pela luz. E, no aniversário seguinte, pediu - e ganhou - uma máquina fotográfica. Simples, mas só sua.

Tirava foto de tudo. Fotografava coisas comuns: o cachorrinho, as árvores, os pais, o irmãozinho, os brinquedos. Mas passava horas, também, caçando as pequenas coisas para fotografar: joaninhas, gotas d'água, a própria mãozinha escrevendo, os primeiros pelos brancos da barba do pai, enquanto cochilava. Queria sugar o mundo nos mínimos detalhes, com a lente sedenta da sua câmera nova.

Passaram-se alguns anos e a menina, já mocinha, apaixonou-se por um garoto na escola, um pouco mais jovem do que ela. E, intensa como era, foi uma paixão daquelas, arrebatadora, vigorosa, colorida. Mas doce, sem doer. Só o lado bom de estar apaixonada.

- O perfume dele, mamãe, tem cheiro de estrela!

A mãe nunca entendeu bem o que era cheiro de estrela. Mas a menina sabia muito bem.

- Mãe, tenho saudade do abraço dele...
- É, filha? Que lindo! E quanto tempo faz que vocês não se abraçam?
- Nunca nos abraçamos, mãe.

Ficaram, sim, amigos, mas o menino era muito tímido. Também gostava dela, do seu sorriso fácil e dos olhos mais ávidos que já tinha visto, mas não tinha a menor coragem de dizer isso a ela com todas as letras.

Certo dia, escondida do pai, pegou a máquina fotográfica dele - uma daqueles grandes, com a lente cheia de ajustes - e levou para a escola. Queria fazer uma foto especial do garoto. Mas não era para colocar no porta-retrato, nem no fundo de tela do celular.

- Pra colocar embaixo do meu travesseiro, ué! - respondeu à amiga, quando perguntada o porquê de querer tanto uma foto dele.

Ela pediu para ele, mas sua timidez o impediu de aceitar de tirar a foto. Ela insistiu, mas ele não quis. Não tinha jeito. Era só um garoto assustado diante de uma menina cheia de ideias e vontades. E foi se afastando, envergonhado, caminhando de costas para ela, fugindo da foto e contrariando seu coração, que queria tanto ficar.

Ela não teve dúvidas: deu o máximo de zoom na lente - adorava aquela câmera do pai - e esperou por alguns segundos. Quando o visor mostrava só a cabeça dele, ainda de costas, ela não se conteve e gritou:

- Eu gosto de você!

Ele parou, imediatamente. A respiração, suspensa. E, de repente, em um segundo, uma calma tomou conta dele. O vento virou brisa. Sorriu, respirou fundo, virou-se e olhou bem para lente, como se olhasse para os olhos dela.

E ela fez a foto: só o rosto dele, sorrindo, no enquadramento bem fechado. O fundo, completamente desfocado, mostrava um mundo que, àquela altura, não importava mais. Ela havia capturado a imagem que queria. Exatamente a imagem que queria.

E ele, sereno, sussurrou, sabendo que ela ainda o olhava através lente:

- Eu também gosto de você.

Aquela foi a melhor foto que lhe tiraram na vida. Ela enviou para ele, por e-mail. O pai dele era fotógrafo e ficou maravilhado com a foto tirada pela garota. Achou lindo o filho, capturado naquela espontaneidade, rodeado por aquele fundo suave, esmaecido pelo fascínio do olhar daquela menina. A luz do início da manhã oferecia uma luz difusa, com sombras suaves. Uma foto singular. Belíssima.

Ele explicou ao filho o termo usado em fotografia para se referir àquele efeito desfocado, difuso, que havia naquela foto: Bokeh.

E, daquele dia em diante, ela ganhou do menino um apelido, pelo qual só ele a chamava. Um apelido que ela adorava. Um apelido nascido do retrato dele, mas que era, na verdade, um retrato dela própria. Porque a atenção que ela dava ao que lhe era importante era tão grande e tão intensa, que fazia todo o resto desaparecer, desfocar-se. O apelido perfeito: Menina Bokeh, a menina que fotografava a felicidade.

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