domingo, 6 de outubro de 2013

Noite às escuras

Quando criança, tinha sentido pavor do escuro. Não sabia exatamente o porquê, mas tinha. Com o passar do anos, já adulto, o pavor deu lugar a um mero desconforto. Mas o fato é que havia algo no escuro que sempre lhe causara certo temor.

Nunca tivera qualquer trauma específico envolvendo escuro. Até aquela data, nunca tinha ficado sozinho em casa quando faltara luz, nem tinha tido qualquer experiência sobrenatural - embora tivesse, também, medo de assombração. "Eu não acredito em fantasmas. Mas que eles existem, ah, existem", dizia. Adorava filmes de terror, jogos de terror, história de fantasmas. Adorava desafiar seu medo no conforto do seu sofá, sob a luminosidade acolhedora vinda da tela da TV.

Às vezes, corajoso, obrigava-se a andar no escuro dentro de casa, depois que anoitecia. Sentia os pelos do braço eriçados, mas não corria, enfrentando o medo que não sabia explicar e também não divulgava a ninguém.

Tinha especial fascínio também pelos bichos que viviam na completa escuridão: seres das cavernas, peixes abissais e outras criaturas da noite. "Todos fascinantes".

Enfim, convivia com aquele desconforto desde sempre. Não era algo que lhe incomodasse ou perturbasse. Apenas estava lá, acompanhando-o desde sempre.

Certo dia, no entanto, aconteceu um episódio curioso. Era umas 23h, estava em casa sozinho e faltou luz. Não era uma mera queda de energia no bairro, não. Da sua janela viu - ou na verdade, não viu - a cidade escura por onde olhasse. Um apagão completo.

Era uma noite sem luar. O céu nublado deixava o ar pesado e opaco. Até os carros pareciam ter ido dormir. Não havia circulação. Estava escuro pra valer. Nem barulhos havia. Era como se alguém tivesse congelado o mundo exatamente como descreveu Saramago, mas ao contrário: preto. Completamente preto.

Em poucos instantes, olhando a janela dos outros prédios próximos ao seu, via retângulos iluminados, flutuando de um lado para o outro nos apartamentos escuros. Pois é, até as velas tinham sido substituídas pelos celulares de tela grande o suficiente para serem mais interessantes do que o resto do mundo. "Será que as baterias destes celulares acesos duram mais do que uma vela?". Tentou ligar seu próprio celular, mas estava completamente sem bateria, desde aquela tarde. Apagado de vez.

Onde teria deixado as velas, afinal? "Na cozinha, com certeza". Começou a tatear, devagar. Se as luzes estivessem acesas, provavelmente conseguiria fazer facilmente aquele trajeto, mesmo com os olhos completamente fechados. Mas, no escuro, não. Foi tateando lentamente, com os braços esticados e duros à frente do corpo, os olhos esbugalhados tentando captar qualquer resquício de luz e as mãos bem abertas, esperando tocar a parede à qual nunca chegava. Não estava exatamente com medo, apenas queria poder enxergar alguma coisa à frente do nariz.

Os pés arrastavam-se, como que temerosos de que ao se descolarem do chão por um instante, pudessem perdê-lo de vez. O grande tapete não lhe permitia sequer sentir as emendas das tábuas do piso, que poderiam servir-lhe de referência. Nada. Andava vagarosamente sobre o tapete com os olhos e o tato vendados pela escuridão, já perguntando-se se tinha ido para a direção oposta, até que sentiu uma dor lancinante quando o dedinho do pé esquerdo encontrou o batente da porta da cozinha, que, inexplicavelmente, tinha ido parar ali.

Soltou um palavrão, esperou a dor passar e seguiu tateando. Estava finalmente na cozinha. Queria chegar às gavetas, onde imaginava que encontraria velas.

Finalmente, encontrou. Enquanto mexia na vela, ela escorregou da sua mão e caiu no chão. Pode ouvi-la rolando, embora não tivesse ideia de para qual direção tinha ido. Provavelmente quebrara-se. "Saco!". Passou a ter medo de pisar no chão, e escorregar nos pedaços de vela que, àquela altura, certamente tinham a intenção deliberada de derrubá-lo.

Teve uma ideia brilhante: acender um fósforo! Iluminaria rapidamente o ambiente, acharia a vela, acenderia o pavio, e voilá!

Isso, se houvesse fósforos. Mas não havia. Nenhum. Necas de pitibiribas. Estava definido: suas próximas horas seriam na mais completa escuridão.

Depois de desistir de sua procura em vão pelos fósforos, mesmo depois de ter achado três outras velas, decidiu voltar para a sala, já deslocando-se com melhor desenvoltura pela escuridão. Sentou-se no sofá, pôs as mãos no colo e ali ficou por alguns segundos, pensando no que fazer. "Acho que vou dormir". Mas não sentia sono. Ao contrário, estava mais acordado e alerta do que nunca. E sentia-se relaxado. Não estava com medo, e estranhou o fato. Afinal, quando havia luz, ficar no escuro parecia-lhe desagradável. Mas, quando não havia, e o escuro era sua única opção, pareceu-lhe perfeitamente suportável. Ou, mais do que isso, curiosamente interessante.

Jogou-se para trás, encostando-se no sofá. Cruzou os dedos atrás da cabeça e "olhou" para o teto. Na verdade, não havia nada para olhar, mas imaginou que estivesse olhando para o teto. Respirou fundo, acomodou-se no sofá e, sem querer, adormeceu.

Acordou sobressaltado. "Quanto tempo se passou?" Ainda estava escuro. "Será que já é madrugada?". A que horas ia acordar mesmo? "Será que o despertador já vai tocar? Não posso me atrasar hoje! Já é hoje? Ou ainda é ontem?". Os passarinhos não cantavam. Normalmente, quando acordava antes do despertador, ouvia os passarinhos cantando, muito antes do sol nascer. Mas estavam silenciosos. "É porque é tarde demais ou cedo demais?"

As ruas e as janelas dos outros prédios continuavam às escuras. O blecaute prosseguia. Os olhos, já completamente despertos, conseguiam distinguir a silhueta de alguns objetos na casa. Percebeu que ainda estava com o relógio de pulso. Tentou olhar as horas, mas não conseguiu.

Levantou-se e foi facilmente caminhando até a cozinha. Encheu um copo com água sem derrubá-la, ouvindo apenas o barulho do copo se enchendo, e tomou. Lembrou-se que na geladeira havia um pedaço de queijo minas e um finzinho do pote de dulce de leche que havia trazido de sua viagem recente a Buenos Aires. Comeu, tentando se lembrar se aquele doce de leite estava mais para clarinho ou mais para escurinho. Fez tudo isto na completa escuridão. Fácil e naturalmente.

Foi  para o quarto, ficou de cuecas e deitou-se. Largou a roupa no chão. "Ah, vai lavar, mesmo". E adormeceu de novo, "olhando" para o teto.

Acordou com os primeiros raios do sol entrando pela janela, que havia se esquecido de fechar. O rádio-relógio piscava 00:00. Virou-se de lado e, graças à luz da manhã, conseguia finalmente ver as horas no relógio de pulso: faltavam alguns minutos para as seis. Levantou-se, tomou banho, escovou os dentes e seguiu adiante com seu dia.

Talvez ele ainda não tenha notado, mas desde aquele dia, seu medo de escuro passou. Não sente mais incômodo algum. Os pelos do braço não se eriçam mais. Não se obriga a andar devagar controlando o medo enquanto caminha pelo corredor da própria casa. Estar no escuro, não ver, ter que tatear ou usar os ouvidos para conseguir encher o copo d'água, serviram para aguçar-lhe os sentidos, e mostrar-lhe que o escuro às vezes é não apenas inevitável, como bem-vindo.

Mas, o mais curioso de tudo, não é que o medo do escuro tenha passado. É que ele nunca vá saber quanto tempo ficou adormecido nas duas vezes em que pegou no sono naquela noite. Talvez tenha dormido horas no sofá, e minutos na cama. Ou minutos no sofá e horas na cama. Aquela foi uma noite que ele não sabe - e nunca saberá - exatamente como passou.

Mas, passou. E talvez vá se dar conta, provavelmente com alegria, que o medo do escuro, "quem diria?", também.

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