quinta-feira, 14 de abril de 2011

Nenhum talento especial

Outro dia eu vi na TV uma matéria feita nos EUA, sobre uma delícia brasileira: o brigadeiro. Você já parou para pensar nas coisas que só temos aqui, e que adoramos? Além do brigadeiro, temos o pão de queijo, o guaraná, o doce de leite com queijo minas, o pastel com caldo de cana. Isso, para falar só em comidinhas...

O fato é que os nossos brigadeiros estão fazendo sucesso na terra do Obama, e alguns brasileiros ganham uma graninha por lá vendendo-os a 1 dólar a unidade. Não dá pra ficar milionário, mas dá pra defender um trocado honestamente.

Mas o que me levou a escrever foi a "recriação do brigadeiro", que começou a acontecer por lá. Um chef (não sei se era francês ou canadense) pegou a nossa receita e fez diversas variações. Uma delas, inclui o brigadeiro com canela e pimenta - que deve ter um sabor bem diferente daquele que as crianças brasileiras sentem enquanto se lambuzam até o queixo nas festinhas.

"Poxa, mas por quê um chef estrangeiro para recriar o NOSSO brigadeiro?! E ainda enfiar pimenta nele?! Não, obrigado". Pensei um pouco sobre as razões que motivaram o tal chef a fazer  isso, e acho que a resposta resume-se a uma palavra apenas: "desapego".

Nós, brasileiros, dificilmente conseguiríamos reinventar o brigadeiro, porque somos muito apegados ao original. Não conseguimos nos afastar suficientemente da tradição, para poder pensar em algo novo. Isso não é ruim, de modo algum! Afinal, o brigadeiro é ótimo do jeito que é. O tradicional, muitas vezes, é tão bom que não precisa ser mudado.

Não precisa, mas pode. E também não há nada de mau nisso. Provavelmente nenhum japonês teria a ideia de fazer sushi com goiabada. Precisou chegar aqui e cair nas mãos de alguém que gostasse muito de sushi, mas que fosse suficientemente desapegado da tradição, para inventar essa novidade tão gostosa. Assim como foi necessário alguém de fora do Pará para inventar o açaí com granola. Açaí, no Pará, leva só açúcar em generosas quantidades e, para alguns, a deliciosa farinha de tapioca. Eu, como filho de paraenses, gosto do original. Minha filha mais velha, que carinhosamente apelidei de "Mari Poço sem Fundo" (em homenagem a uma permanente fome impulsionada pelo rápido crescimento aos 10 anos), gosta dos dois jeitos. Não tem apego ao original, como eu tenho.

É o desapego à tradição que, muitas vezes, leva ao nascimento de ideias novas, sem que as velhas necessariamente desapareçam. Ou então, que surjam aplicações novas para ideias já existentes. Provavelmente foi um físico quem inventou a câmera escura, um outro quem descobriu que uma placa com nitrato de prata registrava imagens. E um artista transformou a fotografia em arte. Isto não torna o artista mais nem menos importante que os físicos. Todos são agentes de um mesmo processo criativo, que gerou algo realmente novo. Talvez um outro físico tenha voltado a visitar esta ideia, para criar a câmera de cinema.

Santos Dumont, antes de inventar o avião, olhou para o relógio de bolso e inventou o de pulso, que foi construído pelo amigo Cartier. Alguém um dia olhou para uma Viola de Gamba, para inventar o violino. E outro olhou para o violão, para inventar a guitarra. Mas a guitarra não é melhor que o violão. E o avião (Dumont, de novo) não é melhor que a bicicleta. É mais complexo, claro. Pode, também, ter causado no mundo uma transformação mais profunda. Mas, cada invenção tem o seu valor. Neste caso, o valor depende apenas se você quer cruzar o Atlântico ou ir até a padaria comprar 100g de queijo prato.

O fato é que desapegar-se das próprias ideias e das próprias referências é, além de um ato de humildade, um bom caminho para buscar inovação. Na minha crônica de fevereiro, "Rebolation Ma Non Troppo", neste mesmo blog, falei sobre "ser plural", ter múltiplos interesses. Acho que as pessoas criativas são, antes de tudo, interessadas em tudo, mesmo que as informações que coletam, à primeira vista, não tenham nenhuma utilidade identificável. Einstein, numa frase que soa quase cômica, disse "Eu não tenho nenhum talento especial. Sou apenas apaixonadamente curioso". Mais humilde do que isso, está difícil. E mais genial, também.

Diversas vezes, me deparei no trabalho com problemas ou necessidades que não conseguia resolver. No caminho de casa, já sem os olhos na tela, ou enquanto tomava banho, ou num dia de descanso, a ideia e a solução se me apresentavam. Às vezes basta um breve afastamento do problema, para que a cabeça tome rumos diferentes, e a solução apareça. É a ideia de "olhar de cima", para ver melhor o que está no centro. Ou simplesmente olhar para o outro lado, e achar lá a resposta que insistia em não aparecer enquanto olhavámos apenas para o nosso próprio umbigo.

Normalmente, as boas ideias são pegajosas aos seus autores, que, compreensivelmente, têm dificuldades em largá-las. Mas quando esses mesmos autores têm o desprendimento de olhar para elas com outras opticas e outros enfoques, podem se modificar para algo ainda melhor, ou então irem para o lixo, por mostrarem-se simplesmente medíocres. Desapego, enfim.

Não sou grande admirador da arte de Picasso, até porque não a conheço bem. Mas não se pode deixar de reconhecer a importância e profunda influência que teve na arte contemporânea. Em uma frase que talvez ajude a exprimir a razão de sua arte ser como é, ele disse que "Outros viram o que era e perguntaram "Por quê?". Eu vi o que poderia ser, e perguntei "Por que não?". O desapego de quem recriou o nosso brigadeiro, para enfiar-lhe pimenta, talvez seja excessivo para nós. Mas, se agrada aos gringos, vamos citar Picasso: "Por que não?".

O desapego ao próprio ego (difíííícil) e às próprias ideias, ao meu ver, é um dos talentos que toda pessoa que se diz criativa deve ter. Ou, pelo menos, buscar ter. Se Eistein, que não tinha talento algum, conseguiu, imagina a gente!


3 comentários:

  1. Muito bom! Sou muito suspeita pra falar dos seus textos.
    Helder,eu faço um brigadeiro com uma única uva passa que ficou de molho num bom conhaque por 30 dias, que é divino. Experimente! É uma delícia a surpresa!

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  2. Linei, tá aí mais um bom motivo - além da permanente saudade - para eu ir aí te visitar de novo! Obrigadíssimo pelo comentário!

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  3. Helder,
    Gostei muito de seu texto. Como um simples brigadeiro pode levar a tantas reflexões. Alias, muitas respostas para complexidades da vida vem de coisas muito simples.
    bjs. Wilma

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