terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Com a outra mão



"Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado."
Fabrício Carpinejar, escritor gaúcho

Como em todos os anos desde que comecei a escrever, faço reflexões de final de ano. Esta, é a do ano de 2014.

Antigamente, eu gostava de acreditar que eu era um cara diferente. E a música era a forma de provar isto a mim mesmo. Tolo, eu sei. Mas era assim. Entre os meus 15 e meus 20 e poucos anos, eu gostava de ouvir umas músicas meio incomuns. Passava horas nas lojas de CD "descobrindo" novidades, na época em que nem existia internet e MP3 não queria dizer absolutamente nada.

De uns anos para cá (estou agora com 37), passei a ouvir músicas mais convencionais - talvez porque eu, também, tornei-me mais convencional. Mas, naquela época, gostava de ouvir o que quase ninguém ouvia... Dava-me um certo senso tolo e infantil de singularidade.

O fato é que, no afã de ser pseudo-eclético, conheci muita, muita coisa legal. E, numa dessas andanças em uma loja de CDs, me deparei com uma capa que me chamou atenção, de um álbum intitulado, Fingerdance, de um músico do qual nunca tinha ouvido falar: Billy McLaughlin.

Fingerdance, do álbum homônimo, de 1996

Achei o título interessante. "Dança do Dedos". Fiquei curioso. O texto da capa, dizia:

Close your eyes
Feche os olhos

And you won't believe you're listening to an acoustic guitar
E você não vai acreditar que está ouvindo um violão

Open your eyes
Abra os olhos

And you won't believe how he does it
E você não vai acreditar em como ele o faz.


Achei irresistível! Pedi para ouvir, o vendedor deixou (eles não gostavam muito de abrir capinhas de CD fechadas) e escutei a faixa-título. Foi um daqueles momentos em que você sabe que está experimentando uma coisa especial pela primeira vez. Fiquei absolutamente fascinado com a sonoridade singular, o estilo imprevisível e sofisticado, uma forma que, para mim, com 18 anos, era completamente nova. Comprei o CD imediatamente e ouvi, ininterruptamente, por vários e vários dias. Decorei todas as músicas e sou capaz de cantarolar cada uma delas até hoje, nos mínimos detalhes.

Sempre achei meio assombroso alguém conseguir tocar violão. Toquei um pouco (pouquíssimo) de piano e teclado na adolescência, mas nunca compreendi como é possível alguém conseguir domar um instrumento complexo como o violão: a sincronia dos dedos, a complexidade dos acordes, a destreza. Billy McLaughlin toca praticamente 100% do tempo apenas no braço do violão. Toda a sonoridade das suas músicas sai dali, como se fosse um teclado. É um som diferente, improvável, intrigante e delicado.

Outros gênios já tinham feito isto antes dele, em diferentes gêneros: Hendrix, Jordan, Hedges e outros. Mas foi com ele que ouvi pela primeira vez.

Ele lançou poucos anos depois uns novos CDs, igualmente excelentes. E, depois disso, sumiu. Não ouvi mais falar em Billy McLaughlin. Veio a popularização da internet, ele chegou a ter um site, mas não lançou mais nada. Nem uma música, sequer. Evaporou. Silêncio de muitos anos.

Mas, em 2006, Billy ressurgiu das cinzas, com uma incrível história para contar...

O sumiço teve uma causa. Em 1999 ele começou a "errar" as próprias músicas. Foi aos poucos perdendo a capacidade de tocar. Em 2001, foi finalmente diagnosticado com uma doença neuromuscular incurável, chamada "Distonia Focal". Ela afeta justamente pessoas que fazem movimentos repetitivos, como músicos e atletas, causando contrações involuntárias dos músculos - no caso dele, de dois dedos da mão esquerda. O virtuoso do violão estava completamente impossibilitado de tocar.

Em 2002, sua carreira estava encerrada. De 1988 a 1999, Billy fez mais de 1700 shows. De 1999 a 2006, foram 14. Neste intervalo de tempo, ele perdeu seu o contrato com a gravadora, sua empresa, seu empresário, sua renda. E perdeu também seu casamento e sua casa.

A Distonia Focal roubou-lhe dois dedos. E isto foi o suficiente para roubar-lhe também sua música e sua vida até ali.

Até que ele decidiu fazer o improvável... com a outra mão. Reaprendeu a tocar suas próprias músicas, uma a uma, nota por nota, invertendo a posição do violão, passando a tocá-lo com a mão direita, em vez da esquerda.

Não é tão simples quanto parece... Eu sempre tive facilidade de fazer as coisas com as duas mãos. Não sou um ambidestro verdadeiro - daqueles para os quais é realmente indiferente usar qualquer uma das mãos, já quem ambas têm a mesma desenvoltura. Eu, não. Meu cérebro não foi tão privilegiado. Sou destro, mas com o passar do anos fui me obrigando a fazer coisas com a mão esquerda, de forma que, com o tempo, consegui alguma desenvoltura. Digo que sou apenas um "falso ambidestro".

Mas, quando se toca música profissionalmente, no nível em que ele tocava, a coisa é diferente. Se alguém me exigir que eu escreva tão bem com a mão esquerda quanto faço com a direita, simplesmente não vou conseguir. Uma coisa é escrever de forma que seja legível. Outra coisa é escrever exatamente com a mesma desenvoltura, com a mesma velocidade e com a mesma letra. Não dá; é impossível.

É equivalente a aprender a falar sua própria língua fluentemente, de trás para frente. É como virar o teclado de cabeça para baixo, cruzar as mãos sobre ele e tentar digitar um texto inteiro sem um erro sequer. Não dá. Ou dá?

Bem, ele o fez. Retomou sua carreira em 2006, 5 anos após o diagnóstico. Voltou a compor, voltou a se apresentar. Recuperou a coisa que mais gostava de fazer e para a qual havia tanto se preparado. Recuperou a arte que refletia quem ele era.

Uma história inspiradora, de um gênio cuja teimosia foi tão poderosa quanto o talento, e cujo esforço foi tão grande quanto o sonho de voltar a tocar.

Church Bells, já com as mãos invertidas. 2006

Isso me traz aos desejos para 2015. Para o ano que vem, espero que sejamos um pouco como Billy McLaughlin. Espero não apenas acreditar que é possível fazer "com a outra mão". Acreditar é pouco. Quero ir lá e fazer. Mesmo que demore. Mesmo que dê trabalho e requeira paciência. Mesmo que seja necessário olhar para a própria mão e ensiná-la tudo de novo, insistir, fazê-la conquistar a mesma alegria e a mesma destreza da outra.

Quero reaprender o que sabia, para tocar as músicas que me são importantes, e compor outras músicas que ninguém jamais ouviu. E que eu nem sabia que havia em mim.

Quero fazer com a outra mão, para expor o artista que ainda posso ser, sem negar o que fui. Quero que os silêncios virem música. E que "resignar" seja palavra banida do dicionário.

Quero recompensas e aplausos. Quero inspirar. Quero não ter medo de cair e levantar quantas vezes sejam necessárias. Quero enfrentar o medo e a incerteza. Quero agradecer. Quero conseguir fazer o que eu sei que sei fazer. E também o que nem sei que sei.

Não quero fazer com a outra mão porque me obrigo. Quero porque a outra mão também pode, também consegue. Não para ser melhor, nem diametralmente diferente. Mas possível, viva. Inteira por si.

Porque mesmo não sendo virtuoso, como Billy McLaughlin, sou um puta de um teimoso. E, em sendo, nego-me. E em negando, abro-me.

Em 2015, serei canhoto. Porque tenho um livro para continuar a escrever. E, mesmo que a letra seja diferente do que era, ainda é a minha letra. Me orgulho dela. E minha outra mão, também.

Feliz 2015!

2 comentários:

  1. Meu querido amigo, a única coisa que te desejo para 2015 / 16 / 17 / 18.....é que vc viva intensamente, seja com a mão direita ou esquerda, se permita sentir, fluir, tornar a vida simples e leve.
    Disfrute do bom da vida, se cerque de boas energias, de pessoas do bem e acima de tudo...ame intensamente.

    Te quero muito bem e te desejo tudo de melhor!

    Um grande beijo,

    Martha

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  2. Resignar é o primeiro passo para ter resiliência. Considerando que existem algumas coisas que não podemos mudar, temos que aceitá-las – resignar. No segundo momento, é certo que deve vir a resiliência – superar, lidar com a situação, agir. Sem ela – a Resiliência, em analogia ao seu texto, restaria-nos apenas sobreviver e, não, viver.

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