terça-feira, 20 de setembro de 2011

O que nem precisa ser dito

Gosto mesmo daquilo que é sugerido, que está oculto nas entrelinhas, levemente indecifrável. Admiro os artistas que têm a capacidade de sugerir, mais do que explicar ou detalhar minunciosamente. Gosto daqueles que conseguem propor um tema e, generosamente, permitem que seu interlocutor - seja ele leitor, ouvinte ou espectador - vá além, pense, elabore ou recrie livremente.

Quem nunca se pegou cantarolando o Canon de Pachelbel? Tá, você pode até não lembrar agora... Mas se ouvir - e tenho certeza de que já o fez alguma vez na vida - vai se lembrar. E quantos "improvisos sobre o tema", tão incríveis quanto o original, surgiram depois? De interpretações sóbrias e belas de David Lanz e Rick Wakeman, a surpreendentes, viscerais e vigorosas, gravadas com webcams e divulgadas via YouTube, de Trace Bundy, JerryC e Mattrach.

Não sei dizer se Pachelbel e outros autores deste tipo de obra, que convida à recriação, o fazem de forma intencional, ou se têm consciência de que estão sugerindo, em vez de explicar minunciosamente o que desejam retratar - e que, exatamente por isto, as tornam tão especiais e tão aptas a receberem recriações.

Dá pra escrever um livro inteiro tendo como base só um verso de música: "Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu", de Chico Buarque, ou "Quantas canções que você não cantava, hoje assobia pra sobreviver?", de Oswaldo Montegro. É aquele tipo de música que, quando acaba, você se pega com o olhar perdido, pensando em tudo o que ela disse, mesmo sem ter dito tudo. Ou então, aquela cena de "Central do Brasil" em que Fernanda Montenegro chora em silêncio, enquanto olha pela janela do ônibus para a aridez do sertão e daquelas vidas. Quanta coisa se diz naquela cena, sem uma palavra sequer?

Recentemente fui ao MASP com minha família. Lá ficamos por várias horas, olhando atentamente diversas obras, de grandes artistas. Algumas, com mais de 500 anos, de nomes internacionalmente famosos.

Mas foi uma delas, justamente de um artista do qual nunca tinha ouvido falar, Gregório Gruber, que mais me chamou a atenção naquele dia. Ao contrário das mais famosas, que mostravam retratos meticulosamente feitos à perfeição, esta mostra uma cena simples, em que não se enxerga os rostos dos retratados. Um visual quase voyeurista de um casal na cama, em silêncio, à luz da manhã.

Que título você daria a esta imagem?
Obra de Gregório Gruber, 1977


Antes de ver o nome da obra, fiquei me perguntando qual título eu teria dado a ela. Sondei minha esposa e descobri que ela teria dado um título totalmente diferente do meu. E provavelmente outras 100 pessoas teriam dado outros 100 nomes, exatamente porque aquela imagem não descreve nada nos mínimos detalhes; apenas mostra um fragmento de tempo, que convida quem o vê a imaginar o antes e o depois, se assim desejar.


Me peguei também pensando que outras cenas poderiam ter este efeito. Talvez os olhos opacos e alegres de um idoso que ri atrasado de uma piada? Ou uma bela moça olhando-se no espelho pela primeira vez após cortar os longos cabelos, deixando o colo à mostra, talvez por não ter nada a esconder - ou não querer que acreditem que tem? Ou então um jovem rapaz com o cenho franzido, lendo um livro sentado sozinho à mesa de um restaurante vazio? Ou o rosto travesso de uma criança lambendo os dedos gordinhos lambuzados de chocolate, roubado da cobertura de um bolo ainda quente?

Acho particularmente perceptível esta sensação quando escuto certos instrumentos musicais. Poucas coisas são mais singelas e ao mesmo tempo tão preenchidas de significado quanto uma nota grave e longa em um cello, ou o som de uma gaita de fole, que parece carregar milênios de história em cada sopro, ou o introspectivo e indecifrável som do duduk, uma espécie de flauta de origem armênia, que não se escuta normalmente em rádios com músicas tão sutis quanto o bate-estacas de um prédio em construção no sábado pela manhã. Nah! A eloquência, meus amigos, está nas nuances, no que não é completa e facilmente decifrável.

Apesar de apreciar o poder da sugestão e das sutilezas, nunca fui bom nisto, devo confessar. E, para falar a verdade, há uma área em que faço questão de evitá-la por completo: no compo profissional. No trabalho, sim, sou direto. Sim, sou explicativo. Podem dizer que falo ou explico demais; mas não podem me acusar de não ter trocado as informações de que preciso, ou que sei que os outros precisam.

Recentemente participei de um evento, no Rio de Janeiro, em que o palestrante era um gringo, o presidente mundial universal mega power blaster de uma grande multinacional. Todos estressados, para que tudo saísse bem. Ok, é de se compreender. Desde a véspera, perguntavam-se: "Ele vai ter algum PowerPoint?". Esta informação era importante, para saberem se seria necessário providenciar tela, projetor, notebook, controle remoto e blá, blá, blá. "Não sabemos. Então, vamos trabalhar como se tivesse. Amanhã, quando ele chegar, teremos a confirmação". Tá certo.

Como ele chegou e não entregou nenhum pen drive a ninguém, deduziu-se: "Não haverá PowerPoint". Desmonta-se tudo, faltando 5 minutos para começar o evento. Ele sobe ao palco. "Bom dia a todos. Hoje vou falar com vocês sobre blá, blá, blá. Vamos ver o PowerPoint agora?". Enviou-se, então, um e-mail para a assistente do cara, a meio mundo e 4 fusos horários de distância, para pedir o tal PowerPoint, que possivelmente estava com ele o tempo todo.

Como eu não tinha nada a ver com a história, nem me estressei. Apenas ri. Não seria mais fácil alguém da equipe dele chegar e simplesmente perguntar "Amigão, você vai ou não usar um PowerPoint?". Será que ele se incomodaria tanto assim de responder a uma pergunta tão incrivelmente simples? Por quê tanto medo de se comunicar?

Adoro sutilezas. Adoro. Mas, como adultos, precisamos saber quando utilizá-las e apreciá-las e quando evitá-las por completo. Elas são bem vindas quando se ouve um cello de olhos fechados, quando se quer deixar algo nas entrelinhas para que alguém capte e sorria em silêncio, ou quando uma mulher opta por um decote muito discreto, sugerindo sem escancarar. Mas há situações - e o patético episódio com o presidente super hiper mega no Rio de Janeiro foi um claro exemplo disso - em que não há espaços para sutilezas, nem dúvidas de qualquer tipo.

Saber quando e como se utilizar destas sutilizas é o que torna certas pessoas mais ou menos interessantes. Ou mais ou menos estúpidas - em horário comercial ou fora dele.

Em tempo: o título original da imagem de Gregório Gruber é "O Casal". Simples assim. Talvez exatamente para que seu olhar fique livre o suficiente para criar sobre ela um título completamente diferente do meu.




2 comentários:

  1. Acabei de compartilhar no FB. Como lá tudo é efêmero, melhor registrar aqui o que eu disse: "Os textos do Heleder são sempre um carinho no coração da gente."

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  2. Curti, mano!
    Abraço,
    Heber

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