domingo, 23 de outubro de 2011

Ame-me S.A.

"Deveríamos fazer do comum algo de extraordinário e então nos surpreenderíamos descobrindo que está muitas vezes perto de nós a fonte de prazer que buscamos em algum lugar distante e difícil. Estamos muitas vezes a ponto de pisar na maravilhosa utopia mas acabamos a olhar por cima dela com o nosso telescópio."

Ludwig Tieck

Viagens são sempre fontes interessantes de inspiração, porque nelas podemos ver coisas que habitualmente não vemos em nosso, digamos, próprio ninho.

Recentemente, em mais uma viagem a trabalho para os EUA, me peguei folheando a revista de bordo da Continental Airlines, e vi anúncios que já haviam chamado minha atenção em outros voos (que continuo achando estranhíssimo escrever sem acento), mas que não vi em nenhum outro local: propaganda de... como definir?... agências de encontros para executivos, que pagam para serem entrevistados e terem seus perfis submetidos aos "matchmakers" profissionais, que agendam, então, encontros com pessoas que sejam perfeitamente adequadas às suas expectativas e (supostas) necessidades.

Havia vários anúncios de diferentes empresas especializadas neste serviço na mesma revista. Mas o que mais me chamou a atenção foi o de uma chamada "It's Just Lunch" ("É Só Um Almoço"), que chegou quase a falar em "Encontro Orientado a Resultados", com termos realmente ligados ao mundo dos negócios: "sucesso", "custo-benefício,  "maximizar", "pró-atividade", etc - referindo-se aos encontros que eles arranjam para quem acredita não ter tempo a perder.

Achei isto tão engraçado, quanto obtuso. Para poder atrair essas pessoas para relacionamentos, precisa-se empregar os únicos termos aos quais elas sabem prestar atenção, fruto de uma vida que se resume a trabalhar e mais nada. Talvez o público-alvo deste tipo de anúncio tenha tornado-se incapaz de pensar em relacionamentos humanos sem recorrer a estes mesmo paradigmas - os únicos que realmente domina.

Mas, além desta constatação um tanto quanto óbvia, acho que há mais um detalhe particularmente preocupante neste tipo de serviço, nas expectativas que ele se propõe a satisfazer e, principalmente, no tipo de público que ele demonstra existir: um batalhão de pessoas afetadas pelo que apelidei de "Síndrome de Eldorado" - o sonho do Príncipe Encantado, da Mulher dos Sonhos, da Terra Encantada. "Eu sei que meu tesouro existe em algum lugar. Então, por favor, ache o mapa e leve-me até lá voando de primeira classe. Acorde-me quando chegarmos".

Uma agência que detecta precisamente o que você quer - e nós sabemos como os gringos sabem ser metódicos neste tipo de análise - pode definir que você é uma pessoa alegre, que gosta de música e prefere mulheres com cabelos compridos e loiros, pele clara, de 1,65m a 1,70, entre 25-28 anos, com belas curvas, sem vícios, e que pretenda constituir família só depois dos 35 anos. Ok. Nada de errado. Essa é sua mulher dos sonhos. Mas, ao definir um perfil tão específico, podem excluir aquela morena magrinha, mais alta e mais velha que você, um pouco nariguda, que gosta mesmo é de acampar e não dá a mínima para que carro você tem - e que pode te fazer muito mais feliz do que a loira, mesmo sendo "matematicamente" menos compatível.

Será que o tal Eldorado não estaria demasiadamente definido para essas pessoas? Será que a vida amorosa não merece ser só um pouquinho mais, digamos, levada pela própria sorte, em vez de arranjada por alguém? Será que Freddie Mercury estava mesmo certo quando cantou "Can anybody find me somebody to looooooove?".

No fundo, acho que as pessoas que buscam este tipo de serviço procuram a própria imagem no espelho (talvez "Síndrome do Espelho, Espelho Meu" seja um nome melhor do que "Síndrome de Eldorado", não sei). Mas como será que se comportam ao perceberem que este reflexo idêntico de si mesmas talvez não exista, especialmente depois de sofrer as mudanças que o tempo inevitavelmente promove, no rosto e na alma?

A fase da paixão, em uma relação surgida por estes meios, deve ser ótima: uma sucessão de "Nossa, como somos parecidos! É incrível!". A fase da paixão é aquela em que o casal deseja ser uma coisa só; a paixão funde as pessoas. O que você quer, eu quero. Do que você gosta, eu gosto. O que é você, sou eu.

Quando comecei a namorar minha esposa, ela comprou 3 CDs de artistas que estávamos descobrindo juntos: Loreena McKennit, David Lanz e Ottmar Liebert. No dia seguinte, eu fui lá e comprei os mesmos 3 CDs para mim. Eu queria ouvir exatamente o mesmo que ela estivesse ouvindo. Estávamos, ainda, na fase de "ser uma coisa só". Tolo, eu sei. Verdadeiro, mesmo assim.

Mas, depois que a paixão passa - e ela passa - o casal não tem mais necessidade de ser uma entidade única e indivisível. O amor é mais tolerante, mais plural e mais generoso, e permite que as pessoas voltem a ter suas próprias individualidades. Um gosta mais de comédia romântica, o outro, mais de filmes de arte. Um resolve assistir ao jogo no domingo à tarde, o outro vai ler um livro. Um decide que precisa emagrecer uns quilinhos, o outro vai malhar para ganhar massa muscular. Hoje, eu e minha esposa ouvimos músicas bem diferentes. Voltamos a ser 2 pessoas, em vez de uma única "entidade passional".

Como será este processo nestas relações que partem do pressuposto que a compatibilidade é total, perfeita e, por isso, eterna? Como será para eles se depararem com o "Péra aí! Como assim você não é exatamente igual a mim?!". Imagino que seja mais difícil do que para o resto das pessoas, cujas relações nascem de formas mais convencionais, menos meticulosamente planejadas e, supostamente, menos talhadas à perfeição.

Sinceramente, não acredito em destino, em alma-gêmea, nem em "feitos-um-para-o-outro-para-toda-a-eternidade". Mário Quintana certa vez escreveu que "O destino é o acaso atacado de mania de grandeza". Concordo. Acreditar que "o que tiver que ser será" de uma certa forma nos exime de qualquer responsabilidade pelas decisões, pelos acertos e pelos erros da vida e de suas relações. Me parece confortável demais... Acredito, isto sim, em relações em que a decisão de se permanecer junto é renovada, dia após dia, não por "estar escrita para ser assim", nem por ser perfeita, mas por valer a pena, por ser feliz.

Não, Eldorado não existe. O que existem são dias de claro e dias de escuro, dias de fome e de excesso, de risos e de lágrimas, de gritos e de sussuros. Dias alegres e dias tristes. Acredito que é na linha fina e sutil entre estes dias que a felicidade se equilibra.

O homem bonito, sensível, romântico, bem-sucedido, bom amante, bom pai, esportista, que adora dançar e cozinhar, alegre e afetuoso, existe, sim. E também existe a mulher linda, atraente, inteligente, engraçada, sedutora e dedicada. Mas ele tem chulé, e ela ronca - o que não os impede, em absoluto, de serem felizes juntos, mesmo que não tenham precisado de alguém para agendar a entrada de um na vida do outro, pontualmente às 12h15, para um almoço com hora certa para acabar.

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