segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Ensaio Sobre a Saudade

Para a nossa pequena Schatzi, que nos deixou olhando nos olhos de Deus


Confesso: tomo refrigerante todos os dias. Sou praticamente uma formiga bípede (tá... com alguns quilinhos a mais) e adoro qualquer coisa que seja doce. Mas, pelo menos, tomo refri diet - o que, espero, torne meu pecado mais light. Mas não é comum eu tomar guaraná. Gosto, gosto bastante. Mas, às vezes, simplesmente me esqueço dele, e fico meses sem tomar.

Escrevo este texto no início de um voo (é tão estranho escrever "voo" sem acento, né?) entre Nova Iorque ("Iorque" também é estranho) e Los Angeles, numa linda manhã de sábado, no recém-iniciado outono no hemisfério norte. E, aqui, numa companhia aérea americana, em que qualquer coisa sólida é servida por uma aeromoça apenas razoavelmente cortês, mediante pagamento com cartão de crédito, resolvi apenas beber alguma coisa. E me deu vontade de beber o quê? Guaraná. É claro que não há. Tomei, então, suco de maçã, que, ironicamente, percebo agora ter a mesma cor.

Já tive este desejo outras vezes, especialmente quando retorno de viagens internacionais. Passo meses sem tomar guaraná na minha terra, mas fico uma semana entre os gringos, e volto sedento. E, depois de saciado, passo meses de novo sem tomar.

Isso me faz pensar sobre o marido que trabalha em outro estado, e só vê a família aos finais de semana. Ele passa a semana fora, mas está com a cabeça em casa, na mulher e nos filhos. Aí, sexta à noite, ele chega finalmente em casa. Mata a saudade por 30 minutos durante o jantar, e como sobremesa, vai passar 1 hora no Facebook, ou jogando vídeo-game, ou lendo um livro - sem a mulher e sem os filhos, nos quais pensou a semana toda.

Ou, ainda, imagino a adolescente que foi passar o feriadão com os amigos e volta com saudades da mãe. Mas, no momento em que pisa no "Bem Vindo" desbotado, escrito no tapetinho que fica na porta de entrada de casa, se lembra de como acha sua mãe brega e como ela pega no seu pé por pequenas coisas. E não diz a ela o que pensou no sábado à noite, logo antes de adormecer: "Estou com saudades da minha mãe".

Por que será que essas coisas acontecem? Por que será que as urgências da saudade se dissolvem quando voltamos a ter ao alcance das mãos aquilo que a desperta? Acho que é porque a saudade pressupõe ausência. Em geral, não se sente saudades daquilo que se tem. Ninguém sente fome de barriga cheia. Ninguém boceja depois que já adormeceu. Sente-se saudades daquilo que não há - ou uma saudade antecipada daquilo que não haverá em breve.

É por isto que eu valorizo os momentos de ausência. Não, não quero estar longe das pessoas e coisas que gosto. Mas, quando a ausência delas é inevitável - aqui no avião, por exemplo - aproveito para pensar no quão importante são. Esta é a parte fácil. O difícil é, no dia-a-dia, de volta à rotina, mostrar a elas com todas as letras e cores, o valor que têm - e ouvir delas o porquê de sentirem saudades de mim, também.

Há situações, no entanto, em que "mostrar e ver" as saudades, são coisas impossíveis de se fazer. Este é o maior de todos os meus medos, e uma ideia com a qual lido terrivelmente mal: o medo da saudade final; a saudade definitiva; a saudade daquilo que não volta nunca mais; a morte (dos outros, não a minha). Sou completamente despreparado e covarde para isto. Porque a saudade, não se pode evitar. Você pode evitar a raiva, a alegria, o tesão, o medo (ou suas causas), o prazer. Mas não conseguirá fugir da saudade daquilo que ama.

Vi meu avô Conde pela última vez nas Festas de 1998. Ele tinha Alzheimer, e certamente já não sabia quem eu era. Mas me abraçou, longamente, enquanto eu chorava aquela tal saudade antecipada - porque sabia que não voltaria a passar um Natal com ele, morando eu tão longe. Ele veio a falecer alguns anos depois. Até hoje, sonho com ele de vez em quando e acordo sempre chorando, não mais a saudade antecipada, mas agora a palpável saudade insolúvel.

Mas há também um outro tipo de saudade: a que acontece na presença. Aquela que a mulher sente do marido de quando ele pesava 15 quilos menos, jantava com a TV desligada e voltava para casa trazendo flores, na noite de uma quarta-feira chuvosa. Ou a saudade que ele sente da época em que ela o desejava incondicionalmente, a qualquer hora, e não só entre as 23h45 e 23h57 dos dias pares de lua minguante, em meses de 31 dias de anos bissextos, com temperatura entre 22 e 26 graus, em condições ideais de pressão e temperatura. Continuam juntos, se veem, mas um sente falta da pessoa que o outro um dia foi. Cruel, real e, talvez, um tanto egoísta... Porque é fácil apontar no outro o que ele já não é mais, sem perceber em si próprio o que também há tempos não existe.

É... mas, no fundo, embora esteja presente a pessoa, neste caso a saudade continua sendo daquilo que ela deixou de ser. Aqui também há ausência. Me contradigo, portanto: esse negócio de "saudade na presença", acho que não existe, não. Saudade é mesmo na ausência, ou na antecipação dela.

É... é realmente impossível tentar evitar as saudades, que tanto temo. Esta é uma luta perdida antes mesmo de começar. A beleza provavelmente está em viver momentos memoráveis - ainda que triviais - com pessoas especiais, que tornem a saudade não apenas inevitável, mas preenchedora do vazio que a motiva. Como uma música que termina, mas continua tocando na alma. Ou, então, que a saudade seja propulsora de um movimento que a satisfaça, que a cure, se isto for possível. Como um instrumento que ainda se possa tocar, para em seguida renovar as saudades, quando a música voltar a acabar.

Rubem Alves, em seu livro "O Deus que Conheço", diz que "Deus mora no espaço entre as pessoas que se amam". Nunca ouvi uma definição melhor de Deus do que esta. Quem sabe, portanto, sentir saudades de alguém, seja, na verdade, olhar nos olhos de Deus, com a certeza de que a vida teve algum significado maior.

Já cheguei a Los Angeles. E, muito triste e curiosamente, enquanto pensava no encerramento para este texto que fala de saudades, acabei de receber por telefone a notícia de que minha cachorrinha morreu. Schatzi era o seu nome. Quer dizer "tesourinho", "queridinha", em alemão - um nome perfeito para ela. Estava velhinha, mas saudável. Morreu sozinha, dentro de casa, sem que saiba-se dizer o porquê.


A Schaschá, como costumávamos chamá-la (ou Schacão, como eu chamava quando queria sacaneá-la), é o típico exemplo de "amor que eu devia ter demonstrado em vida". Sempre gostei dela, mas descobri-me alérgico aos seus pelos, e mantive dela uma certa distância física. Brincava, cantava músicas e a atazanava, escondendo bolachas nos meus bolsos e pela casa, para que ela as encontrasse... Mas a afaguei muito menos do que ela gostaria e merecia. E agora, na hora da saudade definitiva e insolúvel, é tarde demais. Seu pelo macio, que acariciei longamente há exatamente uma semana, como há muito não fazia, agora ficará só lembrança, acompanhada de uma sensação incômoda de que eu talvez pudesse tê-la feito um pouco mais feliz todos os dias.

Mesmo assim, a Schaschá sempre me adorou. Muito mais do que mereci. E agora, nos deixou aqui, com saudades, olhando nos olhos de Deus. Ela, e imagino que também quase todos os cãezinhos que existiram, mesmo merecendo donos melhores do que fomos capazes de ser, nos amaram nos limites de seus coraçõezinhos. Que belo jeito de se viver: amando incondicionalmente.

Desculpe-me por não estar lá com você, Schaschá. Desculpe-me por ter saído de viagem correndo, sem nem me despedir de você. Desculpe-me por tudo o que eu podia ter feito e não fiz. E obrigado por ter sido tão... tão você, minha amiguinha querida. Você sinceramente não poderia ter sido melhor do que foi. Te encontraremos em sonhos, e é provável que choremos quando isto acontecer. Será sinal de que você permanece viva em nós. A isto, chamamos Saudade.






5 comentários:

  1. Helder, lindo texto!
    Acho que esse medo da saudade deve servir pra ficarmos atentos e não deixarmos de fazer, dizer ou demonstrar o nosso amor e alegria em termos quem amamos por perto.
    Se fizermos, sempre, tudo que pudermos, no final, teremos nossos corações em paz.
    Adorei! Como sempre!
    beijos,
    Olivia

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  2. Saudades!!!!
    Palavra composta de quatro vogais e quatro consoantes, que quer dizer tudo e não diz nada.

    Na saudade está o silêncio... será que se escreve saudades com S de silêncio?

    Quem inventou está palavra?
    Será que sabia quantos sentimentos existia neste conjunto de letras?

    Saudades, palavra tão pequena... que cada vogal ou consoante teriam infinitas explicações, descreveria infinitos sentimentos....

    Saudades!!!!!
    Será o S do silêncio?
    Ou o S de sofrer?
    Ou o S de Será?

    Será que a palavra saudades, esta relacionada com sonhar?
    Será que significa voltar?
    Ou saudades é um eterno esperar........

    _________________________________________________

    Helder,

    Adorei o seu texto e localizei esta poesia sobre a Saudade!!! Achei lindo e quis compartilhar contigo.

    um grande beijo,


    MPacce

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  3. Puxa Heldão, a Schaschá deixou mesmo saudades.

    Lindo o texto mano...saudades suas por sinal, saudade do nosso beliche e das nossas bicicletas e de New Orlenas!

    Beijo pra vocês

    Heber

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  4. Lindo texto... realmente temos que demonstrar nossos sentimentos a todo momento, aproveitarmos cada minutinho, Porque as vezes perdemos a oportunidade ai pode ser tarde... é melhor sentir saudade mas sabendo que tudo que esteve ao nosso alcance ou demonstrado em vida foi realizado. ai é muito bom sentir saudade.... bjs Primo Halessandra Conde

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  5. Grande Helder!
    TEnho que reconhecer, saudade é uma constante em minha vida, e o seu texto "deu voz" à ela!
    Parabéns, grande abraço!
    Alex LM

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