sexta-feira, 18 de abril de 2014

Imperfeição Divina

"Deus nos deu asas.
As religiões inventaram as gaiolas."
Rubem Alves

"And I believe in miracles
Something sacred burning in every bush and tree"
Steve Earle, em "God is God"
Ouvir no YouTube, cantada por Joan Baez

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No dia em que entendi a Teoria da Evolução das Espécies, publicada por Charles Darwin em meados do século XIX, minha visão sobre o mundo mudou. Assim, de repente. Eu tinha de 15 para 16 anos, aproximadamente 130 anos depois de sua publicação.

Não, meu amigo leitor, este texto, escrito na Sexta-Feira Santa de 2014, não será sobre ciência, mas sobre como eu vejo Deus. Mas não será também um texto sobre religião. De modo algum. Na verdade, será sobre a beleza da diversidade e daquilo que é inevitavelmente imperfeito. Tenha paciência, leia até o fim e me diga se concorda ou não comigo.

Não sou biólogo, mas com o auxílio de uma, e sem deixar de usar minhas próprias palavras, entendo que a Teoria da Evolução, em síntese, afirma que as características de um indivíduo de uma certa espécie que, por qualquer motivo, representem vantagens para a sobrevivência em um certo ambiente, e sejam transmitidas a seus descendentes, prevalecerão. Até aí, parece óbvio.

No entanto, o que a maioria das pessoas não entende - ou não quer entender - é a incômoda ideia de que não há "propósitos". Pode ligar a TV em qualquer canal em que se fale sobre vida - Animal Planet, Discovery, NatGeo - e todos os dias vocês ouvirá algum locutor falar que "a águia tem olhos incrivelmente precisos para poder ver suas presas desde grandes distâncias", ou que "o urso polar tem uma espessa camada de gordura para protegê-lo do frio extremo", ou que "o tamanduá tem uma longuíssima e áspera língua para penetrar nos formigueiros e extrair seu alimento". Não! Isto está absolutamente errado.

A palavra "para", em cada uma dessas frases - e em quase todas quando se explica a vida - dá um senso incorreto de "propósito", de "intencionalidade". É como se algo ou alguém tivesse decidido que uma certa mudança acontece com um objetivo definido, para se chegar a um efeito pré-desejado. Isto está simplesmente errado.

Seguindo este raciocínio, se eu fosse abandonado peladão no meio do deserto da Sibéria, no norte da Rússia, e, de algum modo, desse um jeito de sobreviver e ainda tivesse a sorte de arrumar uma louca para comigo ter filhos, talvez eles - ou nossos netos, ou nossos bisnetos ou nossos tataranetos - necessariamente teriam mais pelos no corpo, ou mais gordura, ou se tornariam naturalmente imunes aos efeitos do frio extremo.

Ou, se o mundo por algum motivo ficasse submerso e alguns de nós sobrevivêssemos, nossos descendentes criariam nadadeiras ou aprenderiam a respirar embaixo d'água pelo simples fato de que, afinal, "é o que temos para hoje": água

Ou, como alguns dizem por aí há anos, "as próximas gerações de humanos não terão dentes, porque nossos alimentos estão cada vez mais macios, e não precisaremos mais deles para mastigar no futuro".

Sério? Tudo errado. Tudo errado. A "adaptação" (para usar o termo técnico) só se caracteriza como tal depois que representou uma vantagem; não acontece para que a vantagem apareça.

O urso polar está vivo porque tem a capa de gordura. O tamanduá está vivo porque tem a língua comprida. A águia, porque enxerga bem. Porque, se não enxergasse, daria de cara no chão cada vez que tentasse um ataque... ou atacaria uma pedra movida pelo vento.

É completamente diferente! O urso não criou a camada de gordura para sobreviver ao frio. Na verdade, ele sobrevive ao frio porque tem a camada de gordura. As coisas não acontecem "para"; elas acontecem "devido a". Não há intenção. Não há propósito. Há apenas consequência, efeito.

Algum urso polar talvez um dia tenha nascido com um defeito que fazia com que ele produzisse menos gordura. E morreu. E talvez uma águia tenha nascido míope. Ou um tamanduá, sem língua. Morreram, todos. Ou então, nasceu um urso com faro melhor, visão melhor, maior tolerância ao frio, mas estéril. E suas vantagens simplesmente não seguiram adiante - e não se repetiram em mais nenhum outro urso. O certo que deu errado.

Isto significa, portanto, que só vemos o que "deu certo". Todas as espécies que vemos todos os dias, todas as plantas, os cachorros, os gatos, os malditos pernilongos e as baratas que aparecem correndo à noite perto do lixo, são seres que "deram certo" em seus respectivos ambientes. Porque os que não deram, morreram.

Ora, então quer dizer que estes que "deram certo", são perfeitos, certo? Estamos olhando para a perfeição da criação divina - afinal, estamos olhando para "os escolhidos"! Errado.

Se tivermos em mente que mais de 99% de todas as espécies que já existiram na história estão extintas - a grande maioria, muito antes de existir o mais primitivo rascunho do homem - vamos parar para pensar que os "perfeitos", em algum momento, deixaram de sê-lo. A imensa maioria do que deu certo, já não existe mais. E não estamos falando de aberrações, nem de "erros" da natureza, não! Estamos falando de gigantes carnívoros, de insetos do tamanho de ônibus, de peixes fortes e resistentes, de todo tipo de seres que, em algum momento, reinavam absolutos, "perfeitamente" adaptados ao seu ambiente. E, uma dia, deixaram de ser. Ou foram superados por outros que, afinal, mostraram que os perfeitos... bem, não eram tão perfeitos assim.

O que isto quer dizer? Pare e pense um pouco. Quer dizer que não há perfeição, assim como não há propósito! Afirmar que "A Natureza é Perfeita" é, portanto, um erro.

O que há, sim, é uma alteração contínua de circunstâncias que, ao longo de milhões e milhões de anos, esculpe a vida e a torna tão incrivelmente diversa e bela, com base na mais incômoda de todas as variáveis: o acaso. Muitas mudanças acontecem, sem que saiba exatamente se serão úteis ou não. Algumas delas podem ser importantes o suficiente para representarem vantagem e, com sorte, serem passadas adiante; ou simplesmente indiferentes a ponto de não inviabilizarem a vida, e serem levadas adiante, mesmo que inúteis.

Somos, portanto, uma sucessão de acasos que deram certo ou que, na melhor das hipóteses, não atrapalharam. Pelo menos, não por enquanto.

Vamos levar o raciocínio adiante e sair do campo da Biologia, para o da Astronomia. E, em seguida, a Deus.

Nosso Sol é pequeno se comparado a outras estrelas. E ainda é relativamente jovem. Completou apenas um terço do seu "ciclo". Ao longos dos próximos bilhões de anos, vai esquentar muitíssimo a ponto de fazer toda a água da Terra evaporar e fazer sua atmosfera escapar para o espaço. A vida estará inviabilizada muito antes que ele, o Sol, daqui a 5 bilhões de anos, cresça a ponto de finalmente engolir a Terra. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Literalmente.

O mesmo Sol que permite à vida existir, vai inviabilizá-la. E depois, ironicamente, ele próprio vai morrer.

Mas não há com o que se preocupar. Assim como os outros 99% das espécies que já existiram, nós provavelmente estaremos extintos muito antes disso. Porque não somos perfeitos, nem indestrutíveis.

Deprimente? Nem um pouco. Apenas põe as coisas em uma belíssima perspectiva. Falo sério. Belíssima. Vamos falar de Deus, então.

As pessoas veem Deus como um Pai. É o senhor de voz grave, idoso, corpulento e sábio, que interfere, salva, decide, pune e premia. Veem-no como a imagem da perfeição.

Mas, se 99% das Suas criações na Terra já desapareceram, que perfeição é esta? E por qual motivo criaria um sol para aquecer e em seguida engolir a casa de Seus filhos, incluindo Sua "melhor criação" - os humanos? E por qual motivo criaria um universo tão vasto, mesmo sabendo que sua melhor criação nunca chegará a conhecê-lo por completo?

E se falarmos de méritos e de castigos? O que fizeram de tão mal aquelas pessoas que morreram em tsunamis e terremotos? E que perversas devem ser aquelas crianças africanas famintas, para serem tão severamente punidas! E que pouca fé deve ter aquela senhorinha beata, cuja netinha morreu de câncer, apesar de todas as suas orações e promessas sinceras!

Acredito piamente em Deus. Mas não nesse. Não posso acreditar na figura de um pai que beneficia tanto alguns filhos, enquanto pune outros que nem conhecem os próprios erros.

Não posso acreditar na figura construída de um Deus que aplaude o sacrifício e renega o prazer. Rubem Alves, em "Variações sobre o Prazer", faz-nos uma pergunta inquietante: "Será que Deus fica feliz quando vê os seres humanos sofrendo? Digo isso pelo fato de que os fiéis, ao fazerem promessas a Deus para obter seus favores, o que lhes oferecem são sempre objetos dolorosos. Nunca ouvi de um devoto que tivesse oferecido a Deus uma sonata de Mozart ou um poema de Fernando Pessoa. A Igreja ensinou que o prazer é o ninho do pecado. Como se o mundo fosse um imenso jardim cheio de árvores com frutos doces e coloridos, com placas em todas dizendo: “Proibido”.(...) A espiritualidade que nos ensinaram foi construída sobre a negação do prazer. O caminho da santidade é o caminho do sofrimento".

Caramba, se há tanta gente sofrendo, por que essas pessoas não são beneficiadas com o que o sacrifício lhes confere aos olhos de Deus? E o que fiz eu e minhas filhas, tão privilegiados, para merecer tão escancaradamente tantos benefícios em vida?

Não posso acreditar em um Pai tão injusto. Desculpe, mas não. Não posso crer na história de um "Pai implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como todo pai humano que ama sabe fazer), mata o próprio Filho na cruz (...). É claro que quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor, são sempre os pais que morrem para o que filho viva." (Rubem Alves, em "O Deus que Conheço", página 31).

Meu Deus é outro. É o Deus da beleza, da simplicidade, da solução e não da culpa. Do prazer, não da dor. Um Deus que permite viver e experienciar, não limitar e cercear. Um Deus que não pune, nem salva. Não cura, nem mata. Um Deus tão livre que permite à Natureza evoluir sem um propósito pré-definido. Meu Deus não decide que a capa de gordura dos ursos polares será grossa para que vivam no frio, para depois matá-los escaldados sob um Sol voraz. Não. Meu Deus simplesmente é. Ele não faz. Ele não arbitra. As coisas são como são, e pronto.

Acredito no mesmo Deus que Rubem Alves: "Eu amo a beleza da natureza, da música, de um poema. Amo a beleza das palavras de amor que os apaixonados trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto." (em "O Deus que Conheço", página 89).

Meu Deus é a Vida cantada por Mercedes Sosa em "Gracias a La Vida". É o milagre do que é trivial, do que teima em dar certo por um certo tempo, mesmo havendo tanto para dar errado. Meu Deus não nos escolheu para estarmos neste planeta, e provavelmente criou outros tantos iguais a este, aos quais nunca chegaremos. E também os diferentes, aonde, se chegássemos, não seríamos perfeitos o suficiente para neles sobrevivermos. E outros, para sempre desconhecidos, onde talvez Ele tenha "criado" vidas que são tão "suas filhas" quanto nós, mesmo sendo absolutamente diferentes daqueles que se dizem os "perfeitos", criados à sua imagem e semelhança.

Todas essas coisas, eu, você, a barata, a estrela cuja luz nunca chegará à Terra, existem porque existem. Simples assim. Não existem para. Não foram criadas por. Existem porque existem. Só.

E, não importa quão distantes sejam, nem quão inóspitas, nem quão diversas de mim e de você, todas elas são feitas das mesmas coisas, de uns cento e tantos elementos químicos que fazem tudo o que existe, existir - muito além de simplesmente aparecerem naquela tabela periódica que você tentou decorar para a prova de Química e, ainda assim, se estrepou.

Meu Deus está na ideia de unidade que há em tudo isso. Meu Deus está no todo, não na parte. Ou está em ambas, igualmente. Está na beleza de acreditar que essas coisas todas, tão diferentes e tão iguais, vêm de um único lugar, e para ele voltarão um dia. Isto nos faz tão pequenos, ou tão grandes, quanto nosso Sol.

Comecei este texto dizendo que minha percepção mudou no dia em que entendi, quando tinha 15 ou 16 anos, que a imperfeição e os acasos do trajeto são exatamente o que conferem à vida a diversidade e a beleza. De lá para cá (escrevo este texto numa Sexta-Feira Santa, às vésperas de completar 37 anos), não me tornei menos religioso. Apenas mais imediatista, mais sinestésico, mais apegado aos pequenos do que aos grande milagres, mais apegado ao agora do que ao amanhã, mais desejoso da fruta que caiu do pé hoje, do que da que crescerá só na próxima estação. Amante do verão tanto quanto do inverno. E mais crente de que a religiosidade e o divino são um estado de espírito, uma comunhão com a vida, e não uma doutrina com uma série de regras a serem seguidas.

Celebro a Páscoa (daqui a dois dias) por hábito e por respeito àquilo que une tantas pessoas ao redor do planeta, há tantos séculos. E faço-o convicto de que, de um modo ou de outro, rezando para este, para aquele ou para nenhum Deus, somos todos tão diversos quanto irremediavelmente parecidos, transitórios e divinamente imperfeitos.

4 comentários:

  1. Falar sobre Deus é um assunto delicado, porque sempre remete a religião, ao que acreditamos e ao que toca nosso coração e nossa existência.
    É algo individual e único.

    Te dou os parabéns pelos questionamentos e pela forma clara de expor suas crenças de forma tão aberta.
    Não vou te responder se concordo ou não, simplesmente vou respeitar!
    Adorei seu texto...como sempre.

    Feliz Páscoa! É tempo de reflexão e renovação.

    Bjs,


    Martha

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  2. Alguns comentários:
    1) Com o desenvolvimento da epigenética, Lamarck pode não estar tão errado assim, e algumas coisas podem ter um propósito.
    2) O seu Deus aos 37, será o seu mesmo Deus aos 80, na iminência do inevitável? Nossa fé com certeza sofre pressões adaptativas.
    3) Meu Deus é o mesmo que o seu, com seus mesmos 37.
    4) Espero que não sejamos punidos por isso.
    Abraços fraternos e calorosos, cheios de saudade, Paulo Novita.

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  3. Você tem o dom da palavra. Em palavras diferentes das suas, talvez menos poéticas, concordo em praticamente tudo.

    Não há bondade na natureza. Aos olhos de uma criança, uma erupção e seus efeitos é algo terrível, mas sabemos que são forças que, querendo nós ou não, serão liberadas.

    Parabéns pelo alto nível de encadeamento de idéias, é sempre bom ler textos inteligentes.

    Acho que dividimos o mesmo Deus.

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  4. É um bom texto. Admiro sua ousadia de escrever sobre esse assunto. Parabéns!

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