domingo, 9 de novembro de 2014

O Rei do Castelo Móvel


Estava entre os 60 e 70 e tinha desistido de aparar os pelos nas orelhas. Já estava aposentado, mas continuava trabalhando. Achara muito monótona a vida em casa. Não aguentou uma semana sequer.

- Essa porra dessa mulher fala demais! - dizia sobre a esposa. Sempre temperava as frases com um palavrão.

Era um homem franzino, baixo, de pele morena e bigodinho. Apesar de casado há muitos anos, não tinha aquela barriga redonda, característica dos homens que já arrearam a âncora há anos. Mas não fazia atividade física de nenhum tipo. Era magro porque era magro, mesmo. Comia pouco, dormia pouco. Tomava muito café e fumava 2 maços desde os 14 anos. Os dentes amarelos e os dedos longos e finos, encardidos pela nicotina, revelavam o vício, que ele não fazia nenhuma questão de largar.

Era um homem rude. Havia parado de estudar aos 13. Aos 18, tornou-se cobrador e nunca mais deixou de sê-lo. Ficou ali, naquele trabalho, por anos e anos. Acordava às 03h30 e antes do sol nascer já estava circulando pela cidade como um sentinela, no seu assento mais alto, com o couro gasto, revelando um pedaço da espuma. Sentava com as pernas abertas, para não apertar as partes.

Nunca tirou carta de motorista. Nunca se interessou por dirigir. A viagem mais longa que fez, foi para Sorocaba, para o casamento de um primo. Nunca tinha lido um livro e na TV só assistia a 2 canais.

Seu novo chefe tinha 41 anos - a idade do seu filho mais novo - e tinha feito especialização em alguma universidade barata para entrar e cara para sair. Ao assumir o cargo, fez uma reunião com todos os motoristas e cobradores da empresa, numa segunda-feira, dizendo que queria que todos fizessem um novo treinamento de "orientação para o cliente", para melhorar a "experiência dos usuários durante o translado, encantando-os com a eficiência dos serviços".

- Que porra de cliente? Nós temos passageiros! E que porra de translado? Nós fazemos transporte! E que porra de "encantar"? Eu por acaso tenho cara de fada? - disse aos colegas, com seu tradicional mau humor, depois da reunião.

Foi ao treinamento, no dia e horário marcados. Assim que as luzes se apagaram e começou um vídeo intitulado "Você, gerente de si mesmo", levantou-se e foi fumar. Depois, mijar.

- Mulher urina, homem mija - dizia.

Depois, comeu uma coxinha xexelenta e voltou para a sala. Dormiu alguns minutos e, depois que as luzes se acenderam e alguns consultores palestraram durante uns 20 minutos sobre "Interpretação do Perfil de Cliente", ficou repassando mentalmente a escalação do Palmeiras, de 72 a 78. Ao final, respondeu ao questionário, assinalando "Concordo Plenamente" em todos os itens de avaliação de satisfação, só para não ter que explicar do que não havia gostado.

Não precisava de treinamento nenhum. Tinha sido cobrador a vida toda. Não era sua profissão, era parte de quem era. Não mandava em nada na vida, a não ser no seu ônibus. Em casa, quem decidia o que comer era sua mulher. Até o pijama que iria usar, era ela quem deixava em cima da cama. Os filhos decidiam quando iria ao médico. O chefe decidia se trabalharia ou não em um final de semana ou feriado. Até a moça do caixa da padaria mandava nele: tinha decidido que não ia mais vender o estoura peito que ele fumava, e que só venderia a ele um cigarro tipo "light", com menos alcatrão e menos nicotina.

- Cigarro de mulher, essa porra.

Mas, no ônibus, mandava ele. Do seu assento mais alto, falava grosso, para todo mundo ouvir, com sua voz rouca, tipo Adoniram Barbosa:

- Atenção: eu SEI que ainda tem espaço nesse ônibus! E eu não vou deixar essa porra andar enquanto vocês não tiver dado um passo à frente! Então, um passinho à frente, que eu tenho hora para almoçar e fumar meu cigarro "lait"! Alguma dúvida?

Ou, então, nos dias em que tinha enxaqueca:

- Aí, é o seguinte: eu trabalho aqui faz mais de 40 anos e não aguento mais esse barulho dessa maldita dessa cordinha que vocês puxa! Então, NÃO PUXA. Basta fazer "psiu" e eu aviso o motorista, com 3 batidinha no vidro, com essa moeda de 1 real. Ele ouve! Então, para aqueles que não entendeu, vou repetir: Não puxa a corda! Faz "Psiu"! Eu NÃO vou olhar para você quando você fazer "Psiu", porque a) eu não preciso; e b) porque você é feio. Se eu bater na janela com a moeda, é porque ouvi o seu "Psiu". Eu sou velho, mas não sou surdo. Alguma dúvida?

Ou, quando via um malandrão querendo encochar uma moça:

- Um aviso aos passageiros! Eu gosto de mulher e sei que muitos aqui também gosta. Mas não é por causa disso que vamos por aí encochando e desrespeitando as moça. Temos, neste ônibus, neste momento, um vagabundo que está querendo se aproveitar para tirar casquinha das moça. Neste ônibus, não! Quem quer tirar casquinha, vai cutucar ferida. Ou desce do ônibus e pega o próximo. Mas, no meu ônibus, ninguém tira casquinha de moça! Alguma dúvida?

Naquele ônibus, mandava o Tião. Ali, ele era o rei. Ninguém duvidava.

Naquela tarde, horas depois do treinamento, estava sentindo uma dormência no braço esquerdo e uma ardência no peito, que ele tinha certeza que era azia por causa da coxinha xexelenta que comera naquela manhã.

Era infarto. Morreu, no caminho de casa. Tinha renovado o desodorante, antes de sair.

Morreu dentro do ônibus, sem o uniforme de cobrador, sentado, quieto e anônimo, como outros passageiros. O cobrador não o conhecia. Era um rapaz de 18 anos, que tinha acabado de entrar na empresa e não percebeu que ele não estava dormindo. Só se deu conta no ponto final, quando ele não desceu.

Nunca mais se ouvir falar de outro rei de um castelo móvel. Morria naquela tarde Tião, o cobrador-rei, que nunca mandou em nada, que não fosse o seu próprio reino sem súditos. Morreu feliz, convicto do próprio poder. Em paz e em movimento, nômade como seu reino. E disso, ninguém duvidava.

Helder Conde

Um comentário:

  1. Vida simples, morte simples.
    Uhmmm....interessante leitura!

    Bjs,

    Martha

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