sexta-feira, 18 de abril de 2014

Imperfeição Divina

"Deus nos deu asas.
As religiões inventaram as gaiolas."
Rubem Alves

"And I believe in miracles
Something sacred burning in every bush and tree"
Steve Earle, em "God is God"
Ouvir no YouTube, cantada por Joan Baez

.


No dia em que entendi a Teoria da Evolução das Espécies, publicada por Charles Darwin em meados do século XIX, minha visão sobre o mundo mudou. Assim, de repente. Eu tinha de 15 para 16 anos, aproximadamente 130 anos depois de sua publicação.

Não, meu amigo leitor, este texto, escrito na Sexta-Feira Santa de 2014, não será sobre ciência, mas sobre como eu vejo Deus. Mas não será também um texto sobre religião. De modo algum. Na verdade, será sobre a beleza da diversidade e daquilo que é inevitavelmente imperfeito. Tenha paciência, leia até o fim e me diga se concorda ou não comigo.

Não sou biólogo, mas com o auxílio de uma, e sem deixar de usar minhas próprias palavras, entendo que a Teoria da Evolução, em síntese, afirma que as características de um indivíduo de uma certa espécie que, por qualquer motivo, representem vantagens para a sobrevivência em um certo ambiente, e sejam transmitidas a seus descendentes, prevalecerão. Até aí, parece óbvio.

No entanto, o que a maioria das pessoas não entende - ou não quer entender - é a incômoda ideia de que não há "propósitos". Pode ligar a TV em qualquer canal em que se fale sobre vida - Animal Planet, Discovery, NatGeo - e todos os dias vocês ouvirá algum locutor falar que "a águia tem olhos incrivelmente precisos para poder ver suas presas desde grandes distâncias", ou que "o urso polar tem uma espessa camada de gordura para protegê-lo do frio extremo", ou que "o tamanduá tem uma longuíssima e áspera língua para penetrar nos formigueiros e extrair seu alimento". Não! Isto está absolutamente errado.

A palavra "para", em cada uma dessas frases - e em quase todas quando se explica a vida - dá um senso incorreto de "propósito", de "intencionalidade". É como se algo ou alguém tivesse decidido que uma certa mudança acontece com um objetivo definido, para se chegar a um efeito pré-desejado. Isto está simplesmente errado.

Seguindo este raciocínio, se eu fosse abandonado peladão no meio do deserto da Sibéria, no norte da Rússia, e, de algum modo, desse um jeito de sobreviver e ainda tivesse a sorte de arrumar uma louca para comigo ter filhos, talvez eles - ou nossos netos, ou nossos bisnetos ou nossos tataranetos - necessariamente teriam mais pelos no corpo, ou mais gordura, ou se tornariam naturalmente imunes aos efeitos do frio extremo.

Ou, se o mundo por algum motivo ficasse submerso e alguns de nós sobrevivêssemos, nossos descendentes criariam nadadeiras ou aprenderiam a respirar embaixo d'água pelo simples fato de que, afinal, "é o que temos para hoje": água

Ou, como alguns dizem por aí há anos, "as próximas gerações de humanos não terão dentes, porque nossos alimentos estão cada vez mais macios, e não precisaremos mais deles para mastigar no futuro".

Sério? Tudo errado. Tudo errado. A "adaptação" (para usar o termo técnico) só se caracteriza como tal depois que representou uma vantagem; não acontece para que a vantagem apareça.

O urso polar está vivo porque tem a capa de gordura. O tamanduá está vivo porque tem a língua comprida. A águia, porque enxerga bem. Porque, se não enxergasse, daria de cara no chão cada vez que tentasse um ataque... ou atacaria uma pedra movida pelo vento.

É completamente diferente! O urso não criou a camada de gordura para sobreviver ao frio. Na verdade, ele sobrevive ao frio porque tem a camada de gordura. As coisas não acontecem "para"; elas acontecem "devido a". Não há intenção. Não há propósito. Há apenas consequência, efeito.

Algum urso polar talvez um dia tenha nascido com um defeito que fazia com que ele produzisse menos gordura. E morreu. E talvez uma águia tenha nascido míope. Ou um tamanduá, sem língua. Morreram, todos. Ou então, nasceu um urso com faro melhor, visão melhor, maior tolerância ao frio, mas estéril. E suas vantagens simplesmente não seguiram adiante - e não se repetiram em mais nenhum outro urso. O certo que deu errado.

Isto significa, portanto, que só vemos o que "deu certo". Todas as espécies que vemos todos os dias, todas as plantas, os cachorros, os gatos, os malditos pernilongos e as baratas que aparecem correndo à noite perto do lixo, são seres que "deram certo" em seus respectivos ambientes. Porque os que não deram, morreram.

Ora, então quer dizer que estes que "deram certo", são perfeitos, certo? Estamos olhando para a perfeição da criação divina - afinal, estamos olhando para "os escolhidos"! Errado.

Se tivermos em mente que mais de 99% de todas as espécies que já existiram na história estão extintas - a grande maioria, muito antes de existir o mais primitivo rascunho do homem - vamos parar para pensar que os "perfeitos", em algum momento, deixaram de sê-lo. A imensa maioria do que deu certo, já não existe mais. E não estamos falando de aberrações, nem de "erros" da natureza, não! Estamos falando de gigantes carnívoros, de insetos do tamanho de ônibus, de peixes fortes e resistentes, de todo tipo de seres que, em algum momento, reinavam absolutos, "perfeitamente" adaptados ao seu ambiente. E, uma dia, deixaram de ser. Ou foram superados por outros que, afinal, mostraram que os perfeitos... bem, não eram tão perfeitos assim.

O que isto quer dizer? Pare e pense um pouco. Quer dizer que não há perfeição, assim como não há propósito! Afirmar que "A Natureza é Perfeita" é, portanto, um erro.

O que há, sim, é uma alteração contínua de circunstâncias que, ao longo de milhões e milhões de anos, esculpe a vida e a torna tão incrivelmente diversa e bela, com base na mais incômoda de todas as variáveis: o acaso. Muitas mudanças acontecem, sem que saiba exatamente se serão úteis ou não. Algumas delas podem ser importantes o suficiente para representarem vantagem e, com sorte, serem passadas adiante; ou simplesmente indiferentes a ponto de não inviabilizarem a vida, e serem levadas adiante, mesmo que inúteis.

Somos, portanto, uma sucessão de acasos que deram certo ou que, na melhor das hipóteses, não atrapalharam. Pelo menos, não por enquanto.

Vamos levar o raciocínio adiante e sair do campo da Biologia, para o da Astronomia. E, em seguida, a Deus.

Nosso Sol é pequeno se comparado a outras estrelas. E ainda é relativamente jovem. Completou apenas um terço do seu "ciclo". Ao longos dos próximos bilhões de anos, vai esquentar muitíssimo a ponto de fazer toda a água da Terra evaporar e fazer sua atmosfera escapar para o espaço. A vida estará inviabilizada muito antes que ele, o Sol, daqui a 5 bilhões de anos, cresça a ponto de finalmente engolir a Terra. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Literalmente.

O mesmo Sol que permite à vida existir, vai inviabilizá-la. E depois, ironicamente, ele próprio vai morrer.

Mas não há com o que se preocupar. Assim como os outros 99% das espécies que já existiram, nós provavelmente estaremos extintos muito antes disso. Porque não somos perfeitos, nem indestrutíveis.

Deprimente? Nem um pouco. Apenas põe as coisas em uma belíssima perspectiva. Falo sério. Belíssima. Vamos falar de Deus, então.

As pessoas veem Deus como um Pai. É o senhor de voz grave, idoso, corpulento e sábio, que interfere, salva, decide, pune e premia. Veem-no como a imagem da perfeição.

Mas, se 99% das Suas criações na Terra já desapareceram, que perfeição é esta? E por qual motivo criaria um sol para aquecer e em seguida engolir a casa de Seus filhos, incluindo Sua "melhor criação" - os humanos? E por qual motivo criaria um universo tão vasto, mesmo sabendo que sua melhor criação nunca chegará a conhecê-lo por completo?

E se falarmos de méritos e de castigos? O que fizeram de tão mal aquelas pessoas que morreram em tsunamis e terremotos? E que perversas devem ser aquelas crianças africanas famintas, para serem tão severamente punidas! E que pouca fé deve ter aquela senhorinha beata, cuja netinha morreu de câncer, apesar de todas as suas orações e promessas sinceras!

Acredito piamente em Deus. Mas não nesse. Não posso acreditar na figura de um pai que beneficia tanto alguns filhos, enquanto pune outros que nem conhecem os próprios erros.

Não posso acreditar na figura construída de um Deus que aplaude o sacrifício e renega o prazer. Rubem Alves, em "Variações sobre o Prazer", faz-nos uma pergunta inquietante: "Será que Deus fica feliz quando vê os seres humanos sofrendo? Digo isso pelo fato de que os fiéis, ao fazerem promessas a Deus para obter seus favores, o que lhes oferecem são sempre objetos dolorosos. Nunca ouvi de um devoto que tivesse oferecido a Deus uma sonata de Mozart ou um poema de Fernando Pessoa. A Igreja ensinou que o prazer é o ninho do pecado. Como se o mundo fosse um imenso jardim cheio de árvores com frutos doces e coloridos, com placas em todas dizendo: “Proibido”.(...) A espiritualidade que nos ensinaram foi construída sobre a negação do prazer. O caminho da santidade é o caminho do sofrimento".

Caramba, se há tanta gente sofrendo, por que essas pessoas não são beneficiadas com o que o sacrifício lhes confere aos olhos de Deus? E o que fiz eu e minhas filhas, tão privilegiados, para merecer tão escancaradamente tantos benefícios em vida?

Não posso acreditar em um Pai tão injusto. Desculpe, mas não. Não posso crer na história de um "Pai implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como todo pai humano que ama sabe fazer), mata o próprio Filho na cruz (...). É claro que quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor, são sempre os pais que morrem para o que filho viva." (Rubem Alves, em "O Deus que Conheço", página 31).

Meu Deus é outro. É o Deus da beleza, da simplicidade, da solução e não da culpa. Do prazer, não da dor. Um Deus que permite viver e experienciar, não limitar e cercear. Um Deus que não pune, nem salva. Não cura, nem mata. Um Deus tão livre que permite à Natureza evoluir sem um propósito pré-definido. Meu Deus não decide que a capa de gordura dos ursos polares será grossa para que vivam no frio, para depois matá-los escaldados sob um Sol voraz. Não. Meu Deus simplesmente é. Ele não faz. Ele não arbitra. As coisas são como são, e pronto.

Acredito no mesmo Deus que Rubem Alves: "Eu amo a beleza da natureza, da música, de um poema. Amo a beleza das palavras de amor que os apaixonados trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto." (em "O Deus que Conheço", página 89).

Meu Deus é a Vida cantada por Mercedes Sosa em "Gracias a La Vida". É o milagre do que é trivial, do que teima em dar certo por um certo tempo, mesmo havendo tanto para dar errado. Meu Deus não nos escolheu para estarmos neste planeta, e provavelmente criou outros tantos iguais a este, aos quais nunca chegaremos. E também os diferentes, aonde, se chegássemos, não seríamos perfeitos o suficiente para neles sobrevivermos. E outros, para sempre desconhecidos, onde talvez Ele tenha "criado" vidas que são tão "suas filhas" quanto nós, mesmo sendo absolutamente diferentes daqueles que se dizem os "perfeitos", criados à sua imagem e semelhança.

Todas essas coisas, eu, você, a barata, a estrela cuja luz nunca chegará à Terra, existem porque existem. Simples assim. Não existem para. Não foram criadas por. Existem porque existem. Só.

E, não importa quão distantes sejam, nem quão inóspitas, nem quão diversas de mim e de você, todas elas são feitas das mesmas coisas, de uns cento e tantos elementos químicos que fazem tudo o que existe, existir - muito além de simplesmente aparecerem naquela tabela periódica que você tentou decorar para a prova de Química e, ainda assim, se estrepou.

Meu Deus está na ideia de unidade que há em tudo isso. Meu Deus está no todo, não na parte. Ou está em ambas, igualmente. Está na beleza de acreditar que essas coisas todas, tão diferentes e tão iguais, vêm de um único lugar, e para ele voltarão um dia. Isto nos faz tão pequenos, ou tão grandes, quanto nosso Sol.

Comecei este texto dizendo que minha percepção mudou no dia em que entendi, quando tinha 15 ou 16 anos, que a imperfeição e os acasos do trajeto são exatamente o que conferem à vida a diversidade e a beleza. De lá para cá (escrevo este texto numa Sexta-Feira Santa, às vésperas de completar 37 anos), não me tornei menos religioso. Apenas mais imediatista, mais sinestésico, mais apegado aos pequenos do que aos grande milagres, mais apegado ao agora do que ao amanhã, mais desejoso da fruta que caiu do pé hoje, do que da que crescerá só na próxima estação. Amante do verão tanto quanto do inverno. E mais crente de que a religiosidade e o divino são um estado de espírito, uma comunhão com a vida, e não uma doutrina com uma série de regras a serem seguidas.

Celebro a Páscoa (daqui a dois dias) por hábito e por respeito àquilo que une tantas pessoas ao redor do planeta, há tantos séculos. E faço-o convicto de que, de um modo ou de outro, rezando para este, para aquele ou para nenhum Deus, somos todos tão diversos quanto irremediavelmente parecidos, transitórios e divinamente imperfeitos.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Ei, me arruma um probleminha?

- Temos um problema!
- Qual?!
- Como as pessoas vão fazer para entrar na sala?
- Ué... vão entrar pela porta!
- Ah, pela porta... Entendi.
- ...
- E depois que o evento já tiver começado? Por onde entram?
- Pela porta.
- A mesma porta?
- A mesma porta.
- Entendi.
- ...
- Ai, meu Deus!
- O que foi?!
- E aquelas que estejam dentro da sala e precisem sair para ir ao toalete, chupem um Halls preto, falem ao celular, deem uma cambalhota e queiram, em seguida, retornar à sala?
- O que é que têm essas pessoas?
- Como elas fazem para entrar?!
- Deixe-me pensar... Veja... elas entram pela porta, também.
- Também?
- Também.
- Pela mesma porta?!
- Sim, pela mesmíssima porta.
- Ai, isso tudo é tão complicado...

- ...
- E se o Halls for vermelho?!

quinta-feira, 27 de março de 2014

Você ama quem você ama

"If it's who you love, then it's who you love"
John Mayer, cantor e instrumentista americano



Sua vida mudou no dia em que conheceu Apolo. Não era muito alto, nem muito bonito. Mas falava com os olhos e tinha o sorriso mais bonito que já tinha visto. Era amigo da namorada do irmão de uma vizinha, e se conheceram numa festa de aniversário. Mas, passada a festa, ficaram meses sem se falar.

Um dia, acidentalmente, encontraram-se na saída de um show de jazz. Ambos sozinhos. Reconheceram-se e toparam esticar a conversa, durante um jantar. Apolo era cavalheiro e se interessava por cada palavra que saía da sua boca. Conversaram longamente e ali, naquele primeiro encontro, aprenderam um monte de pequenos detalhes um sobre o outro: os medos, as alegrias, o filme predileto, a fruta predileta, as músicas, os livros. Era um homem culto, de muitas leituras e muitas viagens. Falava 3 idiomas. Um homem admirável.

Surgiu dali uma amizade sincera, temperada pela admiração e por um interesse diferente do que conhecera até ali. Voltaram a sair outras vezes. Um dia, foram comer sushi. Em outro, comida francesa. Noutro, massa. Pastel com caldo de cana. Empanada. Parillada. Pato no Tucupi. Vatapá. Baião de dois. Paella. Cebiches. Sauerkraut. Smogasbord. Experimentaram de tudo juntos.

Viram filmes de tudo que foi jeito. Comédias românticas, besteirol, dramas, ação, animação, filmes-cabeça.

Foram a shows, concertos, saraus. Foram ao teatro, a museus, a sebos de livros.

Um dia, por impulso, resolveram que iriam acampar juntos. Decidiram ao meio-dia. Às 18h, estavam na estrada. E ali, nas curvas da estrada já escura, com o confortável silêncio do rádio que já não pegava nenhuma estação, perceberam: estavam namorando. Namorando há tempos. Foi só naquela viagem, meses após terem se conhecido, que passaram a primeira noite juntos, surpresos e nervosos, como se tivessem 10 anos menos do que na verdade tinham.

E assim, seguiram. Namorando e descobrindo semelhanças e interesses. Rolaram novas viagens, novas brigas, saudades, traição, reconciliação, histórias para contar. Havia retratos em comum, só dos dois - sem obrigação de postar no Facebook. Havia amizade, cumplicidade e respeito. E, finalmente, havia maturidade.

Chegou, então, o dia especial. O dia em que Apolo seria pego de surpresa. Talvez fosse ousadia demais... mas era uma coisa que precisava fazer. O momento havia chegado. Não havia dúvidas de que era ele a pessoa com quem gostaria de passar o resto da sua vida.

Encontraram-se e deram um longo abraço, como sempre faziam. Mas, naquele dia, durou um pouco mais. Ficaram ali, abraçados por vários segundos.

- Está tudo bem?! - Apolo perguntou, sem soltar o abraço.
- Preciso te perguntar uma coisa.
- O que foi?
- Vem morar comigo?

O abraço se desfez imediatamente, e o sorriso no rosto de Apolo, com seus olhos arregalados e felizes, dava a resposta esperada.

- Mas é claro que eu vou! - sorrindo, sem acreditar - É claro que eu vou!

Desde aquele dia, Apolo e Rogério estão casados. E vêm tendo dias de alegrias, de dúvidas, de amor, de desejo, de brigas, de ira, de saudades e de distância. Exatamente como o João e a Maria, o Ahmed e a Rebeca, o James e a Esperanza, o Masaharo e a Lin, o Juan e a Severina, a Luana e a Júlia. Exatamente como qualquer outro casal. Absolutamente qualquer outro casal.

sábado, 15 de março de 2014

Andando nas Nuvens

A história é de 2014, mas a foto, de 2008.
A pequena passa creminho nas mãos e aborda o pai:

- Pai, para tudo o que você está fazendo.
- O que foi, filha?
- Você sempre diz que eu sou macia, não é?
- É, você é muito macia.
- Pega nas minhas mãos.

O pai faz aquela encenação, fecha os olhos e move-se em câmera lenta, enquanto segura as mãozinhas.

- É como andar nas nuvens, filha...

quarta-feira, 5 de março de 2014

O Pior dos Elogios

Antes mesmo de nascer, o pai já tinha decidido que o filho seria um conquistador. Deu-lhe logo um nome de macho. Nome curto, forte, que não permite apelidos. Nome de conquistador: Fernão. Nome no aumentativo. Nome de homem decidido, destemido, espaçoso. Fernão. O problema é que o sobrenome, herdado do próprio pai, era no diminutivo: Coutinho. E este prevaleceu: só o pai o chamava de Fernão. Os amigos, irmãos, primos, mãe, o chamavam de Tinho.

Era um rapaz gente boa. Tranquilo, educado, do bem. Talvez fosse mais do que simplesmente educado. Polido? Era gentil e bem-humorado, com uma certa dose de timidez. Ou talvez não fosse exatamente tímido, apenas reservado. Cresceu sem grandes paixões, sem grandes desprazeres, sem grandes aventuras e sem grandes tristezas. Um carinha absolutamente normal, com seus gostos peculiares, suas manias, seu jeitão próprio. Seguro, sem ser impositivo. Tranquilo, sem ser apático. Interessante, sem chegar a sedutor. Normal.

Um certo dia, já adulto, interessou-se por uma bela mulher, inteligente, discreta e interessante, de rosto delicado e lindas pernas. Mulher para se admirar, antes de se desejar. Não era daquelas para sair agarrando e tentando a sorte. Não. Mulher direita, decidida, senhora de si. Mulher que não aceita ser tapeada nem seduzida à toa. Mulher difícil.

Tinho aproximou-se dela devagar, muito devagar, com sorrisos discretos e gentilezas sutis. Demonstrava seu interesse, sem escancarar seu desejo. Percebia nela, sem muita certeza, algum interesse por ele, também. Talvez não fosse exatamente interesse, mas curiosidade. Mas, discreta como era, nunca deu abertura para que ele efetivamente tentasse nada. Talvez porque não quisesse, mesmo. Ou talvez até quisesse, mas nunca demonstrou. E ele, bem, não tentou.

Ficou anos com aquele interesse por ela, sem nunca de fato tentar seduzi-la. Ela já estava até irritada. Era evidente o interesse dele por ela. Por que diabos não a chamava logo para sair? Não para um motel, mas para um jantar! Para um café, uma visita à sua casa? O que diabos ele estava esperando?

Aos poucos, a curiosidade dela, visto que ele não dava o primeiro passo, começou a minguar. Tornou-se apenas uma sensação boa de estar na presença dele, sem que isto nela causasse nenhum calor especial.

Certo dia, percebendo que ela parecia cada vez menos interessada, Tinho tomou coragem e fez um elogio um pouco mais direto. Elogio polido, delicado - não uma cantada. Ele tinha certeza de que as mulheres não gostavam de cantadas, mas de elogios. Ninguém ouviu o que ele disse, a não ser ela. Um elogio lapidado, bem pensado. Um elogio que toda mulher gostaria de ouvir e que ele, cuidadoso, conseguia dizer como nenhum outro.

Ela sorriu com o elogio. Olhou para ele, sorrindo, e fez um carinho em seu braço direito:

- Ai, Tinho. Você é tão bonzinho!

Ela falou assim, mesmo, com rima e tudo. Bonzinho. Pronto. Aquilo acabou com o dia dele. Bonzinho?! Porra, Bonzinho?! Sério?! Aquela palavra, assim, no diminutivo, foi como um banho de água fria em suas convicções sobre si mesmo. Sentiu-se pequeno, como seu sobrenome. Se fosse um nobre daqueles que aparecem nos livros de História, seria chamado de "Fernão Coutinho, o Bonzinho"?

Um homem pode ser chamado de qualquer coisa, menos de bonzinho. Aquele elogio era pior do que o pior do xingamentos. Um homem aceita ser chamado de bruto, insensível, troglodita, idiota, cretino, cafajeste, safado, nojento, manezão, escroto. Aceita, inclusive, ser chamado como animal: cavalo, cachorro, porco.

Os elogios, ah, os elogios poderiam até ser no diminutivo, delicados: fofo, gentil, cortês, cavalheiro, gracinha. Até gracinha! Mas nunca, jamais, se deve chamar um homem de bonzinho. Só faltou apertar a bochecha, e falar com voz de neném...

Bonzinho?! Ele sabia que não era exatamente um homem lindo, mas acreditava não ser um homem de se jogar fora. Ser chamado de bonzinho, o fez sentir como um garoto de 11 anos. Imberbe, inofensivo, pueril.

Seus olhos escuros, que ele acreditava serem profundos e cheios de mistério, de repente lhe pareceram apenas opacos e sem graça.

Seu jeito reservado, de gestos comedidos e charmosos, pareceram tornar-se mera timidez patológica, daquelas de gente que anda no elevador olhando para o chão.

Seu gosto refinado e conhecimento de muitos assuntos, pareceram-lhe apenas desculpas de um fraco que se esconde daquilo que as pessoas gostam, para não ter que encará-las. Gostava do que ninguém mais gostava, para não ter que se deparar com alguém com quem tivesse que engrenar uma conversa além do mero trivial.

Sua barba por fazer, que ele achava ser sedutora, pareceu-lhe apenas desleixo de um playboyzinho sem sal, doido para se parecer com o cowboy da Marlboro, que via nos anúncio da infância.

Seu perfume pareceu-lhe demasiado forte, como o de um tiozinho grisalho que sai à caça de alguma gatinha, depois de um divórcio.

Ser chamado de bonzinho fez com que suas gentilezas e seus elogios, que antes ele acreditava serem sedutores e afiados, tornassem-se inócuos feito o elogio do amigo gay, para o qual se conta todos os segredos, mas sobre o qual não se pensa enquanto se compra batom ou lingerie.

Tudo aquilo que ele havia moldado sobre si mesmo como homem adulto, caiu por terra: era um homem bonzinho. Inofensivo feito um filhote de gato. O misterioso tornou-se apenas previsível. O galanteador tornou-se apenas simpático. O charmoso, apenas bem-apessoado. O sedutor, porra, apenas bonzinho.

Daquele dia em diante, resolveu deixar de ser o Tinho, para se tornar Fernão. Sumiu de vista por uns tempos. Entrou para a academia, ficou mais forte. Passou a ouvir música eletrônica e rock pesado. Fez uma tatuagem em preto e branco no braço. Parou de usar gel no cabelo. Na verdade, parou até de usar xampu, lavando a cabeça só com sabonete, mesmo. Pente? Nunca mais. Não deixou a barba crescer por completo, porque a pele sensível coçava demais. Mas, nos dias estratégicos, passava a máquina zero, para ficar com a barba áspera, bem curtinha, e cara de cafajeste.

Aprendeu a temperar suco de tomate com pimenta, molho inglês, sal e limão. Aprendeu a fazer omelete com rum. Comprou óculos escuros tipo aviador, a la Top Gun. Do sedan pequeno, com câmbio automático, furou o escapamento, para ficar com barulho de carro de aventureiro, off-road, a diesel. Isto, antes de ter o seu próprio off-road. Endividou-se para pagar uma viagem à Itália, onde aprendeu a comprar ternos, e à Austrália, onde aprendeu a pegar ondas, já dono de um colar de dentes de tubarão polidos. Postou tudo no Facebook. E voltou.

Um dia, sem querer, Fernão encontrou de novo com aquela bela mulher que conhecera anos antes e que o chamara de bonzinho, sem saber do impacto que isto tinha causado em sua vida. E agora, maduro, destemido e realmente sedutor, cheio de histórias para contar, conseguiu seduzi-la. Não com jeito troglodita, nem cafajeste, mas com o mesmo jeitinho tranquilo, do qual tentara se livrar naqueles dois anos anteriores. Seduziu-a não como um troféu, não como uma confirmação da sua transformação de Tinho, o Bonzinho, em Fernão, o Conquistador. Passou a noite ali porque ela habitava suas fantasias há muito tempo, porque queria, de verdade, estar com ela. E ela com ele. Tê-la nos braços foi um elo do presente com um passado que, pensando bem, não havia porquê negar. Tê-la nos braços era uma confirmação de que Fernão e Coutinho não eram necessariamente nomes opostos.

Ele acordou antes dela. O sol ainda dormia. Levantou-se sem fazer barulho e escreveu-lhe um bilhetinho, com o mesmo elogio que fizera anos antes. E assinou:

Fernão, ou Tinho.
Como prefira aquela que nunca me saiu da cabeça...

E decidido a não telefonar por pelo menos três dias, saiu, misterioso, oculto e discreto, como um leopardo das neves. Podia ter ficado mais tempo, mas optou por ir embora. Porque, naquela manhã, logo cedo, ia passar a reprise na Warner Channel do novo episódio do "The Big Bang Theory", que ele perdera enquanto passava a noite com ela. E não havia nada no mundo que o fizesse perder um episódio de The Big Bang Theory! Nada, ouviu bem! Nada!

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Mala

O tiozinho metido a pensador chega ao balcão da companhia aérea:

- Qual é o seu destino, senhor?

- Destino? Minha filha, meu destino está sendo escrito à medida em que vivo. Não sei para onde vou, mas sei que vou em frente, certo de que amanhã será melhor do que ho...

- SENHOR?! SENHOR?! GENTE, ALGUÉM CHAMA UM MÉDICO! ACHO QUE O HOMEM MORREU! PRÓXIMOOOO!

domingo, 12 de janeiro de 2014

O House não Existe

Texto original de Maio de 2012.


Não sei se já comentei alguma vez, mas eu adoro o House. Ele é uma espécie de alter ego grosseiro, cavalo, estúpido e bruto, de todos nós. Ele pode dizer coisas que ninguém diz. Desafiar pessoas que ninguém pode. Ele manda e desmanda, manipula e adapta a realidade à sua própria vontade e aos seus próprios caprichos. Ele demite, para recontratar 5 minutos depois. E despedir de novo imediatamente. O House é um adolescente que nunca cresceu e que, por ser um gênio, exige que o mundo pague um alto preço, aturando-o a qualquer custo, já que está sempre certo. Quem não tem vontade de sair por aí dizendo verdades - ou inverdades, não importa - sem dar a mínima para as consequências e para a opinião de quem as escuta?

É, mas o House não existe. Nem poderia. Pode até haver um cara extremamente mal-humorado, como ele. Vejo um todos os dias, quando faço a barba de manhã. Pode até haver alguém que manipule o mundo ao seu redor, para atender às suas vontades. Mas ninguém assim consegue manter um bom emprego por muito tempo. Ninguém assim vai ter amigos - até porque não existe ninguém como o Wilson ou como a Cuddy (saudades da Cuddy...). Esses personagens são caricaturas levadas ao extremo dos traços que as definem.

A vida adulta, real, é diferente. A diferença entre a palavra do adulto e a da criança, é que a da criança se pode perdoar com mais facilidade. Se minhas filhas olham para mim com cara de ódio e dizem "Eu te odeio", eu vou segurar a risada, porque não vou acreditar nelas e porque sei que em 5 minutos, a atitude delas será outra. Mas, se um adulto olha para mim e diz "Eu te odeio", eu vou acreditar. E vai levar um bom tempo até que ele me convença de que aquilo não era, de fato, verdade.

Felizmente, nunca ouvi "Eu te odeio" de ninguém. Mas já fui desacreditado, já vi olhares de desconfiança, já deixei de gostar de pessoas pelo que elas disseram, já levei broncas por erros que não cometi. Aceito todas as críticas do mundo pelos erros que cometi. Mas me nego a ouvir um "Ah" por algo que não devo. Eu não sou o Wilson. E, claro, já fui colocado contra a parede por erros que cometi, mesmo sabendo-os como tal. Já fui, sim, um pouco House. Você, certamente, também.

Existe entre nós, contemporâneos dos computadores, uma sensação de que tudo pode ser desfeito com facilidade. É o que eu chamo de "Geração Undo". Undo é aquele comando que desfaz as operações, no computador. Se você erra, você dá um Undo. Desfaz, com facilidade, o erro que acabou de cometer. E, se o erro for maior, mais grave, cometido dias atrás, você restaura do backup. Se você morre, no video-game, você recebe mais uma vidinha e continua a jogar. Nada é final. Nada é definitivo.

Algumas pessoas transferem isto para a vida real. Magoou alguém? É só pedir desculpas! Transou sem camisinha? Toma a pílula do dia seguinte e relaxa! Repetiu de ano? Faz de novo! Para quê a pressa? Bebeu demais? Toma um Engov! Ou uma glicosesinha na veia, o que é que tem? Bateu o carro? Ah, o seguro cobre! Atropelou alguém? O papi molha a mão do policial e me livra da cadeia.

É por isso que os acidentes de trânsito estão cada vez mais graves. Porque motoristas cada vez mais bêbados, correm cada vez mais rápido, em carros cada vez mais caros. Ministros roubam quantias cada vez maiores e contam mentiras cada vez mais estúpidas para escândalos cada vez mais escancarados. Tudo é hiperbólico - mas a sensação é de que as consequências para o que se diz, se pensa ou se faz, são cada vez menores. Perigosamente menores. É o mundo do falso "Você sabe com quem está falando?", em que todo mundo se sente imune às consequências dos próprios erros.

Só que, alguns desses erros, são realmente definitivos. Não dá pra consertar a vidraça depois que quebrou. Você pode trocá-la, e até se esquecer da que quebrou. Mas a quebrada estará, para sempre, irremediavelmente quebrada.

Entender que isto faz parte da realidade, e que a vida adulta terá algumas cicatrizes, causadas pelos cacos de algumas daquelas vidraças quebradas, deve nos tornar mais cautelosos e alertas, e não mais irresponsáveis. Arranhado que fui por alguns desses cacos, tento todos os dias fazer minhas filhas entenderem que as consequências daquilo pelo qual se opta, são tão reais quanto as consequências daquilo que se negligenciou - intencionalmente ou não. Ponderar, medir, avaliar, são ferramentas que se aprende a usar. Crianças que não são submetidas a este aprendizado, ao meu ver, podem se tornar Houses quando crescerem: não estarão prontas para as consequências que, inevitavelmente, virão. Cedo ou tarde. Pelas próprias mãos ou pelas dos outros.

Eu costumo brincar, dizendo que nunca dou "Bom Dia" antes das 8 horas da manhã: porque nenhum dia pode ser bom a esta hora da madrugada. Mas isto é mentira. Eu dou "Bom Dia", sim. Porque as pessoas não têm culpa se meu cerébro de manhã é retardado. Assim como eu não estou nem aí para a sua TPM. E seu chefe não quer nem saber se você não dormiu a noite toda porque estava discutindo a relação com seu parceiro. Nada disso interessa a ninguém, e você precisará de muita sorte para que alguém releve uma grosseria, só porque entendeu que você estava "com a cabeça quente". Cansaço, todo mundo entende e até perdoa. Grosseria, ninguém. Eu mesmo gostaria de ter lembrado disso mais vezes.

É, a vida seria engraçada se eu pudesse ser como o House e se o mundo fosse como o Wilson. Mas seria demasiadamente fácil. E assustadoramente triste.

domingo, 6 de outubro de 2013

Noite às escuras

Quando criança, tinha sentido pavor do escuro. Não sabia exatamente o porquê, mas tinha. Com o passar do anos, já adulto, o pavor deu lugar a um mero desconforto. Mas o fato é que havia algo no escuro que sempre lhe causara certo temor.

Nunca tivera qualquer trauma específico envolvendo escuro. Até aquela data, nunca tinha ficado sozinho em casa quando faltara luz, nem tinha tido qualquer experiência sobrenatural - embora tivesse, também, medo de assombração. "Eu não acredito em fantasmas. Mas que eles existem, ah, existem", dizia. Adorava filmes de terror, jogos de terror, história de fantasmas. Adorava desafiar seu medo no conforto do seu sofá, sob a luminosidade acolhedora vinda da tela da TV.

Às vezes, corajoso, obrigava-se a andar no escuro dentro de casa, depois que anoitecia. Sentia os pelos do braço eriçados, mas não corria, enfrentando o medo que não sabia explicar e também não divulgava a ninguém.

Tinha especial fascínio também pelos bichos que viviam na completa escuridão: seres das cavernas, peixes abissais e outras criaturas da noite. "Todos fascinantes".

Enfim, convivia com aquele desconforto desde sempre. Não era algo que lhe incomodasse ou perturbasse. Apenas estava lá, acompanhando-o desde sempre.

Certo dia, no entanto, aconteceu um episódio curioso. Era umas 23h, estava em casa sozinho e faltou luz. Não era uma mera queda de energia no bairro, não. Da sua janela viu - ou na verdade, não viu - a cidade escura por onde olhasse. Um apagão completo.

Era uma noite sem luar. O céu nublado deixava o ar pesado e opaco. Até os carros pareciam ter ido dormir. Não havia circulação. Estava escuro pra valer. Nem barulhos havia. Era como se alguém tivesse congelado o mundo exatamente como descreveu Saramago, mas ao contrário: preto. Completamente preto.

Em poucos instantes, olhando a janela dos outros prédios próximos ao seu, via retângulos iluminados, flutuando de um lado para o outro nos apartamentos escuros. Pois é, até as velas tinham sido substituídas pelos celulares de tela grande o suficiente para serem mais interessantes do que o resto do mundo. "Será que as baterias destes celulares acesos duram mais do que uma vela?". Tentou ligar seu próprio celular, mas estava completamente sem bateria, desde aquela tarde. Apagado de vez.

Onde teria deixado as velas, afinal? "Na cozinha, com certeza". Começou a tatear, devagar. Se as luzes estivessem acesas, provavelmente conseguiria fazer facilmente aquele trajeto, mesmo com os olhos completamente fechados. Mas, no escuro, não. Foi tateando lentamente, com os braços esticados e duros à frente do corpo, os olhos esbugalhados tentando captar qualquer resquício de luz e as mãos bem abertas, esperando tocar a parede à qual nunca chegava. Não estava exatamente com medo, apenas queria poder enxergar alguma coisa à frente do nariz.

Os pés arrastavam-se, como que temerosos de que ao se descolarem do chão por um instante, pudessem perdê-lo de vez. O grande tapete não lhe permitia sequer sentir as emendas das tábuas do piso, que poderiam servir-lhe de referência. Nada. Andava vagarosamente sobre o tapete com os olhos e o tato vendados pela escuridão, já perguntando-se se tinha ido para a direção oposta, até que sentiu uma dor lancinante quando o dedinho do pé esquerdo encontrou o batente da porta da cozinha, que, inexplicavelmente, tinha ido parar ali.

Soltou um palavrão, esperou a dor passar e seguiu tateando. Estava finalmente na cozinha. Queria chegar às gavetas, onde imaginava que encontraria velas.

Finalmente, encontrou. Enquanto mexia na vela, ela escorregou da sua mão e caiu no chão. Pode ouvi-la rolando, embora não tivesse ideia de para qual direção tinha ido. Provavelmente quebrara-se. "Saco!". Passou a ter medo de pisar no chão, e escorregar nos pedaços de vela que, àquela altura, certamente tinham a intenção deliberada de derrubá-lo.

Teve uma ideia brilhante: acender um fósforo! Iluminaria rapidamente o ambiente, acharia a vela, acenderia o pavio, e voilá!

Isso, se houvesse fósforos. Mas não havia. Nenhum. Necas de pitibiribas. Estava definido: suas próximas horas seriam na mais completa escuridão.

Depois de desistir de sua procura em vão pelos fósforos, mesmo depois de ter achado três outras velas, decidiu voltar para a sala, já deslocando-se com melhor desenvoltura pela escuridão. Sentou-se no sofá, pôs as mãos no colo e ali ficou por alguns segundos, pensando no que fazer. "Acho que vou dormir". Mas não sentia sono. Ao contrário, estava mais acordado e alerta do que nunca. E sentia-se relaxado. Não estava com medo, e estranhou o fato. Afinal, quando havia luz, ficar no escuro parecia-lhe desagradável. Mas, quando não havia, e o escuro era sua única opção, pareceu-lhe perfeitamente suportável. Ou, mais do que isso, curiosamente interessante.

Jogou-se para trás, encostando-se no sofá. Cruzou os dedos atrás da cabeça e "olhou" para o teto. Na verdade, não havia nada para olhar, mas imaginou que estivesse olhando para o teto. Respirou fundo, acomodou-se no sofá e, sem querer, adormeceu.

Acordou sobressaltado. "Quanto tempo se passou?" Ainda estava escuro. "Será que já é madrugada?". A que horas ia acordar mesmo? "Será que o despertador já vai tocar? Não posso me atrasar hoje! Já é hoje? Ou ainda é ontem?". Os passarinhos não cantavam. Normalmente, quando acordava antes do despertador, ouvia os passarinhos cantando, muito antes do sol nascer. Mas estavam silenciosos. "É porque é tarde demais ou cedo demais?"

As ruas e as janelas dos outros prédios continuavam às escuras. O blecaute prosseguia. Os olhos, já completamente despertos, conseguiam distinguir a silhueta de alguns objetos na casa. Percebeu que ainda estava com o relógio de pulso. Tentou olhar as horas, mas não conseguiu.

Levantou-se e foi facilmente caminhando até a cozinha. Encheu um copo com água sem derrubá-la, ouvindo apenas o barulho do copo se enchendo, e tomou. Lembrou-se que na geladeira havia um pedaço de queijo minas e um finzinho do pote de dulce de leche que havia trazido de sua viagem recente a Buenos Aires. Comeu, tentando se lembrar se aquele doce de leite estava mais para clarinho ou mais para escurinho. Fez tudo isto na completa escuridão. Fácil e naturalmente.

Foi  para o quarto, ficou de cuecas e deitou-se. Largou a roupa no chão. "Ah, vai lavar, mesmo". E adormeceu de novo, "olhando" para o teto.

Acordou com os primeiros raios do sol entrando pela janela, que havia se esquecido de fechar. O rádio-relógio piscava 00:00. Virou-se de lado e, graças à luz da manhã, conseguia finalmente ver as horas no relógio de pulso: faltavam alguns minutos para as seis. Levantou-se, tomou banho, escovou os dentes e seguiu adiante com seu dia.

Talvez ele ainda não tenha notado, mas desde aquele dia, seu medo de escuro passou. Não sente mais incômodo algum. Os pelos do braço não se eriçam mais. Não se obriga a andar devagar controlando o medo enquanto caminha pelo corredor da própria casa. Estar no escuro, não ver, ter que tatear ou usar os ouvidos para conseguir encher o copo d'água, serviram para aguçar-lhe os sentidos, e mostrar-lhe que o escuro às vezes é não apenas inevitável, como bem-vindo.

Mas, o mais curioso de tudo, não é que o medo do escuro tenha passado. É que ele nunca vá saber quanto tempo ficou adormecido nas duas vezes em que pegou no sono naquela noite. Talvez tenha dormido horas no sofá, e minutos na cama. Ou minutos no sofá e horas na cama. Aquela foi uma noite que ele não sabe - e nunca saberá - exatamente como passou.

Mas, passou. E talvez vá se dar conta, provavelmente com alegria, que o medo do escuro, "quem diria?", também.

terça-feira, 30 de julho de 2013

O Dia Seguinte


Foto de Mariana Conde 
Diga que ainda dormia quando o despertador tocou. E que não foi você quem acordou o sol.

Diga que levantou-se, lavou o rosto e teve coragem de olhar-se no espelho enquanto escovava os dentes.

Diga que abriu a janela e deixou a luz entrar. E que fez a cama.

Diga que colocou pelo menos uma peça de roupa colorida.

Diga que penteou os cabelos e passou perfume. E que calçou sapatos, não pantufas.

Diga que tomou café da manhã, e sentiu seu gosto.

Diga que ouviu o barulho dos próprios passos enquanto caminhava até o carro. E que o fez sem óculos escuros.

Diga que ligou o rádio, sem medo das músicas que pudessem tocar.

Diga que foi, sim, trabalhar, e que quase ninguém notou nada de diferente. E que a única pessoa que notou, respeitou seu silêncio, mas ofereceu colo, se lhe quiser contar.

Diga que deu "Bom Dia", atendeu ligações, reclamou de algo, resolveu coisas, mexeu-se.

Diga que na hora do almoço, não comeu só salada nem tomou só água. E que perdoou-se por ter aceito a sobremesa.

Diga que a tarde passou surpreendentemente rápido, como qualquer outra.

Diga que ao voltar para casa, demorou-se um pouco mais no banho quente. E que usou uma toalha seca e macia para se enxugar.

Diga que vestiu uma roupa, não um roupão.

Diga que não se sentou em frente à TV só para ouvir uma voz qualquer. E que lembra de pelo menos uma notícia do telejornal.

Diga que jantou e depois tomou um licor, ou comeu um bombom.

Diga que escovou os dentes antes de deitar.

Diga que não manteve o abajur aceso por medo de pesadelos.

E que o silêncio da noite não lhe fez ensurdecer com os próprios pensamentos.

E diga que logo antes de adormecer, permitiu-se um suspiro de alívio. Porque sabe que haverá na vida outros dias seguintes. Mas que este, felizmente, já terminou. Boa noite.

domingo, 30 de junho de 2013

E ai de quem não coma!

Era um chato. Pense num cabra chato? Era ele: uma pessoa dotada de uma inteligência ímpar para tudo que fosse cricri, enjoado, metódico e implicante. Um chato natural, puro-sangue, que nascera com o gene da chatice duplo-dominante. Chato com pedigree. Porra, como era chato!

Certo dia, ainda lembrava-se muito bem, quando iniciou as aulas no ginásio, participou de uma dinâmica de grupo em que cada um deveria responder, na roda: "Se você fosse usar uma única palavra para definir-se, qual seria?". As outras crianças, normais, definiram-se como "simpáticas", "alegres", "amigas", "sorridentes". Ele: "perfeccionista". Tinha consciência plena da própria chatice. E nada podia fazer para mudá-la.

Na infância, tinha um problema com os cadarços: precisavam ser milimetricamente alinhados, para que o laço pudesse ser dado com a precisão devida. Não podia haver voltas, nem torções. Após colocá-lo no tênis e esticar a pontas, para medir seu comprimento, a diferença entre elas tinha que ser nula - e isto deveria acontecer "de primeira". Caso contrário, tirava o cadarço todo e colocava-o de novo, paciente e doentiamente, tantas vezes quanto fosse necessário, ou quantas os adultos normais ao seu redor permitissem, antes de explodirem de raiva e indignação com tamanha chatice.

Não comia verduras de nenhum tipo, em nenhuma hipótese, o que lhe valeu o ilustrativo apelido de "Verdurinha", criado por um amigo do pai, que via em tirar-lhe sarro o melhor de todos os passatempos.

Como demonstração de sua chatice, um dia, durante o almoço, estranhou a cor das batatas em rodelas, que adorava:

- Mãe, por que a batata está esverdeada?
- É o tipo de batata, que é diferente, filho. Gostou?
- É, é boa.
- Então come, filho. Come.

Terminada a refeição, soube a verdade: era chuchu. Sua mãe, coitada, mentira para fazer-lhe comer. E Verdurinha passou anos sem comer chuchu. Só foi fazê-lo quando sua filha, já grande, arrumou um namorado.

Os pais de Verdurinha, corajosos e dedicados, odiavam vê-lo adormecer no carro. Porque, já grandinho, ao ser despertado, mesmo que carregado no colo, transforma-se em um ser das trevas. Ficava intragável e sua chatice, naturalmente elevada, parecia ser açoitada pelos deuses do azedume, para tornar-se hiperbólica e completamente insuportável.

Mas, como o tempo é generoso, Verdurinha cresceu e sua chatice foi abrandada. Tornou-se um homem relativamente normal, exceto pelo fato de não gostar de café, nem de sushi, nem de mamão, nem de assovios (dizia que era coisa de velho. Vai entender...) e preferir suspensórios a cintos. Tornara-se supervisor de segurança da informação, em uma empresa de auditoria internacional, trabalho que nunca conseguira explicar a ninguém que, educadamente, lhe perguntava qual era sua profissão e que ele, ingenuamente, acreditava ser interesse verdadeiro em sua pessoa tão desinteressante.

Por uma dessas coisas inexplicáveis da vida, Verdurinha começou a namorar com uma moça completamente maluquinha das ideias, uma meia-irmã de um de seus amigos de infância, apelidado de Zacarias, por causa da voz fina que manteve até quase o final da adolescência.

A moça era divertida e desencanada, tinha os cabelos revoltos e assimétricos, olhos grandes e vivos e lábios inquietos, cujos beijos exagerados e gostosos lhe surpreendiam e excitavam. Era tão doidinha, imagine, que fez xixi de porta aberta, na primeira vez em que dormiram juntos! Cortava sozinha os próprios cabelos e nunca, jamais, usava salto alto.

Seu apelido era Polilla, que quer dizer "traça" em espanhol. Quando adolescente, ela fizera intercambio no Panamá (por vontade própria, e não por falta de vagas na Nova Zelândia ou nos EUA) e, por passar o dia todo com a manga da blusa na boca, como se a quisesse comer feito uma traça, ganhara dos colegas de escola o apelido de "Polilla".

Eram uma espécie de Eduardo e Mônica: diferentes, mas surpreendentemente compatíveis. Namoraram por 8 meses e começavam a acreditar que aquela relação meio amalucada poderia realmente dar certo.

Foi quando surgiu para Polilla uma oportunidade irrecusável: estudar gastronomia em Quebec, no Canadá. Não aguentava mais trabalhar como recepcionista de consultório e queria mesmo era ser chef de cozinha. Aprendera francês ainda jovem, motivada por entender as músicas pelas quais se apaixonara quando criança, enquanto ouvia-as com a mãe, uma goiana deslumbrada pela França, embora nunca tivesse colocado os pés lá. Seu ótimo francês abriu-lhe as portas para a bolsa de estudos na cidade mais francesa do Canadá.

Chegou o dia de Polilla contar a Verdurinha sobre seus planos. Uma tragédia. Verdurinha finalmente sentia-se uma pessoa normal, finalmente sentia-se gostado por alguém que não fosse da família e que lhe fazia, de algum modo, mais livre, mais feliz e mais irresponsável - exatamente como sempre quis ser. E agora, justamente agora, este alguém iria deixar-lhe. Ficou arrasado.

Polilla partiu no final no Fevereiro e chegou ao Canadá em pleno inverno, sob uma forte nevasca. Nunca tinha visto neve e aquela visão tão bonita fez-lhe lembrar de Verdurinha e do calor de suas mãos. Não pensava nele pelo nome de "Verdurinha", que nem sequer conhecia, mas pelo apelido que lhe tinha dado, dois meses depois de começarem a se ver: "Cri", de "cricri", como reconhecimento terno à chatice da qual ela, inexplicavelmente, aprendera a gostar.

Verdurinha estava triste, como nunca havia se sentido. Seus dias sem Polilla eram cheios de nada, cinzas, longos e insípidos, como ele. Não suportava o próprio gosto e sentia uma falta de Polilla que, pela inabilidade com as palavras, não conseguia descrever.

E assim ficaram, completamente afastados e incomunicáveis, por meses. Polilla continuou seus estudos e até trocou uns beijos com um colega romeno, que também estudava na mesma escola de gastronomia. Sem grandes envolvimentos, só uns beijos, mesmo.

Verdurinha seguiu com sua vidinha, resumida a assistir seriados legendados, que baixava da internet, jogar Playstation 3, assistir vídeos pornôs em sites gratuitos e, quando tinha sorte, aos finais de semana, dar uns amassos em alguma feinha bêbada, depois que a noite já estivesse longa o suficiente para que ela aceitasse que ele seria a única coisa que conseguiria, depois de tanta cerveja.

Após vários meses sem falar com Polilla, um dia seu telefone tocou às 11h30, na manhã de um sábado com ar parado, seco e frio.

- O que é? - atendeu ele, com seu tradicional mau-humor matinal, com voz de travesseiro babado.
- Te acordei?
- Quem está falando?
- Te acordei, Cri?

Só ela o chamava de "Cri". Seu coração parou por um momento. Não imaginou que ouvir sua voz pudesse causar-lhe algum impacto, depois de tantos meses de afastamento.

- Polilla?! - falou, sentando-se, surpreso com o volume da própria voz.
- Como você está, Cri?

Ele fez uma longa pausa, já completamente desperto e sentado na cama; uma pausa longa o suficiente para ela achar que a ligação havia caído.

- Alô? Cri?
- Estou aqui.
- Achei que a ligação tivesse caído... Como você está, menino? - ela tinha mania de chamá-lo de menino. A voz não deixava dúvidas: estava sorrindo.

Ele fez novamente uma longa pausa.

- Cri?!
- Estou com saudade, Polilla.

A pausa desta vez foi dela. Ele ficou imaginando se ela estava surpresa com a resposta. Ficou lembrando do rosto que ela fazia quando se surpreendia com alguma coisa, fechando os olhos grandes demoradamente, soltando um suspiro curto e um discreto e adorável sorriso nos lábios.

- Estou voltando para o Brasil, Cri.

Ele também sorria, em silêncio.

- Chego amanhã.


Verdurinha foi apanhá-la no aeroporto. Chegou 2 horas antes, tamanha era a ansiedade.

Polilla chegara diferente, mais madura e mais bonita. Os cabelos estavam bem cortados e simétricos, mais lisos do que antes da viagem. A pele estava mais branca, talvez pela menor generosidade do sol canadense. Mas os olhos, ah, esses eram os mesmos: grandes, escuros e vivos, exatamente como os conhecera.

Sem rodeios nem palavras, abraçaram-se e beijaram-se, como se nunca tivessem se afastado. Um beijo delicado e discreto, de quem não tem nada a provar, nada a explicar, nada que já não soubessem de cor.

Verdurinha voltou a ser homem que Polilla fazia dele, o homem que queria ser. Nunca acostumou-se a comer chuchu, nem tomar café. Mas aprendeu a comer as esquisitices que Polilla, com seu paladar treinado e refinado, preparava. De vez em quando pedia para ela fazer frango com arroz e feijão, mas não recusava seus outros pratos, de nome difícil.

Quando nasceu a primeira filhinha do casal, deram a ela o apelido de "Corú", um pseudo-diminutivo de Coruja. A moleca simplesmente não dormia à noite e trazia, ainda pequena, um pouco dos traços chatonildos do pai, mas disfarçados pelo sorriso fácil, herdado da mãe.

Mesmo agora, já crescida, vive sendo repreendida pelos pais, porque não tira a roupa da boca - tal como fazia a mãe, quando jovem. E ouve-se à boca miúda que Corú está de namorico com um garoto que, puta que pariu, é o maior chato de mundo!

O menino vai almoçar na casa deles, no próximo domingo. E Verdurinha já decidiu que, neste dia, é inegociável: vai haver chuchu na mesa. E ai de quem não coma! Ai de quem não coma!



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