- Temos um problema!
- Qual?!
- Como as pessoas vão fazer para entrar na sala?
- Ué... vão entrar pela porta!
- Ah, pela porta... Entendi.
- ...
- E depois que o evento já tiver começado? Por onde entram?
- Pela porta.
- A mesma porta?
- A mesma porta.
- Entendi.
- ...
- Ai, meu Deus!
- O que foi?!
- E aquelas que estejam dentro da sala e precisem sair para ir ao toalete, chupem um Halls preto, falem ao celular, deem uma cambalhota e queiram, em seguida, retornar à sala?
- O que é que têm essas pessoas?
- Como elas fazem para entrar?!
- Deixe-me pensar... Veja... elas entram pela porta, também.
- Também?
- Também.
- Pela mesma porta?!
- Sim, pela mesmíssima porta.
- Ai, isso tudo é tão complicado...
- ...
- E se o Halls for vermelho?!
segunda-feira, 31 de março de 2014
quinta-feira, 27 de março de 2014
Você ama quem você ama
"If it's who you love, then it's who you love"
Sua vida mudou no dia em que conheceu Apolo. Não era muito alto, nem muito bonito. Mas falava com os olhos e tinha o sorriso mais bonito que já tinha visto. Era amigo da namorada do irmão de uma vizinha, e se conheceram numa festa de aniversário. Mas, passada a festa, ficaram meses sem se falar.
Um dia, acidentalmente, encontraram-se na saída de um show de jazz. Ambos sozinhos. Reconheceram-se e toparam esticar a conversa, durante um jantar. Apolo era cavalheiro e se interessava por cada palavra que saía da sua boca. Conversaram longamente e ali, naquele primeiro encontro, aprenderam um monte de pequenos detalhes um sobre o outro: os medos, as alegrias, o filme predileto, a fruta predileta, as músicas, os livros. Era um homem culto, de muitas leituras e muitas viagens. Falava 3 idiomas. Um homem admirável.
Surgiu dali uma amizade sincera, temperada pela admiração e por um interesse diferente do que conhecera até ali. Voltaram a sair outras vezes. Um dia, foram comer sushi. Em outro, comida francesa. Noutro, massa. Pastel com caldo de cana. Empanada. Parillada. Pato no Tucupi. Vatapá. Baião de dois. Paella. Cebiches. Sauerkraut. Smogasbord. Experimentaram de tudo juntos.
Viram filmes de tudo que foi jeito. Comédias românticas, besteirol, dramas, ação, animação, filmes-cabeça.
Foram a shows, concertos, saraus. Foram ao teatro, a museus, a sebos de livros.
Um dia, por impulso, resolveram que iriam acampar juntos. Decidiram ao meio-dia. Às 18h, estavam na estrada. E ali, nas curvas da estrada já escura, com o confortável silêncio do rádio que já não pegava nenhuma estação, perceberam: estavam namorando. Namorando há tempos. Foi só naquela viagem, meses após terem se conhecido, que passaram a primeira noite juntos, surpresos e nervosos, como se tivessem 10 anos menos do que na verdade tinham.
E assim, seguiram. Namorando e descobrindo semelhanças e interesses. Rolaram novas viagens, novas brigas, saudades, traição, reconciliação, histórias para contar. Havia retratos em comum, só dos dois - sem obrigação de postar no Facebook. Havia amizade, cumplicidade e respeito. E, finalmente, havia maturidade.
Chegou, então, o dia especial. O dia em que Apolo seria pego de surpresa. Talvez fosse ousadia demais... mas era uma coisa que precisava fazer. O momento havia chegado. Não havia dúvidas de que era ele a pessoa com quem gostaria de passar o resto da sua vida.
Encontraram-se e deram um longo abraço, como sempre faziam. Mas, naquele dia, durou um pouco mais. Ficaram ali, abraçados por vários segundos.
- Está tudo bem?! - Apolo perguntou, sem soltar o abraço.
- Preciso te perguntar uma coisa.
- O que foi?
- Vem morar comigo?
O abraço se desfez imediatamente, e o sorriso no rosto de Apolo, com seus olhos arregalados e felizes, dava a resposta esperada.
- Mas é claro que eu vou! - sorrindo, sem acreditar - É claro que eu vou!
Desde aquele dia, Apolo e Rogério estão casados. E vêm tendo dias de alegrias, de dúvidas, de amor, de desejo, de brigas, de ira, de saudades e de distância. Exatamente como o João e a Maria, o Ahmed e a Rebeca, o James e a Esperanza, o Masaharo e a Lin, o Juan e a Severina, a Luana e a Júlia. Exatamente como qualquer outro casal. Absolutamente qualquer outro casal.
sábado, 15 de março de 2014
Andando nas Nuvens
![]() |
A história é de 2014, mas a foto, de 2008. |
- Pai, para tudo o que você está fazendo.
- O que foi, filha?
- Você sempre diz que eu sou macia, não é?
- É, você é muito macia.
- Pega nas minhas mãos.
O pai faz aquela encenação, fecha os olhos e move-se em câmera lenta, enquanto segura as mãozinhas.
- É como andar nas nuvens, filha...
quarta-feira, 5 de março de 2014
O Pior dos Elogios
Antes mesmo de nascer, o pai já tinha decidido que o filho seria um conquistador. Deu-lhe logo um nome de macho. Nome curto, forte, que não permite apelidos. Nome de conquistador: Fernão. Nome no aumentativo. Nome de homem decidido, destemido, espaçoso. Fernão. O problema é que o sobrenome, herdado do próprio pai, era no diminutivo: Coutinho. E este prevaleceu: só o pai o chamava de Fernão. Os amigos, irmãos, primos, mãe, o chamavam de Tinho.
Era um rapaz gente boa. Tranquilo, educado, do bem. Talvez fosse mais do que simplesmente educado. Polido? Era gentil e bem-humorado, com uma certa dose de timidez. Ou talvez não fosse exatamente tímido, apenas reservado. Cresceu sem grandes paixões, sem grandes desprazeres, sem grandes aventuras e sem grandes tristezas. Um carinha absolutamente normal, com seus gostos peculiares, suas manias, seu jeitão próprio. Seguro, sem ser impositivo. Tranquilo, sem ser apático. Interessante, sem chegar a sedutor. Normal.
Um certo dia, já adulto, interessou-se por uma bela mulher, inteligente, discreta e interessante, de rosto delicado e lindas pernas. Mulher para se admirar, antes de se desejar. Não era daquelas para sair agarrando e tentando a sorte. Não. Mulher direita, decidida, senhora de si. Mulher que não aceita ser tapeada nem seduzida à toa. Mulher difícil.
Tinho aproximou-se dela devagar, muito devagar, com sorrisos discretos e gentilezas sutis. Demonstrava seu interesse, sem escancarar seu desejo. Percebia nela, sem muita certeza, algum interesse por ele, também. Talvez não fosse exatamente interesse, mas curiosidade. Mas, discreta como era, nunca deu abertura para que ele efetivamente tentasse nada. Talvez porque não quisesse, mesmo. Ou talvez até quisesse, mas nunca demonstrou. E ele, bem, não tentou.
Ficou anos com aquele interesse por ela, sem nunca de fato tentar seduzi-la. Ela já estava até irritada. Era evidente o interesse dele por ela. Por que diabos não a chamava logo para sair? Não para um motel, mas para um jantar! Para um café, uma visita à sua casa? O que diabos ele estava esperando?
Aos poucos, a curiosidade dela, visto que ele não dava o primeiro passo, começou a minguar. Tornou-se apenas uma sensação boa de estar na presença dele, sem que isto nela causasse nenhum calor especial.
Certo dia, percebendo que ela parecia cada vez menos interessada, Tinho tomou coragem e fez um elogio um pouco mais direto. Elogio polido, delicado - não uma cantada. Ele tinha certeza de que as mulheres não gostavam de cantadas, mas de elogios. Ninguém ouviu o que ele disse, a não ser ela. Um elogio lapidado, bem pensado. Um elogio que toda mulher gostaria de ouvir e que ele, cuidadoso, conseguia dizer como nenhum outro.
Ela sorriu com o elogio. Olhou para ele, sorrindo, e fez um carinho em seu braço direito:
- Ai, Tinho. Você é tão bonzinho!
Ela falou assim, mesmo, com rima e tudo. Bonzinho. Pronto. Aquilo acabou com o dia dele. Bonzinho?! Porra, Bonzinho?! Sério?! Aquela palavra, assim, no diminutivo, foi como um banho de água fria em suas convicções sobre si mesmo. Sentiu-se pequeno, como seu sobrenome. Se fosse um nobre daqueles que aparecem nos livros de História, seria chamado de "Fernão Coutinho, o Bonzinho"?
Um homem pode ser chamado de qualquer coisa, menos de bonzinho. Aquele elogio era pior do que o pior do xingamentos. Um homem aceita ser chamado de bruto, insensível, troglodita, idiota, cretino, cafajeste, safado, nojento, manezão, escroto. Aceita, inclusive, ser chamado como animal: cavalo, cachorro, porco.
Os elogios, ah, os elogios poderiam até ser no diminutivo, delicados: fofo, gentil, cortês, cavalheiro, gracinha. Até gracinha! Mas nunca, jamais, se deve chamar um homem de bonzinho. Só faltou apertar a bochecha, e falar com voz de neném...
Bonzinho?! Ele sabia que não era exatamente um homem lindo, mas acreditava não ser um homem de se jogar fora. Ser chamado de bonzinho, o fez sentir como um garoto de 11 anos. Imberbe, inofensivo, pueril.
Seus olhos escuros, que ele acreditava serem profundos e cheios de mistério, de repente lhe pareceram apenas opacos e sem graça.
Seu jeito reservado, de gestos comedidos e charmosos, pareceram tornar-se mera timidez patológica, daquelas de gente que anda no elevador olhando para o chão.
Seu gosto refinado e conhecimento de muitos assuntos, pareceram-lhe apenas desculpas de um fraco que se esconde daquilo que as pessoas gostam, para não ter que encará-las. Gostava do que ninguém mais gostava, para não ter que se deparar com alguém com quem tivesse que engrenar uma conversa além do mero trivial.
Sua barba por fazer, que ele achava ser sedutora, pareceu-lhe apenas desleixo de um playboyzinho sem sal, doido para se parecer com o cowboy da Marlboro, que via nos anúncio da infância.
Seu perfume pareceu-lhe demasiado forte, como o de um tiozinho grisalho que sai à caça de alguma gatinha, depois de um divórcio.
Ser chamado de bonzinho fez com que suas gentilezas e seus elogios, que antes ele acreditava serem sedutores e afiados, tornassem-se inócuos feito o elogio do amigo gay, para o qual se conta todos os segredos, mas sobre o qual não se pensa enquanto se compra batom ou lingerie.
Tudo aquilo que ele havia moldado sobre si mesmo como homem adulto, caiu por terra: era um homem bonzinho. Inofensivo feito um filhote de gato. O misterioso tornou-se apenas previsível. O galanteador tornou-se apenas simpático. O charmoso, apenas bem-apessoado. O sedutor, porra, apenas bonzinho.
Daquele dia em diante, resolveu deixar de ser o Tinho, para se tornar Fernão. Sumiu de vista por uns tempos. Entrou para a academia, ficou mais forte. Passou a ouvir música eletrônica e rock pesado. Fez uma tatuagem em preto e branco no braço. Parou de usar gel no cabelo. Na verdade, parou até de usar xampu, lavando a cabeça só com sabonete, mesmo. Pente? Nunca mais. Não deixou a barba crescer por completo, porque a pele sensível coçava demais. Mas, nos dias estratégicos, passava a máquina zero, para ficar com a barba áspera, bem curtinha, e cara de cafajeste.
Aprendeu a temperar suco de tomate com pimenta, molho inglês, sal e limão. Aprendeu a fazer omelete com rum. Comprou óculos escuros tipo aviador, a la Top Gun. Do sedan pequeno, com câmbio automático, furou o escapamento, para ficar com barulho de carro de aventureiro, off-road, a diesel. Isto, antes de ter o seu próprio off-road. Endividou-se para pagar uma viagem à Itália, onde aprendeu a comprar ternos, e à Austrália, onde aprendeu a pegar ondas, já dono de um colar de dentes de tubarão polidos. Postou tudo no Facebook. E voltou.
Um dia, sem querer, Fernão encontrou de novo com aquela bela mulher que conhecera anos antes e que o chamara de bonzinho, sem saber do impacto que isto tinha causado em sua vida. E agora, maduro, destemido e realmente sedutor, cheio de histórias para contar, conseguiu seduzi-la. Não com jeito troglodita, nem cafajeste, mas com o mesmo jeitinho tranquilo, do qual tentara se livrar naqueles dois anos anteriores. Seduziu-a não como um troféu, não como uma confirmação da sua transformação de Tinho, o Bonzinho, em Fernão, o Conquistador. Passou a noite ali porque ela habitava suas fantasias há muito tempo, porque queria, de verdade, estar com ela. E ela com ele. Tê-la nos braços foi um elo do presente com um passado que, pensando bem, não havia porquê negar. Tê-la nos braços era uma confirmação de que Fernão e Coutinho não eram necessariamente nomes opostos.
Ele acordou antes dela. O sol ainda dormia. Levantou-se sem fazer barulho e escreveu-lhe um bilhetinho, com o mesmo elogio que fizera anos antes. E assinou:
E decidido a não telefonar por pelo menos três dias, saiu, misterioso, oculto e discreto, como um leopardo das neves. Podia ter ficado mais tempo, mas optou por ir embora. Porque, naquela manhã, logo cedo, ia passar a reprise na Warner Channel do novo episódio do "The Big Bang Theory", que ele perdera enquanto passava a noite com ela. E não havia nada no mundo que o fizesse perder um episódio de The Big Bang Theory! Nada, ouviu bem! Nada!
Era um rapaz gente boa. Tranquilo, educado, do bem. Talvez fosse mais do que simplesmente educado. Polido? Era gentil e bem-humorado, com uma certa dose de timidez. Ou talvez não fosse exatamente tímido, apenas reservado. Cresceu sem grandes paixões, sem grandes desprazeres, sem grandes aventuras e sem grandes tristezas. Um carinha absolutamente normal, com seus gostos peculiares, suas manias, seu jeitão próprio. Seguro, sem ser impositivo. Tranquilo, sem ser apático. Interessante, sem chegar a sedutor. Normal.
Um certo dia, já adulto, interessou-se por uma bela mulher, inteligente, discreta e interessante, de rosto delicado e lindas pernas. Mulher para se admirar, antes de se desejar. Não era daquelas para sair agarrando e tentando a sorte. Não. Mulher direita, decidida, senhora de si. Mulher que não aceita ser tapeada nem seduzida à toa. Mulher difícil.
Tinho aproximou-se dela devagar, muito devagar, com sorrisos discretos e gentilezas sutis. Demonstrava seu interesse, sem escancarar seu desejo. Percebia nela, sem muita certeza, algum interesse por ele, também. Talvez não fosse exatamente interesse, mas curiosidade. Mas, discreta como era, nunca deu abertura para que ele efetivamente tentasse nada. Talvez porque não quisesse, mesmo. Ou talvez até quisesse, mas nunca demonstrou. E ele, bem, não tentou.
Ficou anos com aquele interesse por ela, sem nunca de fato tentar seduzi-la. Ela já estava até irritada. Era evidente o interesse dele por ela. Por que diabos não a chamava logo para sair? Não para um motel, mas para um jantar! Para um café, uma visita à sua casa? O que diabos ele estava esperando?
Aos poucos, a curiosidade dela, visto que ele não dava o primeiro passo, começou a minguar. Tornou-se apenas uma sensação boa de estar na presença dele, sem que isto nela causasse nenhum calor especial.
Certo dia, percebendo que ela parecia cada vez menos interessada, Tinho tomou coragem e fez um elogio um pouco mais direto. Elogio polido, delicado - não uma cantada. Ele tinha certeza de que as mulheres não gostavam de cantadas, mas de elogios. Ninguém ouviu o que ele disse, a não ser ela. Um elogio lapidado, bem pensado. Um elogio que toda mulher gostaria de ouvir e que ele, cuidadoso, conseguia dizer como nenhum outro.
Ela sorriu com o elogio. Olhou para ele, sorrindo, e fez um carinho em seu braço direito:
- Ai, Tinho. Você é tão bonzinho!
Ela falou assim, mesmo, com rima e tudo. Bonzinho. Pronto. Aquilo acabou com o dia dele. Bonzinho?! Porra, Bonzinho?! Sério?! Aquela palavra, assim, no diminutivo, foi como um banho de água fria em suas convicções sobre si mesmo. Sentiu-se pequeno, como seu sobrenome. Se fosse um nobre daqueles que aparecem nos livros de História, seria chamado de "Fernão Coutinho, o Bonzinho"?
Um homem pode ser chamado de qualquer coisa, menos de bonzinho. Aquele elogio era pior do que o pior do xingamentos. Um homem aceita ser chamado de bruto, insensível, troglodita, idiota, cretino, cafajeste, safado, nojento, manezão, escroto. Aceita, inclusive, ser chamado como animal: cavalo, cachorro, porco.
Os elogios, ah, os elogios poderiam até ser no diminutivo, delicados: fofo, gentil, cortês, cavalheiro, gracinha. Até gracinha! Mas nunca, jamais, se deve chamar um homem de bonzinho. Só faltou apertar a bochecha, e falar com voz de neném...
Bonzinho?! Ele sabia que não era exatamente um homem lindo, mas acreditava não ser um homem de se jogar fora. Ser chamado de bonzinho, o fez sentir como um garoto de 11 anos. Imberbe, inofensivo, pueril.
Seus olhos escuros, que ele acreditava serem profundos e cheios de mistério, de repente lhe pareceram apenas opacos e sem graça.
Seu jeito reservado, de gestos comedidos e charmosos, pareceram tornar-se mera timidez patológica, daquelas de gente que anda no elevador olhando para o chão.
Seu gosto refinado e conhecimento de muitos assuntos, pareceram-lhe apenas desculpas de um fraco que se esconde daquilo que as pessoas gostam, para não ter que encará-las. Gostava do que ninguém mais gostava, para não ter que se deparar com alguém com quem tivesse que engrenar uma conversa além do mero trivial.
Sua barba por fazer, que ele achava ser sedutora, pareceu-lhe apenas desleixo de um playboyzinho sem sal, doido para se parecer com o cowboy da Marlboro, que via nos anúncio da infância.
Seu perfume pareceu-lhe demasiado forte, como o de um tiozinho grisalho que sai à caça de alguma gatinha, depois de um divórcio.
Ser chamado de bonzinho fez com que suas gentilezas e seus elogios, que antes ele acreditava serem sedutores e afiados, tornassem-se inócuos feito o elogio do amigo gay, para o qual se conta todos os segredos, mas sobre o qual não se pensa enquanto se compra batom ou lingerie.
Tudo aquilo que ele havia moldado sobre si mesmo como homem adulto, caiu por terra: era um homem bonzinho. Inofensivo feito um filhote de gato. O misterioso tornou-se apenas previsível. O galanteador tornou-se apenas simpático. O charmoso, apenas bem-apessoado. O sedutor, porra, apenas bonzinho.
Daquele dia em diante, resolveu deixar de ser o Tinho, para se tornar Fernão. Sumiu de vista por uns tempos. Entrou para a academia, ficou mais forte. Passou a ouvir música eletrônica e rock pesado. Fez uma tatuagem em preto e branco no braço. Parou de usar gel no cabelo. Na verdade, parou até de usar xampu, lavando a cabeça só com sabonete, mesmo. Pente? Nunca mais. Não deixou a barba crescer por completo, porque a pele sensível coçava demais. Mas, nos dias estratégicos, passava a máquina zero, para ficar com a barba áspera, bem curtinha, e cara de cafajeste.
Aprendeu a temperar suco de tomate com pimenta, molho inglês, sal e limão. Aprendeu a fazer omelete com rum. Comprou óculos escuros tipo aviador, a la Top Gun. Do sedan pequeno, com câmbio automático, furou o escapamento, para ficar com barulho de carro de aventureiro, off-road, a diesel. Isto, antes de ter o seu próprio off-road. Endividou-se para pagar uma viagem à Itália, onde aprendeu a comprar ternos, e à Austrália, onde aprendeu a pegar ondas, já dono de um colar de dentes de tubarão polidos. Postou tudo no Facebook. E voltou.
Um dia, sem querer, Fernão encontrou de novo com aquela bela mulher que conhecera anos antes e que o chamara de bonzinho, sem saber do impacto que isto tinha causado em sua vida. E agora, maduro, destemido e realmente sedutor, cheio de histórias para contar, conseguiu seduzi-la. Não com jeito troglodita, nem cafajeste, mas com o mesmo jeitinho tranquilo, do qual tentara se livrar naqueles dois anos anteriores. Seduziu-a não como um troféu, não como uma confirmação da sua transformação de Tinho, o Bonzinho, em Fernão, o Conquistador. Passou a noite ali porque ela habitava suas fantasias há muito tempo, porque queria, de verdade, estar com ela. E ela com ele. Tê-la nos braços foi um elo do presente com um passado que, pensando bem, não havia porquê negar. Tê-la nos braços era uma confirmação de que Fernão e Coutinho não eram necessariamente nomes opostos.
Ele acordou antes dela. O sol ainda dormia. Levantou-se sem fazer barulho e escreveu-lhe um bilhetinho, com o mesmo elogio que fizera anos antes. E assinou:
Fernão, ou Tinho.
Como prefira aquela que nunca me saiu da cabeça...
Como prefira aquela que nunca me saiu da cabeça...
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
O Mala
- Qual é o seu destino, senhor?
- Destino? Minha filha, meu destino está sendo escrito à medida em que vivo. Não sei para onde vou, mas sei que vou em frente, certo de que amanhã será melhor do que ho...
- SENHOR?! SENHOR?! GENTE, ALGUÉM CHAMA UM MÉDICO! ACHO QUE O HOMEM MORREU! PRÓXIMOOOO!
domingo, 12 de janeiro de 2014
O House não Existe
Texto original de Maio de 2012.

Não sei se já comentei alguma vez, mas eu adoro o House. Ele é uma espécie de alter ego grosseiro, cavalo, estúpido e bruto, de todos nós. Ele pode dizer coisas que ninguém diz. Desafiar pessoas que ninguém pode. Ele manda e desmanda, manipula e adapta a realidade à sua própria vontade e aos seus próprios caprichos. Ele demite, para recontratar 5 minutos depois. E despedir de novo imediatamente. O House é um adolescente que nunca cresceu e que, por ser um gênio, exige que o mundo pague um alto preço, aturando-o a qualquer custo, já que está sempre certo. Quem não tem vontade de sair por aí dizendo verdades - ou inverdades, não importa - sem dar a mínima para as consequências e para a opinião de quem as escuta?
É, mas o House não existe. Nem poderia. Pode até haver um cara extremamente mal-humorado, como ele. Vejo um todos os dias, quando faço a barba de manhã. Pode até haver alguém que manipule o mundo ao seu redor, para atender às suas vontades. Mas ninguém assim consegue manter um bom emprego por muito tempo. Ninguém assim vai ter amigos - até porque não existe ninguém como o Wilson ou como a Cuddy (saudades da Cuddy...). Esses personagens são caricaturas levadas ao extremo dos traços que as definem.
A vida adulta, real, é diferente. A diferença entre a palavra do adulto e a da criança, é que a da criança se pode perdoar com mais facilidade. Se minhas filhas olham para mim com cara de ódio e dizem "Eu te odeio", eu vou segurar a risada, porque não vou acreditar nelas e porque sei que em 5 minutos, a atitude delas será outra. Mas, se um adulto olha para mim e diz "Eu te odeio", eu vou acreditar. E vai levar um bom tempo até que ele me convença de que aquilo não era, de fato, verdade.
Felizmente, nunca ouvi "Eu te odeio" de ninguém. Mas já fui desacreditado, já vi olhares de desconfiança, já deixei de gostar de pessoas pelo que elas disseram, já levei broncas por erros que não cometi. Aceito todas as críticas do mundo pelos erros que cometi. Mas me nego a ouvir um "Ah" por algo que não devo. Eu não sou o Wilson. E, claro, já fui colocado contra a parede por erros que cometi, mesmo sabendo-os como tal. Já fui, sim, um pouco House. Você, certamente, também.
Existe entre nós, contemporâneos dos computadores, uma sensação de que tudo pode ser desfeito com facilidade. É o que eu chamo de "Geração Undo". Undo é aquele comando que desfaz as operações, no computador. Se você erra, você dá um Undo. Desfaz, com facilidade, o erro que acabou de cometer. E, se o erro for maior, mais grave, cometido dias atrás, você restaura do backup. Se você morre, no video-game, você recebe mais uma vidinha e continua a jogar. Nada é final. Nada é definitivo.
Algumas pessoas transferem isto para a vida real. Magoou alguém? É só pedir desculpas! Transou sem camisinha? Toma a pílula do dia seguinte e relaxa! Repetiu de ano? Faz de novo! Para quê a pressa? Bebeu demais? Toma um Engov! Ou uma glicosesinha na veia, o que é que tem? Bateu o carro? Ah, o seguro cobre! Atropelou alguém? O papi molha a mão do policial e me livra da cadeia.
É por isso que os acidentes de trânsito estão cada vez mais graves. Porque motoristas cada vez mais bêbados, correm cada vez mais rápido, em carros cada vez mais caros. Ministros roubam quantias cada vez maiores e contam mentiras cada vez mais estúpidas para escândalos cada vez mais escancarados. Tudo é hiperbólico - mas a sensação é de que as consequências para o que se diz, se pensa ou se faz, são cada vez menores. Perigosamente menores. É o mundo do falso "Você sabe com quem está falando?", em que todo mundo se sente imune às consequências dos próprios erros.
Só que, alguns desses erros, são realmente definitivos. Não dá pra consertar a vidraça depois que quebrou. Você pode trocá-la, e até se esquecer da que quebrou. Mas a quebrada estará, para sempre, irremediavelmente quebrada.
Entender que isto faz parte da realidade, e que a vida adulta terá algumas cicatrizes, causadas pelos cacos de algumas daquelas vidraças quebradas, deve nos tornar mais cautelosos e alertas, e não mais irresponsáveis. Arranhado que fui por alguns desses cacos, tento todos os dias fazer minhas filhas entenderem que as consequências daquilo pelo qual se opta, são tão reais quanto as consequências daquilo que se negligenciou - intencionalmente ou não. Ponderar, medir, avaliar, são ferramentas que se aprende a usar. Crianças que não são submetidas a este aprendizado, ao meu ver, podem se tornar Houses quando crescerem: não estarão prontas para as consequências que, inevitavelmente, virão. Cedo ou tarde. Pelas próprias mãos ou pelas dos outros.
Eu costumo brincar, dizendo que nunca dou "Bom Dia" antes das 8 horas da manhã: porque nenhum dia pode ser bom a esta hora da madrugada. Mas isto é mentira. Eu dou "Bom Dia", sim. Porque as pessoas não têm culpa se meu cerébro de manhã é retardado. Assim como eu não estou nem aí para a sua TPM. E seu chefe não quer nem saber se você não dormiu a noite toda porque estava discutindo a relação com seu parceiro. Nada disso interessa a ninguém, e você precisará de muita sorte para que alguém releve uma grosseria, só porque entendeu que você estava "com a cabeça quente". Cansaço, todo mundo entende e até perdoa. Grosseria, ninguém. Eu mesmo gostaria de ter lembrado disso mais vezes.
É, a vida seria engraçada se eu pudesse ser como o House e se o mundo fosse como o Wilson. Mas seria demasiadamente fácil. E assustadoramente triste.
É, a vida seria engraçada se eu pudesse ser como o House e se o mundo fosse como o Wilson. Mas seria demasiadamente fácil. E assustadoramente triste.
domingo, 6 de outubro de 2013
Noite às escuras
Quando criança, tinha sentido pavor do escuro. Não sabia exatamente o porquê, mas tinha. Com o passar do anos, já adulto, o pavor deu lugar a um mero desconforto. Mas o fato é que havia algo no escuro que sempre lhe causara certo temor.
Nunca tivera qualquer trauma específico envolvendo escuro. Até aquela data, nunca tinha ficado sozinho em casa quando faltara luz, nem tinha tido qualquer experiência sobrenatural - embora tivesse, também, medo de assombração. "Eu não acredito em fantasmas. Mas que eles existem, ah, existem", dizia. Adorava filmes de terror, jogos de terror, história de fantasmas. Adorava desafiar seu medo no conforto do seu sofá, sob a luminosidade acolhedora vinda da tela da TV.
Às vezes, corajoso, obrigava-se a andar no escuro dentro de casa, depois que anoitecia. Sentia os pelos do braço eriçados, mas não corria, enfrentando o medo que não sabia explicar e também não divulgava a ninguém.
Tinha especial fascínio também pelos bichos que viviam na completa escuridão: seres das cavernas, peixes abissais e outras criaturas da noite. "Todos fascinantes".
Enfim, convivia com aquele desconforto desde sempre. Não era algo que lhe incomodasse ou perturbasse. Apenas estava lá, acompanhando-o desde sempre.
Certo dia, no entanto, aconteceu um episódio curioso. Era umas 23h, estava em casa sozinho e faltou luz. Não era uma mera queda de energia no bairro, não. Da sua janela viu - ou na verdade, não viu - a cidade escura por onde olhasse. Um apagão completo.
Era uma noite sem luar. O céu nublado deixava o ar pesado e opaco. Até os carros pareciam ter ido dormir. Não havia circulação. Estava escuro pra valer. Nem barulhos havia. Era como se alguém tivesse congelado o mundo exatamente como descreveu Saramago, mas ao contrário: preto. Completamente preto.
Em poucos instantes, olhando a janela dos outros prédios próximos ao seu, via retângulos iluminados, flutuando de um lado para o outro nos apartamentos escuros. Pois é, até as velas tinham sido substituídas pelos celulares de tela grande o suficiente para serem mais interessantes do que o resto do mundo. "Será que as baterias destes celulares acesos duram mais do que uma vela?". Tentou ligar seu próprio celular, mas estava completamente sem bateria, desde aquela tarde. Apagado de vez.
Onde teria deixado as velas, afinal? "Na cozinha, com certeza". Começou a tatear, devagar. Se as luzes estivessem acesas, provavelmente conseguiria fazer facilmente aquele trajeto, mesmo com os olhos completamente fechados. Mas, no escuro, não. Foi tateando lentamente, com os braços esticados e duros à frente do corpo, os olhos esbugalhados tentando captar qualquer resquício de luz e as mãos bem abertas, esperando tocar a parede à qual nunca chegava. Não estava exatamente com medo, apenas queria poder enxergar alguma coisa à frente do nariz.
Os pés arrastavam-se, como que temerosos de que ao se descolarem do chão por um instante, pudessem perdê-lo de vez. O grande tapete não lhe permitia sequer sentir as emendas das tábuas do piso, que poderiam servir-lhe de referência. Nada. Andava vagarosamente sobre o tapete com os olhos e o tato vendados pela escuridão, já perguntando-se se tinha ido para a direção oposta, até que sentiu uma dor lancinante quando o dedinho do pé esquerdo encontrou o batente da porta da cozinha, que, inexplicavelmente, tinha ido parar ali.
Soltou um palavrão, esperou a dor passar e seguiu tateando. Estava finalmente na cozinha. Queria chegar às gavetas, onde imaginava que encontraria velas.
Finalmente, encontrou. Enquanto mexia na vela, ela escorregou da sua mão e caiu no chão. Pode ouvi-la rolando, embora não tivesse ideia de para qual direção tinha ido. Provavelmente quebrara-se. "Saco!". Passou a ter medo de pisar no chão, e escorregar nos pedaços de vela que, àquela altura, certamente tinham a intenção deliberada de derrubá-lo.
Teve uma ideia brilhante: acender um fósforo! Iluminaria rapidamente o ambiente, acharia a vela, acenderia o pavio, e voilá!
Isso, se houvesse fósforos. Mas não havia. Nenhum. Necas de pitibiribas. Estava definido: suas próximas horas seriam na mais completa escuridão.
Depois de desistir de sua procura em vão pelos fósforos, mesmo depois de ter achado três outras velas, decidiu voltar para a sala, já deslocando-se com melhor desenvoltura pela escuridão. Sentou-se no sofá, pôs as mãos no colo e ali ficou por alguns segundos, pensando no que fazer. "Acho que vou dormir". Mas não sentia sono. Ao contrário, estava mais acordado e alerta do que nunca. E sentia-se relaxado. Não estava com medo, e estranhou o fato. Afinal, quando havia luz, ficar no escuro parecia-lhe desagradável. Mas, quando não havia, e o escuro era sua única opção, pareceu-lhe perfeitamente suportável. Ou, mais do que isso, curiosamente interessante.
Jogou-se para trás, encostando-se no sofá. Cruzou os dedos atrás da cabeça e "olhou" para o teto. Na verdade, não havia nada para olhar, mas imaginou que estivesse olhando para o teto. Respirou fundo, acomodou-se no sofá e, sem querer, adormeceu.
Acordou sobressaltado. "Quanto tempo se passou?" Ainda estava escuro. "Será que já é madrugada?". A que horas ia acordar mesmo? "Será que o despertador já vai tocar? Não posso me atrasar hoje! Já é hoje? Ou ainda é ontem?". Os passarinhos não cantavam. Normalmente, quando acordava antes do despertador, ouvia os passarinhos cantando, muito antes do sol nascer. Mas estavam silenciosos. "É porque é tarde demais ou cedo demais?"
As ruas e as janelas dos outros prédios continuavam às escuras. O blecaute prosseguia. Os olhos, já completamente despertos, conseguiam distinguir a silhueta de alguns objetos na casa. Percebeu que ainda estava com o relógio de pulso. Tentou olhar as horas, mas não conseguiu.
Levantou-se e foi facilmente caminhando até a cozinha. Encheu um copo com água sem derrubá-la, ouvindo apenas o barulho do copo se enchendo, e tomou. Lembrou-se que na geladeira havia um pedaço de queijo minas e um finzinho do pote de dulce de leche que havia trazido de sua viagem recente a Buenos Aires. Comeu, tentando se lembrar se aquele doce de leite estava mais para clarinho ou mais para escurinho. Fez tudo isto na completa escuridão. Fácil e naturalmente.
Foi para o quarto, ficou de cuecas e deitou-se. Largou a roupa no chão. "Ah, vai lavar, mesmo". E adormeceu de novo, "olhando" para o teto.
Acordou com os primeiros raios do sol entrando pela janela, que havia se esquecido de fechar. O rádio-relógio piscava 00:00. Virou-se de lado e, graças à luz da manhã, conseguia finalmente ver as horas no relógio de pulso: faltavam alguns minutos para as seis. Levantou-se, tomou banho, escovou os dentes e seguiu adiante com seu dia.
Talvez ele ainda não tenha notado, mas desde aquele dia, seu medo de escuro passou. Não sente mais incômodo algum. Os pelos do braço não se eriçam mais. Não se obriga a andar devagar controlando o medo enquanto caminha pelo corredor da própria casa. Estar no escuro, não ver, ter que tatear ou usar os ouvidos para conseguir encher o copo d'água, serviram para aguçar-lhe os sentidos, e mostrar-lhe que o escuro às vezes é não apenas inevitável, como bem-vindo.
Mas, o mais curioso de tudo, não é que o medo do escuro tenha passado. É que ele nunca vá saber quanto tempo ficou adormecido nas duas vezes em que pegou no sono naquela noite. Talvez tenha dormido horas no sofá, e minutos na cama. Ou minutos no sofá e horas na cama. Aquela foi uma noite que ele não sabe - e nunca saberá - exatamente como passou.
Mas, passou. E talvez vá se dar conta, provavelmente com alegria, que o medo do escuro, "quem diria?", também.
Nunca tivera qualquer trauma específico envolvendo escuro. Até aquela data, nunca tinha ficado sozinho em casa quando faltara luz, nem tinha tido qualquer experiência sobrenatural - embora tivesse, também, medo de assombração. "Eu não acredito em fantasmas. Mas que eles existem, ah, existem", dizia. Adorava filmes de terror, jogos de terror, história de fantasmas. Adorava desafiar seu medo no conforto do seu sofá, sob a luminosidade acolhedora vinda da tela da TV.
Às vezes, corajoso, obrigava-se a andar no escuro dentro de casa, depois que anoitecia. Sentia os pelos do braço eriçados, mas não corria, enfrentando o medo que não sabia explicar e também não divulgava a ninguém.
Tinha especial fascínio também pelos bichos que viviam na completa escuridão: seres das cavernas, peixes abissais e outras criaturas da noite. "Todos fascinantes".
Enfim, convivia com aquele desconforto desde sempre. Não era algo que lhe incomodasse ou perturbasse. Apenas estava lá, acompanhando-o desde sempre.
Certo dia, no entanto, aconteceu um episódio curioso. Era umas 23h, estava em casa sozinho e faltou luz. Não era uma mera queda de energia no bairro, não. Da sua janela viu - ou na verdade, não viu - a cidade escura por onde olhasse. Um apagão completo.
Era uma noite sem luar. O céu nublado deixava o ar pesado e opaco. Até os carros pareciam ter ido dormir. Não havia circulação. Estava escuro pra valer. Nem barulhos havia. Era como se alguém tivesse congelado o mundo exatamente como descreveu Saramago, mas ao contrário: preto. Completamente preto.
Em poucos instantes, olhando a janela dos outros prédios próximos ao seu, via retângulos iluminados, flutuando de um lado para o outro nos apartamentos escuros. Pois é, até as velas tinham sido substituídas pelos celulares de tela grande o suficiente para serem mais interessantes do que o resto do mundo. "Será que as baterias destes celulares acesos duram mais do que uma vela?". Tentou ligar seu próprio celular, mas estava completamente sem bateria, desde aquela tarde. Apagado de vez.
Onde teria deixado as velas, afinal? "Na cozinha, com certeza". Começou a tatear, devagar. Se as luzes estivessem acesas, provavelmente conseguiria fazer facilmente aquele trajeto, mesmo com os olhos completamente fechados. Mas, no escuro, não. Foi tateando lentamente, com os braços esticados e duros à frente do corpo, os olhos esbugalhados tentando captar qualquer resquício de luz e as mãos bem abertas, esperando tocar a parede à qual nunca chegava. Não estava exatamente com medo, apenas queria poder enxergar alguma coisa à frente do nariz.
Os pés arrastavam-se, como que temerosos de que ao se descolarem do chão por um instante, pudessem perdê-lo de vez. O grande tapete não lhe permitia sequer sentir as emendas das tábuas do piso, que poderiam servir-lhe de referência. Nada. Andava vagarosamente sobre o tapete com os olhos e o tato vendados pela escuridão, já perguntando-se se tinha ido para a direção oposta, até que sentiu uma dor lancinante quando o dedinho do pé esquerdo encontrou o batente da porta da cozinha, que, inexplicavelmente, tinha ido parar ali.
Soltou um palavrão, esperou a dor passar e seguiu tateando. Estava finalmente na cozinha. Queria chegar às gavetas, onde imaginava que encontraria velas.
Finalmente, encontrou. Enquanto mexia na vela, ela escorregou da sua mão e caiu no chão. Pode ouvi-la rolando, embora não tivesse ideia de para qual direção tinha ido. Provavelmente quebrara-se. "Saco!". Passou a ter medo de pisar no chão, e escorregar nos pedaços de vela que, àquela altura, certamente tinham a intenção deliberada de derrubá-lo.
Teve uma ideia brilhante: acender um fósforo! Iluminaria rapidamente o ambiente, acharia a vela, acenderia o pavio, e voilá!
Isso, se houvesse fósforos. Mas não havia. Nenhum. Necas de pitibiribas. Estava definido: suas próximas horas seriam na mais completa escuridão.
Depois de desistir de sua procura em vão pelos fósforos, mesmo depois de ter achado três outras velas, decidiu voltar para a sala, já deslocando-se com melhor desenvoltura pela escuridão. Sentou-se no sofá, pôs as mãos no colo e ali ficou por alguns segundos, pensando no que fazer. "Acho que vou dormir". Mas não sentia sono. Ao contrário, estava mais acordado e alerta do que nunca. E sentia-se relaxado. Não estava com medo, e estranhou o fato. Afinal, quando havia luz, ficar no escuro parecia-lhe desagradável. Mas, quando não havia, e o escuro era sua única opção, pareceu-lhe perfeitamente suportável. Ou, mais do que isso, curiosamente interessante.
Jogou-se para trás, encostando-se no sofá. Cruzou os dedos atrás da cabeça e "olhou" para o teto. Na verdade, não havia nada para olhar, mas imaginou que estivesse olhando para o teto. Respirou fundo, acomodou-se no sofá e, sem querer, adormeceu.
Acordou sobressaltado. "Quanto tempo se passou?" Ainda estava escuro. "Será que já é madrugada?". A que horas ia acordar mesmo? "Será que o despertador já vai tocar? Não posso me atrasar hoje! Já é hoje? Ou ainda é ontem?". Os passarinhos não cantavam. Normalmente, quando acordava antes do despertador, ouvia os passarinhos cantando, muito antes do sol nascer. Mas estavam silenciosos. "É porque é tarde demais ou cedo demais?"
As ruas e as janelas dos outros prédios continuavam às escuras. O blecaute prosseguia. Os olhos, já completamente despertos, conseguiam distinguir a silhueta de alguns objetos na casa. Percebeu que ainda estava com o relógio de pulso. Tentou olhar as horas, mas não conseguiu.
Levantou-se e foi facilmente caminhando até a cozinha. Encheu um copo com água sem derrubá-la, ouvindo apenas o barulho do copo se enchendo, e tomou. Lembrou-se que na geladeira havia um pedaço de queijo minas e um finzinho do pote de dulce de leche que havia trazido de sua viagem recente a Buenos Aires. Comeu, tentando se lembrar se aquele doce de leite estava mais para clarinho ou mais para escurinho. Fez tudo isto na completa escuridão. Fácil e naturalmente.
Foi para o quarto, ficou de cuecas e deitou-se. Largou a roupa no chão. "Ah, vai lavar, mesmo". E adormeceu de novo, "olhando" para o teto.
Acordou com os primeiros raios do sol entrando pela janela, que havia se esquecido de fechar. O rádio-relógio piscava 00:00. Virou-se de lado e, graças à luz da manhã, conseguia finalmente ver as horas no relógio de pulso: faltavam alguns minutos para as seis. Levantou-se, tomou banho, escovou os dentes e seguiu adiante com seu dia.
Talvez ele ainda não tenha notado, mas desde aquele dia, seu medo de escuro passou. Não sente mais incômodo algum. Os pelos do braço não se eriçam mais. Não se obriga a andar devagar controlando o medo enquanto caminha pelo corredor da própria casa. Estar no escuro, não ver, ter que tatear ou usar os ouvidos para conseguir encher o copo d'água, serviram para aguçar-lhe os sentidos, e mostrar-lhe que o escuro às vezes é não apenas inevitável, como bem-vindo.
Mas, o mais curioso de tudo, não é que o medo do escuro tenha passado. É que ele nunca vá saber quanto tempo ficou adormecido nas duas vezes em que pegou no sono naquela noite. Talvez tenha dormido horas no sofá, e minutos na cama. Ou minutos no sofá e horas na cama. Aquela foi uma noite que ele não sabe - e nunca saberá - exatamente como passou.
Mas, passou. E talvez vá se dar conta, provavelmente com alegria, que o medo do escuro, "quem diria?", também.
terça-feira, 30 de julho de 2013
O Dia Seguinte
Foto de Mariana Conde |
Diga que levantou-se, lavou o rosto e teve coragem de olhar-se no espelho enquanto escovava os dentes.
Diga que abriu a janela e deixou a luz entrar. E que fez a cama.
Diga que colocou pelo menos uma peça de roupa colorida.
Diga que penteou os cabelos e passou perfume. E que calçou sapatos, não pantufas.
Diga que tomou café da manhã, e sentiu seu gosto.
Diga que ouviu o barulho dos próprios passos enquanto caminhava até o carro. E que o fez sem óculos escuros.
Diga que ligou o rádio, sem medo das músicas que pudessem tocar.
Diga que foi, sim, trabalhar, e que quase ninguém notou nada de diferente. E que a única pessoa que notou, respeitou seu silêncio, mas ofereceu colo, se lhe quiser contar.
Diga que deu "Bom Dia", atendeu ligações, reclamou de algo, resolveu coisas, mexeu-se.
Diga que na hora do almoço, não comeu só salada nem tomou só água. E que perdoou-se por ter aceito a sobremesa.
Diga que a tarde passou surpreendentemente rápido, como qualquer outra.
Diga que ao voltar para casa, demorou-se um pouco mais no banho quente. E que usou uma toalha seca e macia para se enxugar.
Diga que vestiu uma roupa, não um roupão.
Diga que não se sentou em frente à TV só para ouvir uma voz qualquer. E que lembra de pelo menos uma notícia do telejornal.
Diga que jantou e depois tomou um licor, ou comeu um bombom.
Diga que escovou os dentes antes de deitar.
Diga que não manteve o abajur aceso por medo de pesadelos.
E que o silêncio da noite não lhe fez ensurdecer com os próprios pensamentos.
E diga que logo antes de adormecer, permitiu-se um suspiro de alívio. Porque sabe que haverá na vida outros dias seguintes. Mas que este, felizmente, já terminou. Boa noite.
domingo, 30 de junho de 2013
E ai de quem não coma!
Era um chato. Pense num cabra chato? Era ele: uma pessoa dotada de uma inteligência ímpar para tudo que fosse cricri, enjoado, metódico e implicante. Um chato natural, puro-sangue, que nascera com o gene da chatice duplo-dominante. Chato com pedigree. Porra, como era chato!
Certo dia, ainda lembrava-se muito bem, quando iniciou as aulas no ginásio, participou de uma dinâmica de grupo em que cada um deveria responder, na roda: "Se você fosse usar uma única palavra para definir-se, qual seria?". As outras crianças, normais, definiram-se como "simpáticas", "alegres", "amigas", "sorridentes". Ele: "perfeccionista". Tinha consciência plena da própria chatice. E nada podia fazer para mudá-la.
Na infância, tinha um problema com os cadarços: precisavam ser milimetricamente alinhados, para que o laço pudesse ser dado com a precisão devida. Não podia haver voltas, nem torções. Após colocá-lo no tênis e esticar a pontas, para medir seu comprimento, a diferença entre elas tinha que ser nula - e isto deveria acontecer "de primeira". Caso contrário, tirava o cadarço todo e colocava-o de novo, paciente e doentiamente, tantas vezes quanto fosse necessário, ou quantas os adultos normais ao seu redor permitissem, antes de explodirem de raiva e indignação com tamanha chatice.
Não comia verduras de nenhum tipo, em nenhuma hipótese, o que lhe valeu o ilustrativo apelido de "Verdurinha", criado por um amigo do pai, que via em tirar-lhe sarro o melhor de todos os passatempos.
Como demonstração de sua chatice, um dia, durante o almoço, estranhou a cor das batatas em rodelas, que adorava:
- Mãe, por que a batata está esverdeada?
- É o tipo de batata, que é diferente, filho. Gostou?
- É, é boa.
- Então come, filho. Come.
Terminada a refeição, soube a verdade: era chuchu. Sua mãe, coitada, mentira para fazer-lhe comer. E Verdurinha passou anos sem comer chuchu. Só foi fazê-lo quando sua filha, já grande, arrumou um namorado.
Os pais de Verdurinha, corajosos e dedicados, odiavam vê-lo adormecer no carro. Porque, já grandinho, ao ser despertado, mesmo que carregado no colo, transforma-se em um ser das trevas. Ficava intragável e sua chatice, naturalmente elevada, parecia ser açoitada pelos deuses do azedume, para tornar-se hiperbólica e completamente insuportável.
Mas, como o tempo é generoso, Verdurinha cresceu e sua chatice foi abrandada. Tornou-se um homem relativamente normal, exceto pelo fato de não gostar de café, nem de sushi, nem de mamão, nem de assovios (dizia que era coisa de velho. Vai entender...) e preferir suspensórios a cintos. Tornara-se supervisor de segurança da informação, em uma empresa de auditoria internacional, trabalho que nunca conseguira explicar a ninguém que, educadamente, lhe perguntava qual era sua profissão e que ele, ingenuamente, acreditava ser interesse verdadeiro em sua pessoa tão desinteressante.
Por uma dessas coisas inexplicáveis da vida, Verdurinha começou a namorar com uma moça completamente maluquinha das ideias, uma meia-irmã de um de seus amigos de infância, apelidado de Zacarias, por causa da voz fina que manteve até quase o final da adolescência.
A moça era divertida e desencanada, tinha os cabelos revoltos e assimétricos, olhos grandes e vivos e lábios inquietos, cujos beijos exagerados e gostosos lhe surpreendiam e excitavam. Era tão doidinha, imagine, que fez xixi de porta aberta, na primeira vez em que dormiram juntos! Cortava sozinha os próprios cabelos e nunca, jamais, usava salto alto.
Seu apelido era Polilla, que quer dizer "traça" em espanhol. Quando adolescente, ela fizera intercambio no Panamá (por vontade própria, e não por falta de vagas na Nova Zelândia ou nos EUA) e, por passar o dia todo com a manga da blusa na boca, como se a quisesse comer feito uma traça, ganhara dos colegas de escola o apelido de "Polilla".
Eram uma espécie de Eduardo e Mônica: diferentes, mas surpreendentemente compatíveis. Namoraram por 8 meses e começavam a acreditar que aquela relação meio amalucada poderia realmente dar certo.
Foi quando surgiu para Polilla uma oportunidade irrecusável: estudar gastronomia em Quebec, no Canadá. Não aguentava mais trabalhar como recepcionista de consultório e queria mesmo era ser chef de cozinha. Aprendera francês ainda jovem, motivada por entender as músicas pelas quais se apaixonara quando criança, enquanto ouvia-as com a mãe, uma goiana deslumbrada pela França, embora nunca tivesse colocado os pés lá. Seu ótimo francês abriu-lhe as portas para a bolsa de estudos na cidade mais francesa do Canadá.
Chegou o dia de Polilla contar a Verdurinha sobre seus planos. Uma tragédia. Verdurinha finalmente sentia-se uma pessoa normal, finalmente sentia-se gostado por alguém que não fosse da família e que lhe fazia, de algum modo, mais livre, mais feliz e mais irresponsável - exatamente como sempre quis ser. E agora, justamente agora, este alguém iria deixar-lhe. Ficou arrasado.
Polilla partiu no final no Fevereiro e chegou ao Canadá em pleno inverno, sob uma forte nevasca. Nunca tinha visto neve e aquela visão tão bonita fez-lhe lembrar de Verdurinha e do calor de suas mãos. Não pensava nele pelo nome de "Verdurinha", que nem sequer conhecia, mas pelo apelido que lhe tinha dado, dois meses depois de começarem a se ver: "Cri", de "cricri", como reconhecimento terno à chatice da qual ela, inexplicavelmente, aprendera a gostar.
Verdurinha estava triste, como nunca havia se sentido. Seus dias sem Polilla eram cheios de nada, cinzas, longos e insípidos, como ele. Não suportava o próprio gosto e sentia uma falta de Polilla que, pela inabilidade com as palavras, não conseguia descrever.
E assim ficaram, completamente afastados e incomunicáveis, por meses. Polilla continuou seus estudos e até trocou uns beijos com um colega romeno, que também estudava na mesma escola de gastronomia. Sem grandes envolvimentos, só uns beijos, mesmo.
Verdurinha seguiu com sua vidinha, resumida a assistir seriados legendados, que baixava da internet, jogar Playstation 3, assistir vídeos pornôs em sites gratuitos e, quando tinha sorte, aos finais de semana, dar uns amassos em alguma feinha bêbada, depois que a noite já estivesse longa o suficiente para que ela aceitasse que ele seria a única coisa que conseguiria, depois de tanta cerveja.
Após vários meses sem falar com Polilla, um dia seu telefone tocou às 11h30, na manhã de um sábado com ar parado, seco e frio.
- O que é? - atendeu ele, com seu tradicional mau-humor matinal, com voz de travesseiro babado.
- Te acordei?
- Quem está falando?
- Te acordei, Cri?
Só ela o chamava de "Cri". Seu coração parou por um momento. Não imaginou que ouvir sua voz pudesse causar-lhe algum impacto, depois de tantos meses de afastamento.
- Polilla?! - falou, sentando-se, surpreso com o volume da própria voz.
- Como você está, Cri?
Ele fez uma longa pausa, já completamente desperto e sentado na cama; uma pausa longa o suficiente para ela achar que a ligação havia caído.
- Alô? Cri?
- Estou aqui.
- Achei que a ligação tivesse caído... Como você está, menino? - ela tinha mania de chamá-lo de menino. A voz não deixava dúvidas: estava sorrindo.
Ele fez novamente uma longa pausa.
- Cri?!
- Estou com saudade, Polilla.
A pausa desta vez foi dela. Ele ficou imaginando se ela estava surpresa com a resposta. Ficou lembrando do rosto que ela fazia quando se surpreendia com alguma coisa, fechando os olhos grandes demoradamente, soltando um suspiro curto e um discreto e adorável sorriso nos lábios.
- Estou voltando para o Brasil, Cri.
Ele também sorria, em silêncio.
- Chego amanhã.
Verdurinha foi apanhá-la no aeroporto. Chegou 2 horas antes, tamanha era a ansiedade.
Polilla chegara diferente, mais madura e mais bonita. Os cabelos estavam bem cortados e simétricos, mais lisos do que antes da viagem. A pele estava mais branca, talvez pela menor generosidade do sol canadense. Mas os olhos, ah, esses eram os mesmos: grandes, escuros e vivos, exatamente como os conhecera.
Sem rodeios nem palavras, abraçaram-se e beijaram-se, como se nunca tivessem se afastado. Um beijo delicado e discreto, de quem não tem nada a provar, nada a explicar, nada que já não soubessem de cor.
Verdurinha voltou a ser homem que Polilla fazia dele, o homem que queria ser. Nunca acostumou-se a comer chuchu, nem tomar café. Mas aprendeu a comer as esquisitices que Polilla, com seu paladar treinado e refinado, preparava. De vez em quando pedia para ela fazer frango com arroz e feijão, mas não recusava seus outros pratos, de nome difícil.
Quando nasceu a primeira filhinha do casal, deram a ela o apelido de "Corú", um pseudo-diminutivo de Coruja. A moleca simplesmente não dormia à noite e trazia, ainda pequena, um pouco dos traços chatonildos do pai, mas disfarçados pelo sorriso fácil, herdado da mãe.
Mesmo agora, já crescida, vive sendo repreendida pelos pais, porque não tira a roupa da boca - tal como fazia a mãe, quando jovem. E ouve-se à boca miúda que Corú está de namorico com um garoto que, puta que pariu, é o maior chato de mundo!
O menino vai almoçar na casa deles, no próximo domingo. E Verdurinha já decidiu que, neste dia, é inegociável: vai haver chuchu na mesa. E ai de quem não coma! Ai de quem não coma!
Certo dia, ainda lembrava-se muito bem, quando iniciou as aulas no ginásio, participou de uma dinâmica de grupo em que cada um deveria responder, na roda: "Se você fosse usar uma única palavra para definir-se, qual seria?". As outras crianças, normais, definiram-se como "simpáticas", "alegres", "amigas", "sorridentes". Ele: "perfeccionista". Tinha consciência plena da própria chatice. E nada podia fazer para mudá-la.
Na infância, tinha um problema com os cadarços: precisavam ser milimetricamente alinhados, para que o laço pudesse ser dado com a precisão devida. Não podia haver voltas, nem torções. Após colocá-lo no tênis e esticar a pontas, para medir seu comprimento, a diferença entre elas tinha que ser nula - e isto deveria acontecer "de primeira". Caso contrário, tirava o cadarço todo e colocava-o de novo, paciente e doentiamente, tantas vezes quanto fosse necessário, ou quantas os adultos normais ao seu redor permitissem, antes de explodirem de raiva e indignação com tamanha chatice.
Não comia verduras de nenhum tipo, em nenhuma hipótese, o que lhe valeu o ilustrativo apelido de "Verdurinha", criado por um amigo do pai, que via em tirar-lhe sarro o melhor de todos os passatempos.
Como demonstração de sua chatice, um dia, durante o almoço, estranhou a cor das batatas em rodelas, que adorava:
- Mãe, por que a batata está esverdeada?
- É o tipo de batata, que é diferente, filho. Gostou?
- É, é boa.
- Então come, filho. Come.
Terminada a refeição, soube a verdade: era chuchu. Sua mãe, coitada, mentira para fazer-lhe comer. E Verdurinha passou anos sem comer chuchu. Só foi fazê-lo quando sua filha, já grande, arrumou um namorado.
Os pais de Verdurinha, corajosos e dedicados, odiavam vê-lo adormecer no carro. Porque, já grandinho, ao ser despertado, mesmo que carregado no colo, transforma-se em um ser das trevas. Ficava intragável e sua chatice, naturalmente elevada, parecia ser açoitada pelos deuses do azedume, para tornar-se hiperbólica e completamente insuportável.
Mas, como o tempo é generoso, Verdurinha cresceu e sua chatice foi abrandada. Tornou-se um homem relativamente normal, exceto pelo fato de não gostar de café, nem de sushi, nem de mamão, nem de assovios (dizia que era coisa de velho. Vai entender...) e preferir suspensórios a cintos. Tornara-se supervisor de segurança da informação, em uma empresa de auditoria internacional, trabalho que nunca conseguira explicar a ninguém que, educadamente, lhe perguntava qual era sua profissão e que ele, ingenuamente, acreditava ser interesse verdadeiro em sua pessoa tão desinteressante.
Por uma dessas coisas inexplicáveis da vida, Verdurinha começou a namorar com uma moça completamente maluquinha das ideias, uma meia-irmã de um de seus amigos de infância, apelidado de Zacarias, por causa da voz fina que manteve até quase o final da adolescência.
A moça era divertida e desencanada, tinha os cabelos revoltos e assimétricos, olhos grandes e vivos e lábios inquietos, cujos beijos exagerados e gostosos lhe surpreendiam e excitavam. Era tão doidinha, imagine, que fez xixi de porta aberta, na primeira vez em que dormiram juntos! Cortava sozinha os próprios cabelos e nunca, jamais, usava salto alto.
Seu apelido era Polilla, que quer dizer "traça" em espanhol. Quando adolescente, ela fizera intercambio no Panamá (por vontade própria, e não por falta de vagas na Nova Zelândia ou nos EUA) e, por passar o dia todo com a manga da blusa na boca, como se a quisesse comer feito uma traça, ganhara dos colegas de escola o apelido de "Polilla".
Eram uma espécie de Eduardo e Mônica: diferentes, mas surpreendentemente compatíveis. Namoraram por 8 meses e começavam a acreditar que aquela relação meio amalucada poderia realmente dar certo.
Foi quando surgiu para Polilla uma oportunidade irrecusável: estudar gastronomia em Quebec, no Canadá. Não aguentava mais trabalhar como recepcionista de consultório e queria mesmo era ser chef de cozinha. Aprendera francês ainda jovem, motivada por entender as músicas pelas quais se apaixonara quando criança, enquanto ouvia-as com a mãe, uma goiana deslumbrada pela França, embora nunca tivesse colocado os pés lá. Seu ótimo francês abriu-lhe as portas para a bolsa de estudos na cidade mais francesa do Canadá.
Chegou o dia de Polilla contar a Verdurinha sobre seus planos. Uma tragédia. Verdurinha finalmente sentia-se uma pessoa normal, finalmente sentia-se gostado por alguém que não fosse da família e que lhe fazia, de algum modo, mais livre, mais feliz e mais irresponsável - exatamente como sempre quis ser. E agora, justamente agora, este alguém iria deixar-lhe. Ficou arrasado.
Polilla partiu no final no Fevereiro e chegou ao Canadá em pleno inverno, sob uma forte nevasca. Nunca tinha visto neve e aquela visão tão bonita fez-lhe lembrar de Verdurinha e do calor de suas mãos. Não pensava nele pelo nome de "Verdurinha", que nem sequer conhecia, mas pelo apelido que lhe tinha dado, dois meses depois de começarem a se ver: "Cri", de "cricri", como reconhecimento terno à chatice da qual ela, inexplicavelmente, aprendera a gostar.
Verdurinha estava triste, como nunca havia se sentido. Seus dias sem Polilla eram cheios de nada, cinzas, longos e insípidos, como ele. Não suportava o próprio gosto e sentia uma falta de Polilla que, pela inabilidade com as palavras, não conseguia descrever.
E assim ficaram, completamente afastados e incomunicáveis, por meses. Polilla continuou seus estudos e até trocou uns beijos com um colega romeno, que também estudava na mesma escola de gastronomia. Sem grandes envolvimentos, só uns beijos, mesmo.
Verdurinha seguiu com sua vidinha, resumida a assistir seriados legendados, que baixava da internet, jogar Playstation 3, assistir vídeos pornôs em sites gratuitos e, quando tinha sorte, aos finais de semana, dar uns amassos em alguma feinha bêbada, depois que a noite já estivesse longa o suficiente para que ela aceitasse que ele seria a única coisa que conseguiria, depois de tanta cerveja.
Após vários meses sem falar com Polilla, um dia seu telefone tocou às 11h30, na manhã de um sábado com ar parado, seco e frio.
- O que é? - atendeu ele, com seu tradicional mau-humor matinal, com voz de travesseiro babado.
- Te acordei?
- Quem está falando?
- Te acordei, Cri?
Só ela o chamava de "Cri". Seu coração parou por um momento. Não imaginou que ouvir sua voz pudesse causar-lhe algum impacto, depois de tantos meses de afastamento.
- Polilla?! - falou, sentando-se, surpreso com o volume da própria voz.
- Como você está, Cri?
Ele fez uma longa pausa, já completamente desperto e sentado na cama; uma pausa longa o suficiente para ela achar que a ligação havia caído.
- Alô? Cri?
- Estou aqui.
- Achei que a ligação tivesse caído... Como você está, menino? - ela tinha mania de chamá-lo de menino. A voz não deixava dúvidas: estava sorrindo.
Ele fez novamente uma longa pausa.
- Cri?!
- Estou com saudade, Polilla.
A pausa desta vez foi dela. Ele ficou imaginando se ela estava surpresa com a resposta. Ficou lembrando do rosto que ela fazia quando se surpreendia com alguma coisa, fechando os olhos grandes demoradamente, soltando um suspiro curto e um discreto e adorável sorriso nos lábios.
- Estou voltando para o Brasil, Cri.
Ele também sorria, em silêncio.
- Chego amanhã.
Verdurinha foi apanhá-la no aeroporto. Chegou 2 horas antes, tamanha era a ansiedade.
Polilla chegara diferente, mais madura e mais bonita. Os cabelos estavam bem cortados e simétricos, mais lisos do que antes da viagem. A pele estava mais branca, talvez pela menor generosidade do sol canadense. Mas os olhos, ah, esses eram os mesmos: grandes, escuros e vivos, exatamente como os conhecera.
Sem rodeios nem palavras, abraçaram-se e beijaram-se, como se nunca tivessem se afastado. Um beijo delicado e discreto, de quem não tem nada a provar, nada a explicar, nada que já não soubessem de cor.
Verdurinha voltou a ser homem que Polilla fazia dele, o homem que queria ser. Nunca acostumou-se a comer chuchu, nem tomar café. Mas aprendeu a comer as esquisitices que Polilla, com seu paladar treinado e refinado, preparava. De vez em quando pedia para ela fazer frango com arroz e feijão, mas não recusava seus outros pratos, de nome difícil.
Quando nasceu a primeira filhinha do casal, deram a ela o apelido de "Corú", um pseudo-diminutivo de Coruja. A moleca simplesmente não dormia à noite e trazia, ainda pequena, um pouco dos traços chatonildos do pai, mas disfarçados pelo sorriso fácil, herdado da mãe.
Mesmo agora, já crescida, vive sendo repreendida pelos pais, porque não tira a roupa da boca - tal como fazia a mãe, quando jovem. E ouve-se à boca miúda que Corú está de namorico com um garoto que, puta que pariu, é o maior chato de mundo!
O menino vai almoçar na casa deles, no próximo domingo. E Verdurinha já decidiu que, neste dia, é inegociável: vai haver chuchu na mesa. E ai de quem não coma! Ai de quem não coma!
quarta-feira, 22 de maio de 2013
Espelhos

Tinha sido um namoro curtíssimo, mas intenso. E por serem talvez tão iguais, ou talvez tão diferentes, passados poucos dias desde o primeiro beijo, havia muitos motivos para continuarem namorando, e também muitos motivos para terminarem. Todos bons motivos. Todos legítimos. Prevaleceram os últimos. Terminaram. E mantiveram, desde aquele noite, distância. Silêncio.
Passada uma semana desde o término, Carina acordou bem disposta. Ainda pensava nele, e ainda doía. Mas, pela primeira vez em dias, sentia-se bem. Passara aquela semana em viagem a trabalho, em uma pequena cidade de interior. Não sabia se aquela semana, sozinha naquela cidade, havia sido uma coisa boa ou não. Se, por um lado, permitia-lhe desfrutar de uma bem-vinda distância inevitável e completa, por outro dava-lhe tempo demasiado para ficar sozinha com os próprios pensamentos. O fato é que, mesmo distante e sozinha, acordou bem naquela manhã
Não se achava uma mulher particularmente interessante. Achava-se inteligente, gentil, educada, agradável. Mas não se achava nem um pouco atraente. Não entendia o quê, afinal, ele havia visto nela. O quê será que pareceu-lhe tão atraente naquela mulher que, no espelho, via uma pessoa tão sem cor, tão triste e tão sem graça?
Voltou para casa. Finalmente havia acabado aquele dia e aquela semana. O trajeto desde a pequena cidade até sua casa havia sido cansativo. Mesmo assim, como estava sentindo-se bem disposta, resolveu passar no shopping center, para comer alguma coisa. Não queria chegar em casa e ainda ter que cozinhar.
Foi ao shopping, sentou-se à mesa de um restaurante e comeu sozinha, navegando na internet pelo velho celular, do qual ela jurava que iria desfazer-se em breve, e trocar por um mais novo. E, quando terminou o prato, achou que conseguiria manter a promessa que havia feito para si própria: a de não procurar nenhuma mensagem dele. Mas não cumpriu. Antes da sobremesa chegar, já havia procurado, mas nada encontrou. Veio a sobremesa: petit gateau - talvez porque precisasse de um pouco de chocolate. Comeu só o gateau e deixou o sorvete.
Pagou a conta, levantou-se e procurou o batom na bolsa. Não estava. Onde teria deixado o batom? Lembrou-se: ficara no criado mudo, ao lado da cama, no quarto do hotel na pequena cidade onde tinha passado a semana, 600 Km dali.
Passou numa loja de maquiagens, para comprar um batom novo. Ainda daria tempo? Daria, eram 21h, ainda. Não era mulher de ter 1000 batons. Tinha 3 ou 4, apenas um de cada cor. Pediu à atendente um batom clarinho. Batom, em geral, era clarinho. A maquiagem, ainda que visível e bem-feita, era geralmente discreta. Vermelho, em geral, só mesmo nas unhas. Nos lábios, só em ocasiões especiais ou em dias em que se sentia poderosa, o que era pouco frequente.
A atendente deu a ela de brinde um porta-batons, um daqueles estojinhos com um espelhinho retangular, comprido e estreitinho. Carina agradeceu-lhe a gentileza e, sem pensar, abriu o estojinho para olhar os lábios, enquanto passava o batom recém-comprado. Não havia porque olhar-se naquele espelhinho, já que a loja era cheia de espelhos grandes e bem iluminados. Mas, sem perceber, foi no espelhinho mesmo.
Ao olhar o reflexo no espelhinho, espantou-se: achou seu lábios lindos. Não só a cor, mas a forma. A pele clara, em volta dos lábios, parecia-lhe também especialmente bela. Ficou alguns segundos admirando a própria beleza, naquele espelho estreito. Não, não estava só bela. Estava linda!
Virou-se para olhar no espelho grande, da loja. Mas o espelho refletia a mesma imagem de sempre, sem graça. Olhou-se em mais outro espelho. Idem. Voltou a olhar-se no espelhinho do estojo do batom. Lindíssima. Achou que tinha enlouquecido. Como pode um espelho refletir de um jeito, e todos os outros refletirem de outro?
A atendente, percebendo a agitação dela, perguntou se estava tudo bem. Mas ela apenas agradeceu e saiu da loja correndo, meio atordoada, meio feliz. Queria chegar em casa logo e estudar aquele espelho. Chegou, largou a mala na sala, tirou os sapatos - como tinha conseguido ficar de salto alto tantas horas? - e correu para o banheiro, descalça. Acendeu a luz, olhou-se no espelho grande e viu-se como sempre: normal. Abriu o estojinho do batom: linda. Como assim?!
Moveu o estojinho, de forma a ver seus olhos. Grandes, como sempre. Mas refletiam-se belos e intrigantes. Afastou um pouco o espelhinho, para tentar ver-se um pouco mais, naquele reflexo tão estreito. Esticou bem os braços. A pele fina, quase sem marcas, refletia-se clara e delicada. Quase podia dizer que a pele refletia-se perfumada, até.
Àquela altura, ouvia sua própria respiração, acelerada. O coração batia forte. Abaixou o espelhinho e, no espelho maior, notou seu rosto cansado, depois de uma dia longo de viagem. Precisava de um bom banho e uma boa noite de sono. Definitivamente, o reflexo do espelho de rosto do banheiro continuava não combinando com o do espelhinho do porta-batom. Desinteressantemente normal em um; deslumbrantemente encantadora em outro.
Tomou seu banho e deitou-se imediatamente. Estava intrigada e contente com aquele reflexo especial, que aquele espelho mágico lhe oferecia. No dia seguinte, consultaria uma amiga, para saber o que ela via. Não tardou a dormir. Estava realmente cansada. Dormiu um sono só, sem despertar-se durante toda a noite.
Acordou de repente, sem sobressaltos. Era preguiçosa ao acordar, especialmente nos finais de semana. Ficava na cama, namorando o travesseiro macio e o silêncio, tão valioso e raro em uma grande cidade. Mas, naquele dia, não. Acordou instantaneamente, como se alguém a tivesse ligado na tomada de repente. Não tinha o menor sono, mesmo tendo dormido apenas algumas horas. O dia ainda estava amanhecendo.
Levantou-se, foi até a cozinha, tomou um copo d'água e foi ao banheiro, mesmo sem estar com muita vontade. Acendeu a luz e, ao lavar as mãos, viu o porta-batom, que havia deixado na pia. Abriu o estojinho e olhou-se, para ver se continuava mágico. Continuava. No espelho grande, olheiras. No pequeno, olhos doces e vivos. Belíssimos. Continuava sem entender, mas estava feliz. E sentir-se genuinamente feliz, depois de uma semana de tristeza, distância e silêncio, era um presente.
Iria mantê-lo ali, junto com os objetos que ficavam na prateleira do banheiro. Mas a cola que prendia o espelhinho ao porta-batom era fraquíssima. E, ao começar a fechá-lo, o pequeno espelho soltou-se. Carina soltou um "Ah, não!", enquanto o via cair e espatifar-se em mil pedaços, no chão do banheiro. "Ah, não! Ah, não! Ah, não!".
Abaixou-se, apanhando no chão os pequeníssimos pedaços do espelhinho, sem acreditar na tristeza daquele momento. O único motivo de alegria naquela semana havia tornado-se, em uma fração de segundo, um reforço à sua tristeza. Carina chorou. "Ai, que droga!". Era a mesma frase que tinha dito chorando, abraçada ao ex-namorado, no momento em que se despediam, dias antes.
Arrasada, voltou ao quarto e obrigou-se a dormir. Conseguiu, finalmente. Acordou quase meio-dia. "Que se dane", pensou. Estranhou o silêncio. Àquela hora, a rua deveria estar muito barulhenta, mas não se ouvia absolutamente nada. Silêncio total.
Calçou suas sandálias - aquele piso sempre lhe parecia frio ao despertar, especialmente em dias tristes - levantou-se e, à porta do banheiro, viu os caquinhos do espelho, que permaneceram no chão. Fez um rápido coque nos cabelos lisos, borrifou um pouco do sabonete líquido nas mãos, abriu a torneira e lavou bem o rosto. Secou-se delicadamente e olhou-se no espelho do armário do banheiro.
Riu, de felicidade e espanto. O espelho grande refletia a mesma imagem linda que o espelhinho pequeno refletira antes de se quebrar. Correu até o quarto, onde havia um espelho de corpo inteiro, do lado de dentro da porta do armário. Quase nunca usava aquele espelho. Abriu a janela, para deixar a luz do sol entrar. Abriu a porta do armário e viu-se no reflexo grande.
De camisola, com um coque nos cabelos e Havaianas nos pés, Carina viu-se linda como jamais havia se sentido. Admirava-se com o coque natural e displicente, com uma parte da franja solta; com a pele lisa e macia dos braços, as pernas bem torneadas, o colo vistoso e delicado exposto pelo decote generoso daquela camisola nova, que só ela conhecia; o sorriso aberto e honesto, os dentes brancos e perfeitos e os olhos escuros atentos, que enxergavam especialmente bem naquela manhã silenciosa - "Ih! Dormi de novo com as lentes de contato!" disse em voz alta, sorrindo. Não podia acreditar no que via. Carina estava, verdadeiramente, linda.
E assim permaneceu. Ela nunca achou explicação para o fenômeno que se passara com aquele espelhinho que se quebrara. Chegou a comentar com as amigas sobre o ocorrido, que elas acharam ser apenas brincadeira. Mas o fato é que, daquele dia em diante, todos os espelhos, dentro e fora de casa, por alguma razão inexplicável e feliz, passaram a refletir a mesma Carina que o espelhinho um dia refletira. Em alguns dias mais bonita, em outros mais normal. Mas, em todos, tão linda quanto o rapaz a vira, e muito mais bela do que jamais havia acreditado ser.
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