quarta-feira, 22 de maio de 2013

Espelhos

Fazia exatamente uma semana. Pareciam meses, mas havia se passado só uma semana desde aquela noite. Se tivesse sido uma como outra qualquer, não teria nada de muito marcante: não tinha sido muito frio, nem muito calor; não teve clássico de futebol; o trânsito não estava tão terrível; nem havia chovido. Poderia até ter sido um dia esquecível. Não fosse pelo fato de, naquele dia, exatamente 7 dias antes, terem terminado o namoro.

Tinha sido um namoro curtíssimo, mas intenso. E por serem talvez tão iguais, ou talvez tão diferentes, passados poucos dias desde o primeiro beijo, havia muitos motivos para continuarem namorando, e também muitos motivos para terminarem. Todos bons motivos. Todos legítimos. Prevaleceram os últimos. Terminaram. E mantiveram, desde aquele noite, distância. Silêncio.

Passada uma semana desde o término, Carina acordou bem disposta. Ainda pensava nele, e ainda doía. Mas, pela primeira vez em dias, sentia-se bem. Passara aquela semana em viagem a trabalho, em uma pequena cidade de interior. Não sabia se aquela semana, sozinha naquela cidade, havia sido uma coisa boa ou não. Se, por um lado, permitia-lhe desfrutar de uma bem-vinda distância inevitável e completa, por outro dava-lhe tempo demasiado para ficar sozinha com os próprios pensamentos. O fato é que, mesmo distante e sozinha, acordou bem naquela manhã

Não se achava uma mulher particularmente interessante. Achava-se inteligente, gentil, educada, agradável. Mas não se achava nem um pouco atraente. Não entendia o quê, afinal, ele havia visto nela. O quê será que pareceu-lhe tão atraente naquela mulher que, no espelho, via uma pessoa tão sem cor, tão triste e tão sem graça?

Voltou para casa. Finalmente havia acabado aquele dia e aquela semana. O trajeto desde a pequena cidade até sua casa havia sido cansativo. Mesmo assim, como estava sentindo-se bem disposta, resolveu passar no shopping center, para comer alguma coisa. Não queria chegar em casa e ainda ter que cozinhar.

Foi ao shopping, sentou-se à mesa de um restaurante e comeu sozinha, navegando na internet pelo velho celular, do qual ela jurava que iria desfazer-se em breve, e trocar por um mais novo. E, quando terminou o prato, achou que conseguiria manter a promessa que havia feito para si própria: a de não procurar nenhuma mensagem dele. Mas não cumpriu. Antes da sobremesa chegar, já havia procurado, mas nada encontrou. Veio a sobremesa: petit gateau - talvez porque precisasse de um pouco de chocolate. Comeu só o gateau e deixou o sorvete.

Pagou a conta, levantou-se e procurou o batom na bolsa. Não estava. Onde teria deixado o batom? Lembrou-se: ficara no criado mudo, ao lado da cama, no quarto do hotel na pequena cidade onde tinha passado a semana, 600 Km dali.

Passou numa loja de maquiagens, para comprar um batom novo. Ainda daria tempo? Daria, eram 21h, ainda. Não era mulher de ter 1000 batons. Tinha 3 ou 4, apenas um de cada cor. Pediu à atendente um batom clarinho. Batom, em geral, era clarinho. A maquiagem, ainda que visível e bem-feita, era geralmente discreta. Vermelho, em geral, só mesmo nas unhas. Nos lábios, só em ocasiões especiais ou em dias em que se sentia poderosa, o que era pouco frequente.

A atendente deu a ela de brinde um porta-batons, um daqueles estojinhos com um espelhinho retangular, comprido e estreitinho. Carina agradeceu-lhe a gentileza e, sem pensar, abriu o estojinho para olhar os lábios, enquanto passava o batom recém-comprado. Não havia porque olhar-se naquele espelhinho, já que a loja era cheia de espelhos grandes e bem iluminados. Mas, sem perceber, foi no espelhinho mesmo.

Ao olhar o reflexo no espelhinho, espantou-se: achou seu lábios lindos. Não só a cor, mas a forma. A pele clara, em volta dos lábios, parecia-lhe também especialmente bela. Ficou alguns segundos admirando a própria beleza, naquele espelho estreito. Não, não estava só bela. Estava linda!

Virou-se para olhar no espelho grande, da loja. Mas o espelho refletia a mesma imagem de sempre, sem graça. Olhou-se em mais outro espelho. Idem. Voltou a olhar-se no espelhinho do estojo do batom. Lindíssima. Achou que tinha enlouquecido. Como pode um espelho refletir de um jeito, e todos os outros refletirem de outro?

A atendente, percebendo a agitação dela, perguntou se estava tudo bem. Mas ela apenas agradeceu e saiu da loja correndo, meio atordoada, meio feliz. Queria chegar em casa logo e estudar aquele espelho. Chegou, largou a mala na sala, tirou os sapatos - como tinha conseguido ficar de salto alto tantas horas? - e correu para o banheiro, descalça. Acendeu a luz, olhou-se no espelho grande e viu-se como sempre: normal. Abriu o estojinho do batom: linda. Como assim?!

Moveu o estojinho, de forma a ver seus olhos. Grandes, como sempre. Mas refletiam-se belos e intrigantes. Afastou um pouco o espelhinho, para tentar ver-se um pouco mais, naquele reflexo tão estreito. Esticou bem os braços. A pele fina, quase sem marcas, refletia-se clara e delicada. Quase podia dizer que a pele refletia-se perfumada, até.

Àquela altura, ouvia sua própria respiração, acelerada. O coração batia forte. Abaixou o espelhinho e, no espelho maior, notou seu rosto cansado, depois de uma dia longo de viagem. Precisava de um bom banho e uma boa noite de sono. Definitivamente, o reflexo do espelho de rosto do banheiro continuava não combinando com o do espelhinho do porta-batom. Desinteressantemente normal em um; deslumbrantemente encantadora em outro.

Tomou seu banho e deitou-se imediatamente. Estava intrigada e contente com aquele reflexo especial, que aquele espelho mágico lhe oferecia. No dia seguinte, consultaria uma amiga, para saber o que ela via. Não tardou a dormir. Estava realmente cansada. Dormiu um sono só, sem despertar-se durante toda a noite.

Acordou de repente, sem sobressaltos. Era preguiçosa ao acordar, especialmente nos finais de semana. Ficava na cama, namorando o travesseiro macio e o silêncio, tão valioso e raro em uma grande cidade. Mas, naquele dia, não. Acordou instantaneamente, como se alguém a tivesse ligado na tomada de repente. Não tinha o menor sono, mesmo tendo dormido apenas algumas horas. O dia ainda estava amanhecendo.

Levantou-se, foi até a cozinha, tomou um copo d'água e foi ao banheiro, mesmo sem estar com muita vontade. Acendeu a luz e, ao lavar as mãos, viu o porta-batom, que havia deixado na pia. Abriu o estojinho e olhou-se, para ver se continuava mágico. Continuava. No espelho grande, olheiras. No pequeno, olhos doces e vivos. Belíssimos. Continuava sem entender, mas estava feliz. E sentir-se genuinamente feliz, depois de uma semana de tristeza, distância e silêncio, era um presente.

Iria mantê-lo ali, junto com os objetos que ficavam na prateleira do banheiro. Mas a cola que prendia o espelhinho ao porta-batom era fraquíssima. E, ao começar a fechá-lo, o pequeno espelho soltou-se. Carina soltou um "Ah, não!", enquanto o via cair e espatifar-se em mil pedaços, no chão do banheiro. "Ah, não! Ah, não! Ah, não!".

Abaixou-se, apanhando no chão os pequeníssimos pedaços do espelhinho, sem acreditar na tristeza daquele momento. O único motivo de alegria naquela semana havia tornado-se, em uma fração de segundo, um reforço à sua tristeza. Carina chorou. "Ai, que droga!". Era a mesma frase que tinha dito chorando, abraçada ao ex-namorado, no momento em que se despediam, dias antes.

Arrasada, voltou ao quarto e obrigou-se a dormir. Conseguiu, finalmente. Acordou quase meio-dia. "Que se dane", pensou. Estranhou o silêncio. Àquela hora, a rua deveria estar muito barulhenta, mas não se ouvia absolutamente nada. Silêncio total.

Calçou suas sandálias - aquele piso sempre lhe parecia frio ao despertar, especialmente em dias tristes - levantou-se e, à porta do banheiro, viu os caquinhos do espelho, que permaneceram no chão. Fez um rápido coque nos cabelos lisos, borrifou um pouco do sabonete líquido nas mãos, abriu a torneira e lavou bem o rosto. Secou-se delicadamente e olhou-se no espelho do armário do banheiro.

Riu, de felicidade e espanto. O espelho grande refletia a mesma imagem linda que o espelhinho pequeno refletira antes de se quebrar. Correu até o quarto, onde havia um espelho de corpo inteiro, do lado de dentro da porta do armário. Quase nunca usava aquele espelho. Abriu a janela, para deixar a luz do sol entrar. Abriu a porta do armário e viu-se no reflexo grande.

De camisola, com um coque nos cabelos e Havaianas nos pés, Carina viu-se linda como jamais havia se sentido. Admirava-se com o coque natural e displicente, com uma parte da franja solta; com a pele lisa e macia dos braços, as pernas bem torneadas, o colo vistoso e delicado exposto pelo decote generoso daquela camisola nova, que só ela conhecia; o sorriso aberto e honesto, os dentes brancos e perfeitos e os olhos escuros atentos, que enxergavam especialmente bem naquela manhã silenciosa - "Ih! Dormi de novo com as lentes de contato!" disse em voz alta, sorrindo. Não podia acreditar no que via. Carina estava, verdadeiramente, linda.

E assim permaneceu. Ela nunca achou explicação para o fenômeno que se passara com aquele espelhinho que se quebrara. Chegou a comentar com as amigas sobre o ocorrido, que elas acharam ser apenas brincadeira. Mas o fato é que, daquele dia em diante, todos os espelhos, dentro e fora de casa, por alguma razão inexplicável e feliz, passaram a refletir a mesma Carina que o espelhinho um dia refletira. Em alguns dias mais bonita, em outros mais normal. Mas, em todos, tão linda quanto o rapaz a vira, e muito mais bela do que jamais havia acreditado ser.


terça-feira, 23 de abril de 2013

As Esfihas de Tobias


O primo do cunhado da tia da esposa do meu amigo jura que esta história é verdadeira.

Tobby Saints era o nome dele. Tinha formado-se na faculdade havia um ano e finalmente conseguira entrar como estagiário remunerado (remunerado, veja só!) em uma grande agência de propaganda.

Na verdade, na verdade, o nome Tobby Saints era uma invenção recente, de dois diretores de criação da agência.

- Não! Tobias dos Santos?! Isto é nome de gente comum demais! Tobias?! Quem dá o nome de Tobias a um filho hoje em dia?!
- É o nome do meu pai, gente!
- Que idade tem seu pai? 100?
- 61.
- Nem é tão velho...
- Era o nome do meu avô, também.
- Milênio passado! Você precisa de um nome artístico!
- Artístico?! - Tobias espantou-se com aquela ideia, que lhe soava meio insana - Mas eu não sou artista!
- Todos somos artistas aqui, Tobias.
- Todos nós.
- Somos?
- Somos.
- Tobby!
- O quê?!
- É! Tobby!
- Tobby Saints! Este é o seu novo nome artístico! Tobby Saints!

Pronto: Tobias dos Santos tornara-se Tobby Saints. E decidiu-se também que ele não seria mais simplesmente um estagiário. Tornara-se um trainee. Seu colega, José Carlos, que era mensageiro inteiro, também tivera seu cargo alterado naquele mesmo dia: Superintendente de Internal Mailing, e a Dona Rosa, a copeira, tornara-se Rose, Gerente Senior de Foods and Beverages. Ela nunca conseguiu falar Beverages, coitada. "Em agências de propaganda, todos somos muito, muito importantes. Nossos cargos devem demonstrar nossa relevância", dizia o CEO da firma. Da holding, na verdade.

- Tobby Saints?! Isto parece nome de ator pornô! - observou seu irmão adolescente - Está querendo entrar no ramo?

Mas não adiantou. Já estava decidido: na agência, todos se referiam a ele por Tobby Saints. Passou a usar camisas justíssimas com gravata frouxa de crochet, passou a depilar as sobrancelhas, colocou um brinco na orelha esquerda (que ele tirava, quando chegava em casa) e fez uns leves reflexos no cabelo. Até uma tatuagem tribal ele fez, no fino braço esquerdo, de poucos pelos. Tornara-se um antenado.

Alguns meses se passaram e Tobias começou a interessar-se por uma gaúcha alta, loira natural, recém-contratada. Chamava-se Ellen Vorsicht, filha de um alemão com uma curitibana. Criada em família abastada, bem de vida, ganhara carrão importado (alemão, claro), aos 18 anos.

O que era mero interesse, ao longo de alguns poucos meses deu lugar a uma paixão platônica, da parte dele. Ellen era uma moça simpática, mas um tanto amedrontadora, naqueles seus mais de 1,80 metro, acrescidos dos saltos altíssimos que costumava usar. Ele sabia que, se quisesse chamar sua atenção, teria que fazer algo em grande estilo.

Um dia, depois de ouvir o CEO da agência comentar sobre um restaurante de luxo que costumava frequentar, Tobby decidiu que iria convidar Ellen para jantar no mesmo restaurante. E começou a poupar.

Poupou durante meses. Queria levá-la para comer e beber bem, em um restaurante realmente à sua altura. Tomariam vinhos. Vinhos bons de verdade, franceses. "Vinhos bons são os franceses. Só os franceses. Vinhos americanos são superficiais. Sul-africanos são tolos. Neozelandeses são imaturos. Espanhóis são rudes. Italianos são ultrapassados. Argentinos e Chilenos são sucos de uva de periferia. Brasileiros... ah, fala sério, vai? Não se pode levar a sério um vinho que se compra em supermercado... Quer degustar um bom vinho? Tome um francês, e nenhum outro", dizia o diretor de criação da agência, que dera a Tobias seu nome artístico.

Ao longo de 8 meses, Tobby conseguira poupar 2 mil Reais! Pesquisou na internet, leu algumas críticas em revistas especializadas, para ter uma ideia de quanto gastaria em um bom jantar naquele restaurante, e decidiu que era hora de fazer o convite a Ellen.

- Ela aceitou! Ela aceitou! - gritava ele, sozinho, dentro de seu carro 1.0 recém-comprado, usado mas bem conservado, com DVD, insulfilm e tudo mais! Mal podia acreditar! Ele iria levar Ellen Vorsicht para jantar na sexta-feira seguinte!

E, depois de longos 4 dias, finalmente a sexta-feira chegou. Tobby saiu da empresa mais cedo e foi para casa. Tomou banho, calçou seu melhor sapato, que havia pedido para sua mãe engraxar, e seu terno recém-comprado. Na gravata, que desta vez não era de crochet, finalmente conseguiu, depois de 6 tentativas, fazer um impecável nó Windsor, seguindo passo-a-passo um tutorial do YouTube. E saiu, ansioso, rumo ao restaurante.

Era um elegante salão com paredes cor de ferrugem, bastante amplo, mas com poucas mesas, com muitas taças e uns 9 talhares para cada cliente. A luz baixa e a música instrumental completavam a atmosfera intimista e sofisticada. Nada daquilo assustou Tobby. Ele estava realmente pronto! Aquela seria sua noite. De Tobby Saints e Ellen Vorsicht.

Ela chegou um pouco atrasada. Tinha vindo direto de uma reunião com um cliente. Mas estava linda, como sempre. Sentou-se, cumprimentou Tobby com um rápido beijo no rosto - na verdade, foi uma daquelas bochechadas em que a boca do beijador não chega a encostar da pele do beijado - e pediu uma Perrier com gás, que o maître trouxe pessoalmente, junto com o couvert sofisticadíssimo e o menu, com uma bela capa de couro e páginas grossas e texturizadas.

- Que lindo que é aqui, Tobby! Eu não conhecia, guri! - disse, com seu forte sotaque gaúcho.
- Bonito, né?
- Muito!

Começara bem. Bastava pedir boa comida, tomar uns bons vinhos e, quem sabe, ganhar o que lhe parecia inimaginável alguns meses antes.

O cardápio tinha umas comidas das quais ele nunca ouvira falar. Nem mesmo ela, que já tinha frequentado bons restaurantes. Mas ele já sabia exatamente o que pedir. Tinha realmente se preparado para aquele encontro.

Esquecera-se apenas de um pequeno de detalhe: sabia que o vinho que iriam tomar seria necessariamente um francês, mas não tinha pesquisado antecipadamente qual seria. O maître apresentou-lhe a carta de vinhos, com nomes que ele não se atreveria a pronunciar na frente dela. Mas, afinal, aquilo não haveria de ser problema. Em um restaurante de luxo, como aquele, qualquer pedida seria certa. Olhou os nomes e os preços por quase 1 minuto, como se os analisasse cuidadosamente

1. Montrachet DRC (Pauillac, França) ............ 90
2. Screaming Eagle (Napa Valley, EUA) .......... 97
3. Château Petrus (Bordeux, França) .............. 90
4. Château Le Pin  (Bordeux, França) ............. 99
5. Pingus (Espanha) ........................................ 95
6. Romanée Conti (Bourgogne, França) .......... 97

A carta de vinhos seguia, com várias páginas. Apontou aleatoriamente para o terceiro da lista:

- Vamos tomar este aqui, para começar.
- Excelente opção, senhor. Um dos melhores vinhos de nossa adega, senhor.

Ellen estava impressionada com a postura e com a segurança de Tobby. Nunca pensara nele como sendo um homem sofisticado ou particularmente atraente, mas sentia-se interessada em saber mais sobre ele.

O primeiro prato foi perfeito. O vinho, delicioso.

Final da primeira garrafa. Tobby pediu novamente a carta de vinhos e desta vez apontou para um outro, também francês: o sexto da lista, surpreendentemente ainda mais delicioso que o anterior. Degustaram-no juntamente com prato principal, igualmente impecável.

A conversa fluiu naturalmente. Acharam até um gosto em comum: os dois gostavam de tapioca. Ele aprendera a comer ainda pequeno, porque na rua em que morava havia uma feira livre aos sábados, onde um velhinho, cego de um olho, as preparava, caprichadas, com coco, queijo coalho e leite condensado, bem em frente à sua porta. Ela, por outro lado, aprendera a comer tapioca na viagem que fizera ainda adolescente para Fernando de Noronha, com seus pais, para um curso de mergulho.

Veio a sobremesa: Crepe Suzette, leve e delicioso, preparado à mesa, com belas labaredas durante a flambagem. Em seguida, mais um vinho. Porto. "A única coisa que os Portugueses fazem direito", dissera o CEO da agência certa vez, enquanto conversava sobre vinhos com um dos diretores.

Ao final da taça, Tobby pediu a conta, imaginando que poderia sobrar ainda um pouco daqueles 2 mil Reais que levara.

Chegou a conta: R$ 22 mil Reais. Tobby olhou rapidamente, sorriu e chamou o maître, para corrigir o engano.

- Acho que vocês cobraram a mais... Multiplicaram por 10 o valor da conta! Hehehe - disse, sorrindo para Ellen, que também achara graça do engano.

O maître, em pé ao lado de Tobias, olhou a conta atentamente por alguns segundos, percorrendo os itens com seu dedo indicador, para se certificar de que não houvesse nenhum engano. Fechou novamente a pastinha e entregou-a novamente a Tobby.

- Senhor, a conta está correta, senhor.
- Não pode ser! Esta conta está 10 vezes acima do valor correto!

A tranquilidade de Tobias havia passado por completo. Suas sobrancelhas franzidas tremiam levemente. O maître olhou para Ellen, olhou para Tobby e percebeu a delicadeza da situação.

- O senhor se incomodaria de me acompanhar por um instante, senhor?

Tobias levantou-se impaciente.

- Ellen, vou resolver essa palhaçada e já volto. Com licença. - disse, levantando-se e deixando cair no chão o guardanapo que estava em seu colo.

O celular de Ellen, que estava sobre a mesa, vibrou. Chegara uma mensagem via SMS, que ela olhou enquanto Tobby afastava-se da mesa, atrás do maître. Dirigiram-se a um balcão, de onde Ellen não poderia vê-los.

- Senhor, eu lamento informar, mas a conta está rigorosamente certa, mesmo.

- Parceiro - Tobby respondeu, enquanto olhava novamente a conta, incrédulo -  eu não tomei vinho de 10 mil Reais! Nem este, de 8 mil! Estes vinhos custam, sei lá, 90, 90 e poucos reais! Eu vi na carta de vinhos!

- Perdão, senhor, deve haver algum engano de sua parte. Não temos nenhum vinho na casa que custe menos de R$ 400 Reais, senhor. O senhor pediu dois dos nossos melhores vinhos. Os preços deles estão corretos.

- Vocês só podem estar de sacanagem! Me dá a carta de vinhos!

Abriu a carta de vinhos e conferiu:


1. Montrachet DRC (Pauillac, França) ............ 90
2. Screaming Eagle (Napa Valley, EUA) ......... 97
3. Château Petrus (Bordeux, França) ........ 90
4. Château Le Pin  (Bordeux, França) ............. 99
5. Pingus (Espanha) ........................................ 95
6. Romanée Conti (Bourgogne, França) .... 97


- Olha aqui, ó! 90 e 97 Reais!

O maître comprimiu os lábios e soltou um longo suspiro. Estava desfeito o mal-entendido.

- Senhor, estes não são os preços. São os anos das safras dos vinhos.

Tobby sentiu o sangue gelar nas veias, enquanto o maître abria a orelha dobrada da página da carta de vinhos, que Tobby não vira até então.

- Aqui estão os preços, senhor.

Tobby não podia acreditar no que via. Os preços da conta estavam certos: no total, mais de 18 mil Reais em vinhos. Nem sabia que existiam vinhos daquele preço! Como pôde ser tão estúpido?! Como pôde se preparar tanto para ir a um restaurante tão chique, sem antes pesquisar o preço dos vinhos?! Os dois mil Reais que poupara pagavam somente os pratos, mas não cobriam sequer os 10% do serviço.

- Ah, meu Deus! - as mãos tremiam - Meu Deus!
- Eu sinto muito, senhor.
- Parceiro! - pegou no braço do maître, como se buscasse um apoio ou pedisse um abraço - Eu me enganei! Eu me enganei totalmente! Eu ganho 2 mil Reais por mês! 2 mil! Como é que eu vou pagar esta conta?!

A mão esquerda tapava os lábios, enquanto a direita continuava segurando a conta. Os olhos desesperados, enterrados no cenho franzido, eram dignos de pena.

- Eu não tenho como pagar isto!

A voz já estava embargada. Tobias controlava-se para não chorar. O maître olhava para Tobias e lamentava. Sensibilizou-se com a situação dele, mas nada poderia fazer.

- Eu acabei de comprar um carro em 60 vezes! Estou me matando para pagar R$ 800 por mês! E ainda estou na terceira parcela! Caramba! 22 mil Reais?!

Um filme passava em sua cabeça. Pensava nos seus pais, no seu irmão adolescente jogando vídeo-game, nos malditos diretores da agência e seu CEO metido a besta. Sentiu-se um completo idiota e odiou estar ali. Olhou para Ellen, que, àquela altura, falava ao celular, sorrindo, linda e inalcançável.

Apareceram o chef e o gerente. Ouviram a história toda, não só do jantar, mas uma breve história da vida de Tobias, acompanhada de algumas lágrimas sinceras e muitos "Pelo amor de Deus, gente!". Depois de 10 minutos de conversa, sensibilizados com a sinceridade do rapaz, entraram em um acordo, que ele aceitou na hora: ele pagaria R$ 1.000 no cartão, divididos em 3 vezes, e mais 9 cheques pré-datados de R$ 1.400, cada. O jantar de R$ 22 mil sairia por 13.600. Ainda assim, quase impagáveis.

Tobby voltou quase se arrastando à mesa. Ellen, já impaciente, levantou-se.

- Tobby, uns amigos meus acabaram de me ligar. Vai rolar uma balada na cobertura de um hotel, nos Jardins. Eu vou em casa tomar um banho e vou para lá. Se tu quiser ir...
- Não, Ellen, obrigado. Eu tive uma semana muito difícil e estou muito cansado. Só quero ir pra casa.
- Adorei o jantar, Tobby! Obrigado, tá?

Deu mais uma bochechada nele, virou-se e foi embora, apressada. Nem deu tempo para ele também agradecer. Tobby foi ao toalete, lavou o rosto, respirou fundo e foi-se embora. Passou o fim de semana no quarto, saindo só para comer. Nem banho tomou.

Na segunda-feira seguinte, ficou sabendo pela Dona Rosa, a copeira, que durante aquele final de semana Ellen tinha ficado noiva do ex-namorado, um diretor de atendimento de uma outra agência, com o qual reatara o namoro justamente na sexta-feira à noite, na balada da cobertura do hotel, para a qual havia convidado Tobby.

Nove meses se passaram. No dia em que caiu o último cheque do restaurante, com o saldo exato de 1.401 Reais na conta, Tobby pediu demissão da agência. Nunca mais queria pôr os pés ali.

Um ano depois, ninguém mais pôs os pés ali. O juiz decretou falência da agência na mesma semana em que os sócios passavam férias em Punta del Este. Nunca mais se ouviu falar deles. Dizem que abriram uma agência de receptivo na Costa Rica. Mas ninguém sabe ao certo.

Tobby Saints voltou a ser apenas o bom e simples Tobias dos Santos, e seguiu adiante. Poucos anos depois, casou-se com Cleide, neta do já falecido velhinho cego de um olho, que fazia tapioca na frente da casa dele. Cleide era uma morena baixinha, gente boa, de quadris largos, sorriso fácil e cabelos lisos, muito escuros. Pau pra toda obra, apoiou Tobias quando ele decidiu abrir uma lanchonete em sociedade com o pai, Seu Tobias, já aposentado, mas muito disposto. Era uma lanchonete especializada em esfihas. Só esfihas. Nada de coxinhas, risoles, empadas, nem nada disso. Tobias queria uma daquelas casas especializadas, que ficam abertas de madrugada, aonde a moçada vai depois da balada, para comer um bom lanche, a preços nem altos, nem baixos demais.

E assim aconteceu. Dois anos depois de aberta, graças aos recheios generosos das esfihas e ao segredo da massa inventada por sua mãe, a casa tornara-se um sucesso nas madrugadas, com filas de jovens famintos e antenados. Não tardou para as esfihas de Tobias aparecerem na capa de uma edição da Vejinha São Paulo, eleitas como as melhores da cidade.

Coincidentemente, no dia da publicação da matéria, Tobias fez o primeiro pagamento para a compra em definitivo do imóvel alugado, onde funcionava sua esfiharia. E ali, ao lado de Cleide e do pai, feliz como nunca se sentira na vida, já tarde da noite, Tobias comeu esfihas e brindou com eles e com seus jovens clientes, oferecendo-lhes de graça uma rodada do melhor vinho nacional que conseguira comprar no supermercado, na manhã daquele dia tão feliz.

domingo, 7 de abril de 2013

O Homem da Nuca

Depois de mais de 2 anos escrevendo crônicas neste blog, apesar de poucas, comecei a notar que os assuntos se repetiam. E passei, então, a namorar a ideia de escrever contos, com os vários personagens que me vêm à cabeça - homens, mulheres e crianças com algum traço a partir do qual possa fazer algo que adoro: inventar o todo pela parte; desenvolver toda uma história com base em uma característica pouco ou nada importante. Para os contos, não quero as "morais da história", que este autor iniciante ainda não consegue deixar de inserir nas crônicas. Contos não precisam de conclusão, não precisam de silogismos. São mais livres, enfim, e resolvi que era hora de escrevê-los. As crônicas continuarão a vir, também. Mas, junto com elas, a partir de agora, virão também eles, os contos, maturados ao longo de semanas, ou então criados de supetão, enquanto escrevo, como este.

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O Homem da Nuca

Havia algo na nuca dele, que a atraía. É, na nuca. Naquela parte inexpressiva atrás do pescoço, entre as costas e a cabeça. Não eram os olhos, nem a boca, nem o queixo bem delineado que ele tinha, que a atraiam. Não. Ela gostava da nuca.

Na verdade, ela nem sequer sabia que rosto ele tinha. Ele trabalhava no mezanino de uma loja onde ela ia todas as semanas, de costas para um vidro que ela via do térreo, onde fazia as compras. Lá de baixo, através do vidro, via as costas daquele homem, sempre sentado, trabalhando sem levantar, quase como uma estátua, sem jamais se virar. Nunca vira seu rosto, nem ouvira sua voz. Não sabia se era solteiro ou casado, nem se gostava de bacon. Não sabia se já tinha viajado para o exterior, nem se já havia sido assaltado. Não sabia se era alto, se usava perfume, se gostava de Cat Stevens, nem de MPB. Não sabia nada. Apenas conhecia sua nuca - o único pedaço de sua pele visível através do vidro.

Ela mesma não sabia porquê, afinal, sentia atração por aquela nuca. Nucas são tão interessantes quanto testas, pulsos ou solas do pé. Meros pedaços de pele que servem simplesmente para interligar partes mais nobres do corpo, mais gostáveis e sedutoras. Mas, por falta de outras coisas para gostar naquele homem, Isa interessou-se pela nuca.

Depois de alguns meses vendo, sem ser vista, e intrigada com o mistério daquele homem sem nome e sem rosto, ela notou que começou a passar com mais frequência pelos corredores da loja que lhe permitiam vê-lo. Pegava-se a todo momento olhando para cima, através do vidro, às vezes sem perceber. Não tinha a real pretensão de vê-lo, mas olhava mesmo assim.

Começou a frequentar a loja em horários diferentes. Quem sabe ele se levantaria em algum momento? Talvez na hora do almoço? Mas, nada. Ou ele simplesmente não estava, ou estava lá, de costas, sentado e inerte. Ele e sua nuca indecifrável.

Certo dia, enquanto andava pelo corredor central, olhando para o vidro, Isa deu um forte encontrão em um rapaz magro, de estatura média, sobrancelhas grossas e rosto honesto, com entradas bem pronunciadas no cabelo muito encaracolado. A topada foi tão forte que derrubou o celular, no qual ele falava, e os shampoos que estavam na prateleira.

- Ai, moço, por favor me perdoe! Eu estava tão distraída que não vi!
- Imagine, não tem problema!
- Não, não! Olha me perdoe, eu realmente não sei onde estou com a cabeça!

Envergonhada, abaixou-se na frente dele para apanhar os shampoos que estavam no chão. Usava uma blusa florida e alegre, com decote muito discreto, que não revelava nada, mas permitia ver seu colo de pele muito clara. Ele também abaixou-se, enquanto admirava sua beleza natural e frágil, no rosto sem maquiagem. Ajudou-a pegar as poucas embalagens de shampoo que estavam pelo chão. E pegou também o celular, cujo visor havia quebrado na queda. Pôs no bolso, rapidamente, sem que ela notasse. Não queria que ela percebesse que o tinha quebrado.

Voltaram a levantar, trocando mais algumas palavras:

- Obrigado pela ajuda!
- Imagine! Espero que não tenha se machucado!
- Não, não machucou. Mas tenho que ser mais atenta! Me desculpe.
- Perdoo com uma condição...

Naquela hora, sem querer, como sempre fazia, Isa olhou para o vidro. A cadeira do homem girava no próprio eixo. O homem da nuca havia acabado de se levantar! O mundo ficou em câmera lenta e os sons ficaram abafados, como música embaixo d'água, indistinguível. Será que voltaria? Será que tinha ido embora - que horas são? - ou tinha ido falar com alguém e voltaria em seguida? Tinha ido ao toalete? Será que ela finalmente iria vê-lo?

- A condição é você aceitar tomar um café comigo! - disse o rapaz.

Mas ela não ouviu. Continuava a olhar para o vidro, como uma criança que olha para as mãos de um mágico, momentos antes do truque ser revelado.

O rapaz insistiu:

- Aceita?
- Hã? Ah, desculpe! Eu não ouvi o que você disse...
- Aceita tomar um café comigo?

Ela sorriu, surpresa. Baixou os olhos e prendeu a respiração por um instante. Tirou o cabelo do rosto e colocou atrás da orelha. Estava lisonjeada com o convite, mas não poderia aceitar. Não poderia! Balançava a cabeça. Tomar um café com um estranho, assim, do nada? Não...

A cadeira do homem da nuca já parara de girar, mas ela não viu. Olhava curiosa para o rosto do rapaz, intrigada com o interesse dele por ela. Estaria sendo apenas gentil ou realmente vira algo nela? Antes que percebesse, respondeu, mantendo o leve sorriso e soltando a respiração, que ainda estava presa:

- Aceito! Aceito, sim! - fez uma pausa, pensativa, impressionada com a própria resposta - Vamos tomar um café!

E saíram andando na direção contrária à do vidro, dirigindo-se para o caixa. O homem da nuca retornou. Tinha ido buscar um cappuccino. E, durante alguns segundos, enquanto assoprava para o cappuccino esfriar, ficou ali, de frente para o vidro, observando o casal que se afastava no corredor em frente. Voltou a sentar em sua cadeira, de costas para o vidro, e continuou a trabalhar. Isa nada viu.

Aquele foi o último dia dele na loja. Havia sido promovido a gerente de uma outra loja da rede, que seria aberta em outro estado. Nunca mais pôs os pés ali.

Isa casou-se alguns anos depois com o rapaz de rosto honesto, cujo celular tinha quebrado. Ela nunca havia de fato se apaixonado pelo homem da nuca. Afinal, era apenas uma nuca. Mas lembrava-se dele às vezes, quando ia à loja. E ali, no corredor onde costumava andar na esperança de vê-lo, de vez em quando se pegava pensando em qual seria o seu nome, e se era feliz.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Decifrando cabelos

"Por mais que protestemos e vociferemos,
sabe a mulher enredar-nos com um simples fio de cabelo."
John Dryden, Dramaturgo Inglês


Eu não diria que é uma homenagem ao Dia da Mulher... É só uma constatação pessoal sobre mais uma prova da superioridade da mulher sobre o homem. Só isso.

Outro dia eu estava em uma dessas lojas Renner, C&A, Mesbla, sei lá, e fiquei um tempão na fila do caixa esperando para pagar alguma coisa qualquer, da qual já não me lembro. Ali me vi, rodeado de mulheres, andando pela loja ou paradas na fila, como eu. Alguma entidade sobrenatural e benévola provavelmente fez com que os homens desaparecessem da face da Terra e manteve ali, por alguns instantes, somente as mulheres - incluindo minha esposa e filhas. Sem ter o que fazer, peguei-me observando uma coisa em cada uma delas: os cabelos.

Cheguei a uma simples e irrefutável conclusão: os cabelos são mais uma prova definitiva da superioridade da mulher sobre o homem. O homem pode até ser mais forte, mais alto, pode comer mais, pode fazer churrasco sem camisa (embora isto seja completamente inapropriado), pode ficar dias sem se preocupar com os pelos faciais e pode até mesmo coçar a própria mão e o braço com a barba grossa, que já até esqueceu o que é uma Gillette. Grande coisa... Mas e as mulheres? Bem, meus amigos, as mulheres têm cabelos. E só isto - como se não bastasse todo o resto - já as faz infinitamente superiores a nós.

Os cabelos são a parte visível do humor da mulher. Os cabelos não mentem. Os cabelos contam, em uma fração de segundo, como se sente uma mulher e o que pensa de si mesma. Para as fêmeas humanas, os cabelos têm importância muito diferente do que têm para os machos, tão menos evoluídos, da mesma espécie.

Cabelos de homens são divididos em dois tipos, apenas: os sem-graça e os sem-gosto. Alguns cortam bem  curtinhos, outros raspam e ponto final. Que criativo! Alguns os deixam crescer mais ondulados, outros - normalmente bem jovens - deixam um franja dura apontando para o céu (talvez em um pedido desesperado por uma intervenção divina, que nunca vem). Outros, ainda menos afortunados, deixam crescer atrás um mullet para compensar a calvície cada vez menos disfarçável na frente. E há ainda os já maduros que ainda usam gel no cabelo, na tentativa de ficarem minimamente parecidos com aquilo que gostariam de ser desde a adolescência e nunca se tornaram. E os bonés?! Ah, os bonés... Nenhum homem com mais de 10 anos deveria ser autorizado a usar bonés, a menos que esteja sob o sol do Saara. Há também os tios paquerando alguma mocinha, que pintam os cabelos com um preto mais preto do que a graxa daquele sapato que eu ia engraxar nas férias, mas não fiz até hoje. E também os que pintam de acaju, por acreditarem piamente que cabelos cor de mel queimado ficam ótimos em um homem que deveria ter assumido há uns 15 anos os fios grisalhos. Aliás, só o grisalhos estão perdoados. Eles e os carecas. Os demais, sem exceção, encaixam-se nas categorias dos sem-graça ou dos sem-gosto.

Já os cabelos das mulheres são muito mais interessantes. São teimosos, temperamentais, mandões - como suas donas, diga-se - e teimam em não ser categorizados, porque estão em permanente mudança. Aponte-me uma única mulher que use o mesmo penteado há muitos anos, e prometo calar-me. Não há. Algumas podem até afirmar estarem felizes com o próprio cabelo. E talvez até estejam. Mas isto não as impede de mudá-los ao sabor dos temperos da própria vida.

Ali, na fila do caixa, vi infinitas cores de cabelo. Havia algumas loiras de cabelos muito claros e finos, como se olhasse para uma recém-chegada de uma cidade finlandesa cheia de consoantes no nome. E outras, loiras tingidas, mas cuidadosamente naturais: com fios mais grossos e alisados, mas minunciosamente manipulados para não parecerem artificiais. E havia também aquelas loiras que, certas de que "só mais uma semaninha não fará diferença", tinham nas raízes muito escuras a mensagem de "é, eu ando sem tempo. Dá mesmo pra notar?". E havia também as quase-loiras-ai-que-dúvida-tá-bom-vamos-em-frente-mas-não-muito-faça-só-alguns-reflexos-só-para-dar-uma-iluminada-sutil-cuidado-para-não-exagerar. Entre estas, algumas, com fios dourados e perfeitos. Outras, vítimas de mãos menos habilidosas, que pretendiam reflexos acobreados, acabaram ficando com faixas cor de mexerica que, espera-se, hão de desaparecer em alguns dias. E havia também as seguras e belas senhoras loiras-quase-grisalhas, que sabem exatamente como fazer para se manterem lindas na maturidade, disfarçando-a sem negá-la.

Havia também as morenas, com cabelos que variavam do castanho vivo, cor de doce de leite argentino, passando pelo açaí, até as morenas profundas, com cabelos negros, lisos e brilhantes, chovidos e finos como os das índias, ou volumosos e cheios de balanço como de uma cigana andaluz. Ou ainda, ondulados ou até crespos, que não precisam nem de pente (porque são penteados com os dedinhos de suas donas), cheios de personalidade e vigor, sempre alegres e seguros de si, como os das mulatas que, perdoe-me o resto do mundo, só nós temos. E também as asiáticas, com seus cabelos sempre impecavelmente lisos e com volume perfeito, brilhantes e negros como os olhos exóticos de suas donas.

E as ruivas? Menos comuns, mas relembrando alguma pintura europeia antiga perdida na memória, variavam entre intrigantes e seguros tons de um vinho-escuro, cor de cereja fresca, profundo e elegante, até o imperdoável e desesperado por-favor-alguém-olhe-pra-mim cor de cereja ao marrasquino em bolo dormido de padaria, que não ficaria bem nem na Moranguinho.

E os comprimentos? Uma enorme variação entre os compridíssimos "não corto os cabelos desde os 12 anos, não sou crente e ninguém tem nada com isso", retos ou em V, passando pelos "na altura dos ombros" à prova de erros, e, para as mais corajosas, os um pouco mais curtos - entre eles, o inigualável Channel, da  mulher discreta, mas que não tem nada a esconder, ousada e segura o suficiente para mostrar o pescoço e o colo sem medo. Comportado, reto, com curvas, repicado, assimétrico ou super simétrico, com franja ou sem... Acho o Channel tão irresistível, que casei-me com a dona de um, que me segura há 15 anos. Varia daqui, varia dali, mas nunca deixou de ser um apaixonante Channel.

Vi também cabelos curtíssimos de mulheres muito, muito ocupadas, que não têm um segundo a perder. Ou então de outras que com eles simplesmente não estão preocupadas e cortaram-nos o bastante para deles se esquecerem por algum tempo. Ou então, quem sabe, tão curtos porque precisassem recomeçar algo do zero - e fizeram do cabelo a prova visível do anseio pelo recomeço tão necessário. Não estava na fila, mas juro que é real: uma conhecida recentemente apareceu completamente sem cabelos, com um longo e colorido lenço em seu lugar. Ela, belíssima, mesmo sem os cabelos, dá uma bronca no próprio marido, desajeitado: "Ei, cuidado! Fiquei uma hora fazendo chapinha pro cabelo ficar lindo deste jeito!". E ainda abriu um sorrisão, que contagiou todos à sua volta. É, porque como se não bastassem os cabelos, as mulheres têm também os sorrisos... E um pode facilmente compensar a ausência do outro, em caso de adversidades.

E os cabelos presos? Havia naquela fila jovens mulheres com tranças longas, que lembravam as da filha dos Capuleto nas cenas do filme de Franco Zeffirelli, e também belos, modernos e independentes rabos de cavalo que dizem "estou, sim, cheia de coisas para fazer", mas com fios caprichosa e rebeldemente soltos atrás, sinalizando sem querer um traço da ousadia e do senso de liberdade comum a quase a todas as mulheres bem resolvidas. E o coque? Atraidor imediato de olhares, frágil e cheio de nuances, o coque envolve enrolar, e enrolar, e dar uma volta aqui, e outra ali, e arranjar um palito, um hashi, uma caneta ou sei-lá-o-quê para prendê-lo de forma quase displicente e natural. O coque avisa "olha, estou ocupada, sim, mas faço questão de estar linda". Não sou mulher, mas tenho certeza de que as invejosas não suportam um coque bem feito.

Havia também franjas, de muitos tipos. Compridas e estilosas, caindo misteriosamente sobre os olhos, ou curtas e honestas, como de menina comportada. E havia também franjas domadas por uma infinidade de "coisas" (o léxico masculino para esses objetos é bastante restrito, perdoem-me): fivelas e tiaras para prender grandes franjas e deixar à mostra um rosto que precisa ver tudo sem obstáculos. E também piranhas, jacarés, presilhas e sei-lá-o-quê-mais que se fixam aos cabelos como pequenos pentes obedientes, formando esculturas irreprodutíveis e efêmeras em cabelos vaidosos e exigentes. 

Por fim, há aquelas senhoras - normalmente são senhoras, ué! - com cabelos orgulhosos e super armadões, escovadíssimos e provavelmente modelados no secador em direção ao céu, talvez com um pouco de laquê, emoldurados por grandes brincos dourados e óculos escuros enormes. Nestes casos, o cabelo não só revela o humor de uma mulher, como permite que se preveja seu futuro próximo: suas donas farão o possível para preservá-los assim, pelo menos até a manhã seguinte. Assim, os benefícios de tamanho esforço não hão de ser tão efêmeros. Naquele noite, talvez até tenham dormido sentadas...

No fim das contas, passados alguns instantes, os homens voltaram a aparecer, e aqueles cabelos todos pararam de conversar comigo. Mas, mesmo que nossa conversa tenha durado alguns poucos segundos,  não me deixaram mesmo dúvidas: jovens ou idosas, com longos ou curtos, naturais ou pintados, presos ou soltos, os cabelos são mais uma prova da generosidade feminina: os cabelos das mulheres pedem para ser decifrados. Mas, coitados de nós, homens: se não conseguimos sequer ouvir e entender as palavras das mulheres, como vamos conseguir escutar seus cabelos?

Bem, escutá-los não creio que vamos conseguir, não. Não se pode esperar tanto de nós. Mas admirarmos... Ah, isto é fácil! Caramba, como isto é fácil!

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Pessoas Nubladas




"Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha"
Millôr Fernandes

Nunca entendi muito bem aquelas pessoas cujo humor varia com o tempo e temperatura. Desculpe-me se você é uma delas. Eu sei que são relativamente comuns. Mas eu simplesmente não consigo entendê-las.

Quem nunca ouviu alguém reclamar "desta chuva que me deixa tão triste"? Ou "até que enfim terminou o inverno. Eu não aguentava mais aquela tristeza"? Ou nunca viu os âncoras de telejornal quase reclamando com a aquelas moças bonitinhas que apresentam a previsão do tempo: "Fulana, afinal, quando é que o sol vai voltar?".

É, realmente não entendo. É claro que é normal sentir-se mais confortável em um certo ambiente. Eu, por exemplo, prefiro o friozinho. Me sinto mais disposto, mais alerta, mais vivo. O calor me deixa letárgico, lento e retardado - o que não é muito favorável, considerando-se que vivo em um país tropical...

Mas não me refiro a conforto físico. É óbvio que ninguém gosta de passar frio demais, nem calor demais. Refiro-me a humor. Tem gente que está perfeitamente bem hoje, mas, amanhã, com o dia nublado e garoa caindo de nuvens grávidas, põe-se melancólica, como se a chuva disparasse um gatilho invisível da tristeza.

Aposto que muitas das pessoas que têm esta característica acreditam também em destino. E acreditam em sorte e em azar. E sejam supersticiosas. Vejam só, não estou dizendo que isto é ruim! Não! Acho apenas curioso tentar entender como elas pensam.

Acho que acreditam em destino, sorte e azar, porque veem neles uma explicação razoável para aquilo que acontece em suas vidas. Existe um certo conforto na ideia de destino. Acreditar nele nos exime de responsabilidades pelo que nos aconteça. Afinal, é tudo obra do destino: uma coisa externa, incontrolável, que simplesmente faz as coisas serem como são. Mais ou menos como o tempo e temperatura: as nuvens simplesmente vêm e nublam o céu e a vida. É incontrolável - e não há nada que se possa fazer.

Fico me perguntando como fazem as pessoas que vivem em lugares realmente "hostis" à vida. Outro dia - graças ao meu fascínio por lugares frios e inóspitos - pesquisei sobre uma cidade russa, localizada na Sibéria, chamada Oymyakon - o lugar habitado mais frio da Terra. Durante a noite do sábado de Carnaval de 2013 - enquanto escrevo este texto e tento achar um título para ele - a temperatura lá é de -54 graus Celsius. Já chegou a -70 graus. Dá para imaginar? Quase 90 graus menos do que a média da temperatura anual que temos em uma cidade como São Paulo! São quase 80 graus menos do que o dia mais frio que tivemos no ano passado. Lá, coisas triviais tornam-se inviáveis. Não dá para usar caneta fora de casa: a tinta congela. Aparelhos eletrônicos funcionam de modo errático. O leite é vendido em blocos sólidos, não em estado líquido. E, ainda assim, a menos que a temperatura fique abaixo de -52 graus, as crianças vão à escola normalmente. Se a temperatura se mantiver assim até segunda-feira, as crianças de Oymyakon se parecerão com as brasileiras, durante o feriadão de Carnaval: não irão à escola.

Há o outro extremo: em Al’Aziziyah, na Líbia, a temperatura já chegou a 57,8 graus Celsius, em 1922. Sabe-se lá a quanto chega hoje em dia. No Vale da Morte, nos Estados Unidos, a temperatura durante o dia passa de 50 graus, e cai para abaixo de zero durante a noite. Dá para querer mergulhar no sorvete de dia, e no chocolate quente à noite.

Como será o humor das pessoas nestes locais? Não sei. É claro que esses não são lugares suportáveis por qualquer pessoa - tanto que as populações em locais como estes são muito reduzidas. De qualquer modo, não imagino que o humor delas se deixe afetar pelo tempo e temperatura. Porque elas não podem se dar este luxo. Porque, se bobearem, elas morrem. Não há desculpas. Não dá para ficar no meio da estrada porque a gasolina acabou. Não dá para esquecer de fechar a janela da cozinha. Não dá para deixar para ir fazer compras amanhã, quando o tempo melhorar. Porque ele simplesmente não melhora. Porque, melhorar, para eles, é manter-se ainda muito acima (ou abaixo) do suportável para nós, que vivemos em um país "abençoado por Deus e bonito por natureza".

Certa vez, durante o verão, um Canadense foi à minha empresa e, no intervalo de uma reunião, foi pegar um solzinho do lado de fora. Naquele dia, eu estava incomodado com o calor e a última coisa que me passaria pela cabeça seria ficar fritando ao sol com roupa social. Perguntei a ele:

- Você não quer vir aqui para dentro, onde há ar condicionado?
- Não. Estamos no inverno no hemisfério norte. Volto hoje à noite para o Canadá. Então, acho que vou aproveitar um pouco mais o sol do Brasil.

Eu, como esforçado e dissimulado anfitrião, fiz companhia a ele por alguns minutos. Mas confesso que, folgado, senti alívio quando voltei para a temperatura agradável do ar condicionado, achando graça do meu desconforto com aquele calor que, para o canadense, era exatamente o que ele precisava.

O fato é que viver aqui só aumenta nossa obrigação em não procurar falsas desculpas, falsas explicações, sempre externas a nós mesmos, para problemas que, na verdade, estão do lado de dentro. Quem fica triste porque está chovendo, muito provavelmente já estava com o rosto molhado antes da chuva chegar. Quem fica triste porque está friozinho, talvez precise aquecer o coração antes de aquecer os pés.

E o mesmo vale para aqueles que não gostam do Carnaval, ou não gostam do Natal, ou não gostam dos almoços em família, nem de shopping centers, nem de rock, nem de comédias românticas, nem de televisão, nem de sei-lá-o-quê-mais. Deve haver algo nestas coisas que, bem lá no fundo, talvez lembrem essas pessoas daquilo que elas não são, mas gostariam muito de ser. Ou são, mas preferiam que não o fossem.

Previsão do tempo para amanhã: tempo alegre, para pessoas ensolaradas. Afinal, é Carnaval e feriadão. Só aqueles com problemas de verdade têm desculpas para se sentirem nublados. O resto é mera tempestade em copo d'água.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

"Baixando" a guarda - Reflexões para 2013

No texto de Ano Novo de 2012, desejei aos meus amigos leitores "Grandes Decisões". Desejei que tivéssemos a atitude de decidir o que precisava ser decidido e fazer o que tinha para ser feito. Sugeri que olhássemos para frente, e não para trás. Talvez tenha sugerido isto tudo devido a um inconsciente "senso de urgência", temendo por um mundo que estaria por acabar - muito embora não acreditasse que de fato aconteceria. Como, de fato, não aconteceu. Estamos aqui, vivinhos e respirando, pensando em como vamos continuar, já que, bem, não acabou.

Este ano, meu desejo não invalida o do ano passado. Mas, confesso, é um desejo mais trivial, mais mundano. Em 2013, desejo que a gente "baixe a guarda". "Baixe", assim mesmo, escrito do jeito errado. Desejo que  a gente filtre menos, experimente mais, proteja-se menos daquilo que não conhece e que é automaticamente questionável e desinteressante. Desejo que busquemos menos a perfeição.

Isso não quer dizer que devamos aceitar qualquer coisa! Não, não! De modo algum! Não proponho que nos tornemos daquelas pessoas para as quais tudo está sempre bom, aceitável ou tolerável. Não proponho que aceitemos o medíocre, fácil ou basal. Nah! Não proponho uma resignação coletiva, que nos faça aceitar automaticamente o que é simplesmente inaceitável. Não é isso! Buscar a perfeição é louvável. O problema está em não aceitar aquilo que ainda não é perfeito - também conhecido como "praticamente tudo nesta vida".

O que proponho, na verdade, é de fato olharmos de frente para o outro. De frente mesmo, com olhos bem abertos e atentos, com a luz acesa. Não um olhar de lado, desconfiado ou de relance, apenas. Porque, ao olhar para muitas coisas, muitas situações e muitas pessoas, é impossível que pelo menos uma parte delas não nos pareça minimamente interessante. Ou não esteja à nossa suposta altura.

Confesso que tenho uma tendência extrema a ser centralizador, a trabalhar sozinho, a querer tudo exatamente do meu jeito, porque qualquer outro é ruim. Sou campeão em julgar os outros. Já me disseram várias vezes que eu me acho o Dono da Verdade. Eu ponho o dedo em riste e falo sem hesitar: "Isto é uma falácia! Não sou Dono na Verdade! Eu simplesmente tenho certeza de que estou certo quando estou certo!" Humpf!

Mas é verdade, sim. Ao longo da vida, sempre achei que a Verdade fosse um cachorrinho Chihuahua com olhos esbugalhados, que me seguia numa coleira onde quer que eu fosse, latindo corajosamente para quem ousasse desafiar seu ridículo latido pseudo-feroz.

Uma certa dose de timidez, aliada a uma imensa dose de perfeccionismo, me transformaram em um chato profissional e um centralizador permanente. Ainda que isto tenha dado certo em alguns aspectos - não posso reclamar da vida, em absoluto -, em outros, tornaram-me uma pessoa um tanto inacessível e um bocado inflexível.

Nos últimos anos, felizmente, a esposa que é meu exato oposto no quesito "sociabilidade", um par de filhas que me fazem de gato-e-sapato, aulas de dança de salão que me forçam a lidar com o improviso e com minhas inabilidades, e uma atividade profissional que me leva a conviver com outras pessoas para poder levar projetos adiante em equipe, me fizeram melhorar, sim. Me fizeram querer estar com outras pessoas, com situações inesperadas ou com diferenças fundamentais daquilo que reflito no espelho.

E, caramba, que bem isto me fez! Não, não me tornei uma pessoa melhor. Continuo o mesmo ermitão de sempre, mas as pessoas que me tiraram da caverna. Não fui eu, foi a vida que melhorou. Quando passei a reconhecer nas pessoas os inumeráveis talentos que me faltam, quando passei a depender mais delas, e menos de mim mesmo, tornei-me um ermitão mais feliz.

Hoje em dia, vemos muitos educadores falando que a geração atual só pensa em si, só quer saber de ter seus próprios caprichos atendidos, imediatamente. Em uma época em que cada um tem o seu próprio computador, a sua própria TV e os seus fones de ouvido que o isolam do resto do mundo, passamos a ter uma sensação cada vez maior de independência, de auto-suficiência, de "que se dane o resto do mundo", porque, afinal, "eu sou mais eu".

O que eu desejo, para 2013, é que sejamos "sou mais nós". Sim, as multidões muitas vezes são burras e medíocres. Sim, às vezes as pessoas gostam daquilo que odiamos. E, não, não precisamos necessariamente gostar delas, ainda que as aceitemos. Mas, por outro lado, quantas outras podem gostar do mesmo que nós? E quantas outras podem nos ensinar a gostar de coisas que, de outro modo, não teríamos nos permitido sequer conhecer?

Desejo, meu caro amigo leitor, que em 2013 os chihuahuas Donos da Verdade se calem. Desejo que seja um ano em que continuemos e nos afastar do ruim, mas que possamos nos abrir para aceitar que o "apenas bom" muitas vezes já é muito mais do que merecemos. Desejo que busquemos a felicidade no que nos dá prazer e nos causa alegria, mesmo que exija sacrifício, trabalho e disciplina. Desejo que se busque o melhor, mesmo que não seja o perfeito. Porque, afinal, o perfeito habita somente o amanhã.

Feliz 2013!

domingo, 2 de dezembro de 2012

Não era o Cirque du Soleil


Sabe, eu tive a felicidade de ver alguns espetáculos realmente extraordinários ao longo dos anos. Espetáculos realmente memoráveis, daqueles que, no meio, você para e pensa "Caramba, que privilégio é poder assistir isto!".

Hoje vi um espetáculo com um propósito muito diferente dessas super-produções. Nele, estava a minha filha menor, atualmente com 9 anos. Era um espetáculo de circo, com alunos de 8 a 14 anos, na escola onde estuda - e onde eu também estudei.

Durante uma hora e meia, vimos um enorme grupo de crianças - umas 100, talvez - fazendo as coisas mais básicas que se pode fazer em um circo: malabarismo, equilibrismo, acrobacias, cambalhotas, contorcionismo. Básicas, sim, mas incrivelmente encantadoras. Não havia nenhum super-homem, dando 5 saltos mortais em uma corda bamba, nem malabarismos com fogo, nem trapézios sem rede a dezenas de metros de altura. Não. Eram crianças mostrando, em um espetáculo cuidadosamente pensado para que elas pudessem brilhar, aquilo que aprenderam a fazer no curso de circo.

Recentemente participei de uma das aulas, que foi aberta aos pais. Pobre de mim - e dos outros pais e mães que participaram. As tais coisas "básicas", para nós, meros adultos, eram muitas vezes impossíveis. Andar numa perna de pau? Só se fosse para dar um passo e cair. Subir no trapézio? Só apoiando-me na perna da professora, que tem quase metade da minha idade e do meu peso. Dar cambalhota? Só afrouxando o cinto da calça...

No espetáculo de hoje elas não eram o Cirque du Soleil, mas me fizeram sorrir ininterruptamente por uma hora e meia. Me encantou ver as crianças fazendo aquelas coisas inimagináveis para nós, adultos. Mesmo as mais simples. Algumas, real e assustadoramente difíceis. Elas me fizeram torcer para que cada malabarismo desse certo, para que cada salto fosse mais alto, para que cada aplauso se fizesse ouvir. Torci e vibrei com todas elas. Me diverti como... bem... como criança.

O Cirque du Soleil é encantador, sem sombra de dúvida. Ele nos mostra até onde o talento, a disciplina, a excelência, podem chegar. Nele, aplaudimos o que há de melhor, o que não se vê em qualquer outro lugar. Nele, admiramos quem chegou no limite.

Mas, hoje, aquelas crianças mostraram a "outra ponta" desse fio: o negócio delas não era "ser o melhor", não era fazer o impossível, nem mostrar um talento excepcional em cada uma das apresentações. O negócio delas era mostrar que o possível, que é extraído também com dedicação, com esforço, com auto-confiança, persistência e coragem, é também incrivelmente desafiador e deliciosamente divertido. Vi, sinceramente, que todas delas - mesmo as mais nervosas - se divertiram e pareciam genuinamente orgulhosas do que ali apresentavam. Mal sabem elas que talvez estivessem nos ensinando mais ainda do elas que próprias tinham aprendido.

Que privilégio dessas crianças passar por essas experiências! Que privilégio para os pais assistir a isto de camarote! Que auto-confiança terão elas no futuro, sabendo do que são capazes e sabendo que "se eu tentar de novo, vou conseguir"! Que legal ver minha filha fazendo algo que eu, no auge da minha vida adulta, não sou capaz de fazer. Se é mesmo verdade que os filhos são sempre melhores do que os pais, hoje vi isto com todas as cores (e eram várias, imagine) e tons.

Em um mundo tão guiado pela competitividade, em que os segundos lugares são apenas tão importantes quanto os últimos, em que o novo é imediatamente descartado pelo novíssimo, em que o legal é esquecível porque só vale o que é extraordinário, adorei ver as crianças se divertindo ao desafiarem os seus próprios limites, e não lutando para ultrapassar limites que alguém lhes impôs, porque ficou-se definido que abaixo daquilo seria inaceitável.

Todos nós já ouvimos alguém dizer (ou talvez tenhamos dito, nós mesmos): "Caramba, eu não sou bom em nada! Não sou bom aluno, não sei cantar, não sei tocar um instrumento, não falo línguas, não danço bem, não sou bom em esportes, ninguém quer me namorar." Mas aí o tempo passa, e a vida e as experiências que ela promove inevitavelmente nos levam a percorrer certos caminhos que nos permitem descobrir talentos que nem sabíamos que tínhamos. Sei lá... Você pode ser bom no cubo mágico. Ou você pode saber fazer mágica. Ou pode saber contar piadas. Ou sabe tudo sobre cinema. Você se torna bom em algumas coisas e descobre que há pessoas que o valorizam por isto, mesmo que não pareça muito útil à primeira vista, mesmo que não façamos do talento nossa profissão. Talvez aí esteja um dos segredos para ser feliz: extrair prazer daquilo que os talentos proporcionam, independente de sua "utilidade" imediata. E olha que simples! Para que se possa descobrí-los, basta experimentar.

Minha filha, e todas aquelas crianças, estavam fazendo hoje exatamente isso: experimentando, permitindo-se descobrir aquilo de que gostam mais, aquilo no que têm mais facilidade ou mais dificuldade. Quais são, enfim, seus talentos; aquilo no que são boas, ou não. E, se não são, vão descobrir em que coisas querem investir, para que possam melhorar. Aquelas crianças estão, não tenho dúvidas, se preparando para serem adultos que se conheçam bem, mas que sejam humildes o suficiente para se perguntarem "o que posso aprender hoje?".

Que brincadeira deliciosamente séria esta, a do circo. Não, não era o Cirque du Soleil. Nele, vemos o fim do caminho, o topo da montanha, o sucesso de quem "chegou lá". Lindo, sem dúvida. Mas, hoje, vi o início da jornada, a base da montanha, o rostinho de pequenas pessoas com uma infinidade de caminhos a percorrer e uma imensidão de talentos por descobrir - no circo ou fora dele. Uma visão tão deslumbrante, sem dúvida, quanto a melhor das atrações do melhor dos espetáculos que já vi, e que, não surpreendentemente, me fez pensar a mesma frase: "Caramba, que privilégio é poder assistir isto!".

sábado, 28 de julho de 2012

Absolutamente Sensacio... O que era mesmo?


Sabe uma profissão que eu não gostaria de ter? Engenheiro de empresas de aparelhos eletrônicos. Não, não tenho nada contra elas, em absoluto! Aliás, como profissional de tecnologia (em uma empresa de softwares), sou usuário de muitos equipamentos que elas desenvolvem.

Mas me assusta aquilo que essas empresas "personificam": a obsolescência  imediata - um retrato fiel de quem nos tornamos nos últimos 20 anos. Não estou falando de "obsolência programada", não. Isto é coisa do passado. Atualmente, é imediata, mesmo. Essas empresas lançam produtos já sabendo que são ultrapassados. Em poucos meses, tiram de linha o que acabaram de lançar, para dar espaço a uma nova geração mais sofisticada, mais brilhante, mais rápida, mais incrível e, paradoxalmente, mais descartável do que nunca - porque a próxima já está na fila, pronta para ser lançada. Não vou entrar na questão econômica envolvida nisto. Quero, na verdade, pensar nas pessoas e o que isto mostra a respeito delas. De nós, na verdade.

Permita-me pintar uma caricatura: o João. Ou John. Ou Juan. Ou Johann. Ou Jean. Ele está passando a noite na fila para comprar, no dia seguinte, aquele novo celular que vai ser lançado, daquela marca que todos admiram. Mas ele sabe que não está lá porque seja consumista, impulsivo ou influenciável. Não, não! Ele está lá porque é especial, criativo, inovador e precisa de um aparelho à altura da sua importância, do seu raciocínio sofisticado, do seu repertório refinado. Ele é bom demais para ter um aparelho qualquer. Ele precisa daquele aparelho. E, daqui a 6 meses, quando sair outro, ele vai jogar aquele fora e adquirir, novamente, um novinho em folha. Afinal, o que ele vai comprar amanhã de manhã (quando a loja abrir, e ele sair exibindo-o como se fosse um troféu, ou uma ode à sua personalidade inovadora), já vai estar velho em 6 meses, não vai?

Sejamos honestos: não, não vai. Assim como a TV LCD que você comprou há 2 anos não está velha e não precisa já ser trocada pela nova LED 3D. Assim como tantos e tantos outros exemplos, aplicáveis a qualquer fabricante e a muitas famílias de classe média em tempos de "nunca antes na história desse país".

Certo, mas o que isto quer, de fato, dizer? Porque tantos agem assim? Não sou psicólogo e não sei o termo exato para isto. Mas eu acho que esta tal "obsolência imediata" é derivada de um traço que se tornou comum à personalidade de muitos atualmente. É aquilo que chamo de "necessidade permanente de excitação máxima". Explico: à medida em que o repertório aumenta, a tendência é nos tornamos mais exigentes. Isto é assim para tudo na vida, certo? Quem tem carro, não gosta de andar de ônibus. Quem viu o Cirque du Soleil, não se impressiona com qualquer malabarista jogando três bolinhas de tênis para o alto. Quem já viu aquele super show daquela super banda, com luzes, telões e sei-lá-o-quê-mais, pode ter dificuldade de apreciar um mero "voz, violão e banquinho". Quem já viu o "Fantasma da Ópera" pode achar enfadonho aquele monólogo com aquele ator desconhecido naquele pequeno teatro de arena. Pois é. Ficamos mais exigentes quanto mais cresce nosso repertório. Hoje, muitas pessoas, com acesso a viagens, informação, cultura, dinheiro, tornaram-se provavelmente mais exigentes com suas experiências do que seus pais foram.

Este repertório cheio de experiências "incríveis" (sem entrar no mérito se de fato o são) cria nas pessoas uma certa "expectativa por ser encantado sempre". O que vem não pode ser inferior ao que foi. Se a viagem que você fizer hoje for igual à das últimas férias, será apenas razoável. Se o show que você vai ver amanhã for parecido com o que viu alguns meses atrás, será apenas legal. Se o livro daquele autor que você gosta não for sensacional, pode ser sinal de que ele está decadente.

Temos a necessidade de ser, a todo tempo, a cada nova experiência, envolvidos por algo inteiramente novo, surpreendente e avassalador. Criamos aversão ao que é apenas legal, bacana, digno, e esperamos que tudo seja sempre extraordinário, sensacional  e estonteante.  Mesmo que seja um mero aparelho de telefone, que agora - ora, vejam só! - tem câmera dos 2 lados! Enfim, precisamos estar permanentemente em clima de paixão, envolvidos por algo que nos tire do chão e nos faça sentir especiais.

Mas há um problema nas paixões: elas ardem muito intensamente. E fogo demais não aquece e acolhe; simplesmente queima e destroi.

A problema não está nas paixões; está em achar que elas precisam ser permanentes ou que a nova paixão necessariamente substitui as anteriores. Permanência e paixão são palavras opostas. Paixões são, por definição, efêmeras.

Fecha-se o círculo, portanto: as pessoas têm necessidade de paixões, mas elas são necessariamente efêmeras. Então, apaixonam-se o tempo todo por coisas novas e descartam as "antigas", mesmo que não o sejam. A "obsolência imediata", portanto, não é forçada pelas empresas que nos empurram os aparelhos "indispensavelmente novos". É, na verdade, apenas reflexo de quem nos tornamos. É apenas um sintoma. Assim como são os casamentos cada vez mais curtos, os troca-troca de empregos cada vez mais frequentes e os blocos cada vez mais curtos nos programas de TV. Da última vez que soube, o padrão era 7 minutos.

Na verdade, levamos isto a níveis estratosféricos. Não tenho certeza, mas acho que foi o filósofo e escritor Mário Sérgio Cortella que observou que, de posse do controle remoto e das TVs por assinatura com 100 canais, somos capazes de zapear dando a cada um dos canais não mais de 2 segundos para nos conquistar. Depois de passar por todos e não parar em nada, enchemos a boca para dizer: "Caramba, não tem nada de bom passando nessa TV!". Quer ver outro fenômeno? Faça a experiência: ligue uma hora dessas na MTV e assista a um videoclipe qualquer ou veja qualquer comercial de TV, em qualquer canal. Note que na maioria deles, os takes não duram mais de 1 ou 2 segundos. Se passarem disto, tornam-se lentos demais para o seu público-alvo. Observe! 2 Segundos apenas. Mais do que isso, ninguém aguenta.

Mentira. Eu aguento. Você também - caso contrário não estaria lendo um texto deste tamanho, na internet. O que eu acho, realmente, é que o caminho - e talvez amadurecer seja o único possível - seja perceber que há muitas paixões ou emoções que vêm daquilo que é absolutamente singelo, trivial, antigo ou comum. Podemos, sim, nos apaixonar por aquilo que simplesmente é, sem necessariamente ter algo a provar ou um compromisso por impressionar.

Às vezes, você quer, sim, ir no Cirque du Soleil. E quer ver o último filme em tela IMAX 3D com som surround 7.1. Mas, quem já ouviu "Comptine d'un Autre Été", de "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", sabe como uma música tão simples pode ser absolutamente encantadora. Quem já acariciou os cabelos de um filho ao adormecer, depois de um dia de brincadeiras, sabe quão sublime este momento é. Quem esteve em frente a uma paisagem completamente longe de qualquer civilização, sabe que a lembrança de alguns poucos minutos pode durar a vida toda. Às vezes, um simples banho numa cachoeira fria pode ser tão revigorante quanto a melhor das massagem naquele spa sofisticadíssimo. O monólogo do ator desconhecido no teatro de arena pode, sim, ser excepcional, mesmo que simples. E mesmo quem já sentiu o aroma do mais encantador dos perfumes, pode sorrir ao sentir o cheiro de naftalina, que faz lembrar a casa da avó ou aquela casa de praia que frequentou na infância.

É, o problema não está nas paixões, nem nos aparelhos, nem nas recompensas. Sou amplamente a favor de recompensas. O problema está em achar que estas recompensas - e as paixões que as buscam - precisam ser necessariamente sublimes, grandiosas, novas ou exclusivas. Não precisam.

Enquanto o João John Juan Johann Jean não entender isto, vai continuar procurando - provavelmente sem encontrar - paixões em telas pequenas e pretas, onde armazena "sua vida" em contatos, arquivos e fotos instantâneas de lugares e pessoas - talvez mais de 50% delas de si próprio: "Eu e a praia". "Eu e minha cerveja". "Eu meus músculos após a malhação". E vai continuar passando a noite em filas para comprar novos apetrechos que mostram que ele é, na verdade, exatamente aquilo que esforça-se tanto em negar ser.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Para se achar ou se perder


Mais de cinco meses se passaram, desde meu último post neste blog. E eu que imaginei que conseguiria mantê-lo com conteúdos pelo menos mensais. Ingenuidade a minha... Mas a verdade é que a razão pela qual eu não escrevi, não foi falta de tempo. Não só.

Quem faz um blog, escreve cartas abertas, publica, é, na verdade, meio convencido. Acredita piamente que tem algo a dizer ao mundo que é absolutamente indispensável, que precisa ser dito, que é tão grande e tão interessante que não cabe dentro de si e que merece ser revelado. Pretensioso, eu sei. E, sim, me senti deste modo cada vez que publiquei aqui.

Mas, este ano, não. Abstive-me de escrever, porque acreditei durante vários meses que meus (poucos, mas fieis) leitores mereciam algo mais do que eu poderia oferecer. Não sei exatamente o porquê, mas foi assim que me senti.

Na verdade, acho que sei: porque não estou em condições de julgar nada, nem ninguém. Ao escrever algo, inevitavelmente estou julgando: uma pessoa, uma situação, um esteriótipo ou qualquer outra coisa externa a mim, que me gera uma opinião incômoda feito um fio de cabelo na boca ou um grão de areia nos olhos, que precisa sair a qualquer custo.

Hoje, não. Não estou em posição de achar explicações que justifiquem isto ou aquilo. Posso, sim, observar, tentar entender. Mas a julgar, não me sinto autorizado, meus amigos. E eu não queria escrever enquanto houvesse qualquer tipo de julgamento em minhas palavras.

Curiosamente, em janeiro deste ano, tive a honra de fazer uma viagem que me mostrou exatamente isto: que os motivos das pessoas, de modo geral, não são passíveis de julgamento. As ações, sim. Mas não os motivos. Estive na Patagônia.

Não sei bem dizer o porquê, mas desde minha adolescência eu era fascinado por conhecer "o fim do mundo". Na verdade, tudo que está "no limite" me fascina: histórias sobre escaladas no Everest, a vida no deserto, peixes abissais, a vida dos esquimós, as expedições à Antártida. Ainda na puberdade, quando ouvi falar em Ushuaia - La Tierra del Fuego - me peguei fantasiando sobre este lugar distante, inóspito e, para mim, completamente desconhecido. Sabia que, se um dia tivesse a oportunidade, visitaria. Que sorte a minha!

Tren del Fin del Mundo - Ushuaia
É claro que minha visão de pessoas aglomeradas em volta de uma fogueira, lutando por um pouco de calor para sobreviver, não combina com a vida da belíssima e charmosa Ushuaia de hoje. Mas foi especialmente gostosa a sensação de estar na última cidade do mundo: no limite do continente, sabendo que não havia nenhuma outra cidade que estivesse mais ao sul do ponto onde me encontrava com minha família. Dali pra baixo, só um vilarejo (em território Chileno) e a Antártida, que ainda sonho em conhecer um dia.

Mas, mais fascinante do que Ushuaia, é El Calafate: a cidade dos Glaciares (calma eu já vou dizer o que isso tudo tem a ver com "não julgar"). Glaciares são imensas formações de gelo, que permanecem desde a última glaciação, há muitos milhares de anos, e que descem as montanhas formando imensas paredes de gelo. Não, não é avalanche, nem é neve. É gelo. Uma montanha de gelo em um lento mas contínuo movimento: e como se estivéssemos na Antártida, imagino. Não dá pra descrever sem ser piegas nem pequeno. Então, não vou nem tentar fazê-lo.

Glaciar Perito Moreno - El Calafate
Na língua do glaciar. Achou as pessoas nesta foto?

O fato é que, ao andar perto dos glaciares, e ver a região incrivelmente inóspita onde estão, me peguei pensando - julgando, na verdade - nos motivos que levaram os primeiros habitantes até ali, quando não havia luz elétrica, roupas térmicas, aquecedores de qualquer tipo. Julguei-os durante muitos dias, tentando achar explicações, sem sucesso.

O que fez uma família vinda da Inglaterra, com duas crianças pequenas, se instalar à beira de uma imensa lagoa, aos pés de um Glaciar, para criar ovelhas, a 2 dias de barco de qualquer civilização? Por que submeter-se a tanta privação? Do que será que fugiam, que precisassem de tamanho isolamento?

E ampliei meus julgamentos para outras pessoas: por que diabos os índios de Ushuaia, que ali viveram durante milênios, não migraram para o norte, atrás de um pouco mais de calor? Porque chegaram tão ao sul, se ao norte encontravam condições supostamente mais favoráveis? Por que se mantiveram por milênios em precárias tendas, pelados, brigando incessantemente contra o frio cortante e perene? E por que os nossos pobres brasileiros ficam passando fome no sertão em vez de tentarem se mudar para um lugar que tenha pelo menos alguma água? E por que os esquimós, no extremo oposto do continente, não vêm um pouco mais para o sul, onde é mais quente? E por que um engenheiro formado na Poli larga tudo para abrir uma lanchonete à beira do mar em uma pequena praia no litoral fluminense? E por que as pessoas que vivem em locais onde há terremotos simplesmente não se mudam de lá? E por que um rapazinho de Governador Valadares, nas Minas Gerais, sonha tanto em ser lavador de pratos em qualquer cidade nos Estados Unidos?

Sempre minhas perguntas estavam relacionadas a "fugir" ou não de algo. Todas elas poderiam ser resumidas em uma só: por que as pessas fogem - ou não fogem - da situação em que atualmente se encontram?

E, ao me fazer estas perguntas, julgar torna-se inevitável. Porque "fugir" de um lugar para outro, ou manter-se nele apesar dos pesares, implica necessariamente em definir certo e errado, melhor e pior, ímpeto ou inércia, desejo ou resignação. Seguindo este caminho, de tentar achar os porquês, minhas perguntas seguiam sem resposta.

Saimos de El Calafate, pegamos um carro e dirigimos por quase 6 horas por uma reta interminável, seca e vazia, até entrar no Chile. Exaustos, chegamos ao Parque Nacional Torres del Paine. Dias antes, houvera ali um imenso incêndio, que destruiu grande parte da vegetação do local. Fomos os primeiros turistas a visitar o parque após sua reabertura. Ali vi algumas das paisagens mais memoráveis que trago na memória, no contraste da vida que já não é, nas cinzas do incêndio, com a vida que teima em continuar a ser, nas várias áreas não atingidas pelas chamas, cuja beleza e intensidade das cores desafia qualquer descrição.

Torres del Paine

Mesmo muito confortavelmente instalados em um hotel, nunca tinha me sentido tão isolado de tudo e de todos. Sem celular, sem posto de combustível e a mais de 250 Km de qualquer cidade. O silêncio era cortado somente pelo incansável vento patagônico, e a escuridão, pela luminosidade fraca de um sol que caprichosamente relutava em se apagar, mesmo depois das 23h30. Dormimos aquela noite ouvindo o vento, que parecia querer levantar as paredes. E, de novo a pergunta: por que alguém viveria ali, em condições tão difíceis?

A resposta para todas aquelas perguntas me veio naquela noite (ou foi minha esposa que me deu a resposta mastigada, e eu estou achando que foi ideia minha?), juntamente com a imagem dos índios, da tal família Inglesa à beira do lago, dos esquimós, do Sherpas aos pés do Everest, no pobre nordestino e sua sandalinha de dedo: as pessoas vivem ali - e em qualquer outro lugar - porque querem ser felizes. Simples assim.

Não precisa haver nenhum outro porquê a não ser este, precisa? Ser feliz. Até pode haver outros motivos... Mas todos tornam-se inválidos sem que este esteja como pano de fundo. Estavam ali minhas respostas. Os índios não iam para o norte, atrás de calor, porque eram felizes cobrindo-se com gordura de foca para se proteger do frio. Os esquimós não vêm para o sul porque são felizes em seus iglus. E os brasileiros que ficam no sertão, são felizes porque ali abunda mais esperança do que água. Nem todos estão buscando, cavando, procurando, decifrando, caminhando. Nem todo mundo está. Alguns simplesmente são.

E os que saem? Bem, o fazem pelo mesmo motivo: porque acreditam que podem ser mais felizes em outro lugar. No fundo, acredito que este é o verdadeiro objetivo - seja para sair, seja para ficar. Cada um com seus motivos: alguns para se achar, outros para que não se percam. Mas todos, sem exceção, porque desejam ardorosamente ser felizes.

E isto vale para quase qualquer coisa na vida, não? Sair ou manter-se no emprego, fazer um curso de teatro ou aprender um novo idioma, fazer dieta ou entupir-se de carne na churrascaria, sair para dançar ou ficar em casa para dormir: tudo, para que se tente ser feliz. Resposta única e simples, para perguntas desnecessariamente complicadas e tolas, as minhas.

Escrevo este texto meses depois de ter me dado conta disto tudo, digitando em um notebook, no colo, em um saguão de Aeroporto muito, muito longe de casa, no Canadá. E certo de que, não importa quantas vezes nem para onde eu viaje, há poucas coisas que me causem tanta felicidade quanto voltar para casa. E ninguém tem o direito de julgar isto - não importa quão longe a casa fique.

Não se iludam: meus próximos textos voltarão a ter julgamentos, sim. Crônicas são julgamentos obtusos derramados em palavras rasas. E, confesso: adoro fazê-los. Mas, nestes primeiros 5 meses do ano, longe por completo das palavras escritas, achei que a distância - materializada na tal viagem à Patagônia, que não ia virar texto, mas virou - era algo do qual eu realmente precisava, e que meus leitores realmente mereciam. Perdoem-me se, ainda sim, fiz algum julgamento sem perceber.

Próxima viagem: não sei. Mas, com certeza, para algum lugar em que espero ser feliz. Igualzinho a você. Igualzinho a todo mundo.

Na Patagônia, as crianças voam. E os adultos, também.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Grandes Decisões: Resoluções para 2012



Não tenho a menor dúvida: à medida em que a idade avança, o tempo passa mais depressa. Quando eu era criança, as semanas eram eternas. As férias, deliciosamente intermináveis. Ao final de cada dia, parecia que eu ia dormir tendo vivido uma eternidade entre o nascer e o pôr do Sol.

Hoje, não. Chego ao final de dezembro perguntando-me quando foi que terminou janeiro... E, ao mesmo tempo, chego cheio de novos pedidos, esperanças e promessas para um ano que, certamente, será curto demais para tudo o que espero dele.

De qualquer modo, aqui está meu desejo para 2012 (aquele que, acreditam alguns, será o ano do fim do tempos): desejo um ano de grandes decisões. "Decidir" vem do latim decidere, "DE-, “fora”, + CAEDERE, “cortar” 1. Decidir, portanto, é o mesmo que "cortar fora", "romper".

Não, não proponho revoluções de nenhum tipo. Não sugiro que nos retiremos do mundo para recomeçar tudo do zero. Não. Sugiro apenas deixar no passado o que a ele pertence - sem negá-lo, sem dele zombar - para nos focarmos no que está por vir, para que tenhamos, amanhã, um presente e um futuro melhores do que temos hoje.

Sugiro que olhemos mais para o que falta ser feito, do que para o que foi. Sugiro que tenhamos a coragem de olhar para a frente, mais do que para trás. Sim, o que ficou para trás é parte do que nos tornamos e não pode ser renegado - não importa quão bom nem quão ruim seja, nem quanto orgulho ou quanta vergonha dele tenhamos. "'Passado', (...) vem do Latim passare, “passar”, de passus, “passo”. É uma analogia que se fez entre o tempo e uma caminhada." 2. E não dá para dar passos adiante, com os olhos virado para trás.

Decidamos, pois. Decidamos, como pessoas, como sociedade, como país, que vamos andar para frente, e deixar para trás um passado que, bem, já passou.

Sim, somos um país com corruptos há meio milênio. Mas podemos não ser. Sim, somos desorganizados e rudes. Mas podemos não ser. Somos alegres e cortezes, mas acomodados e resignados. Podemos não ser. Não importa o que somos hoje, podemos ser melhores amanhã.

E, do mesmo modo, nossas vitórias de ontem podem não nos manter no topo eternamente. Fomos pentacampeões de futebol. Mas podemos não ser campeões na próxima. Fomos aplaudidos ontem, mas podemos ser vaiados amanhã. Podemos, sim, ser condenados por um único erro, não importa quantos acertos tenham sido feitos antes ou depois dele.

Para 2012, eu torço para que paremos de reclamar do que foi, das culpas de fulano ou de beltrano, das incompetências de Maria ou de João. Torço para decidirmos construir, em vez de reclamar daquilo que destruiram ou deixaram de construir. Torço para que façamos, um pouquinho a cada dia, aquilo que pode ser feito para sermos melhores pais, melhores profissionais, melhores amigos, maridos, cidadãos. E, caramba, como há coisa a se fazer!

Desejo que 2012 seja aquele ano em que finalmente se faça aquela viagem dos sonhos - para que outra viagem dos sonhos possa surgir. Desejo que finalmente encontremos aqueles amigos de infância que há tempos juramos que vamos encontrar na semana-que-vem-que-nunca-chega. Desejo que finalmente se largue aquele emprego que se odeia, para se fazer o que realmente se quer. Ou então, que se ache aquele emprego - qualquer que seja - do qual tanto se precisa para recomeçar.

Desejo que o urgente dê tempo para nos dedicarmos também ao que é apenas importante. Curiosa e tristemente, a família, os amigos, os hobbies, costumam estar na segunda categoria, sem que se saiba bem o porquê.

Desejo que as feridas que por ventura ainda estejam abertas se fechem de uma vez e deixem cicatrizes que, mesmo visíveis, não causem dor. E desejo que aqueles que ainda as têm, em pouco tempo se deem conta de que não há mais ferida alguma.

Desejo que se perdoe o que pode ser perdoado. E o que não pode, desejo que se jogue no baú das memórias empoeiradas, que pouca importância têm quando se olha para trás, e que se perdem com o tempo, no esquecimento.

Desejo que as marcas do tempo no rosto, os cabelos brancos e as gordurinhas que teimam em não sair sejam nossas companheiras, que nos lembram que nada é perfeito, nem eterno. Nem mesmo eu.

Desejo que mais pessoas possam viajar à Disney, a Buenos Aires ou a Paris. Mas também desejo que mais pessoas possam comer pelo menos uma refeição decente todos os dias. Desejo que mais pessoas possam comprar TVs Full-HD de LED e som surround. Mas também desejo que mais pessoas aprendam a ler e a somar.

Desejo que mais pessoas possam entrar no Facebook para encontrar gente querida que se perdeu pelo caminho. Mas também desejo que menos pessoas se percam pelo caminho, e que novas pessoas apareçam nele, sem que seja necessário o Facebook.

Desejo que finalmente os homens entendam que as mulheres adoram dançar, adoram filmes românticos e adoram que eles cozinhem - mesmo que fique ruim. E desejo que elas finalmente entendam que se eles não respondem a uma pergunta enquanto assistem à TV, não é porque não gostam delas, nem porque não prestam atenção. É só porque são homens, mesmo. Apenas homens.

Desejo que os filhos tenham menos vergonha dos pais e dos avós. E que os pais façam menos esforço para parecerem irmãos dos seus filhos.

Desejo um ano cheio de festas, música e fogos. Mas também cheio de silêncio e olhos fechados.

Desejo que mais gente recicle o lixo, que usemos menos detergente e que liguemos menos o carro para ir só até ali. Mas também desejo que menos energia seja gasta para transportar leite orgânico que vai ser armazenado em um freezer sem porta; ou gasta para construir bonecas descartáveis para crianças que as ganham no Natal e as esquecem antes do Ano Novo. Desejo que crianças sem brinquedo algum possam, magicamente, continuar a acreditar em Papai Noel e Coelhinho da Páscoa, graças à boa vontade de quem acha que nem tudo está perdido para elas. Nem para nós.

Desejo que os Maias e que Hollywood estejam errados, e que em 2012 não seja o fim dos tempos. E desejo que os fatalistas de plantão, vivinhos, arrumem uma nova data para o Apocalipse - de preferência uma data próxima, para podermos voltar a nos divertir com um novo engano. E desejo também que mais pessoas acreditem que o mundo, na verdade, não acaba; quem acaba somos nós - assim como as mais de 99% das espécies que viveram até hoje no planeta, e que estão extintas. A maioria delas, independetemente de nós - e do nosso suposto, mas equivocado, poder de alterar o curso da história e da vida.

Não me interessa quando será o fim do mundo. Não me interessa nem um pouco. Me interessa saber que, quando ele chegar, se ainda estivermos aqui, tenhamos feito o melhor que podíamos fazer. Com erros, é verdade, mas também com acertos. Os segundos, espero, em maior número e com maior importância do que os primeiros - em geral, fruto de decidir o que precisa ser decidido, e fazer o que precisa ser feito.

Feliz 2012.

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1. site Origam de Palavra - http://origemdapalavra.com.br/palavras/decisao/
2. site Origem da Palavra - http://origemdapalavra.com.br/palavras/passado/



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